A velhice tem trazido algumas novas manias ao meu pai. Não seria nem um pouco elegante descrevê-las aqui, o máximo que posso dizer é que, em sua maioria, elas não me agradam. E é justamente por isso que este assunto me dá medo: penso quanto tempo será necessário para que eu as incorpore, principalmente as mais odiosas, ao meu próprio repertório de manias. Porque assim tem sido a vida inteira: tudo aquilo que criticamos em nossos pais um dia se transforma no nosso próprio padrão de comportamento - e sem a revisão e a modernização que, era de se esperar, o tempo iria promover. Agimos, hoje, quase que da mesma maneira que nossos pais agiam em nossa infância, por mais que tenhamos nos afastado deles, por mais que tenhamos desprezado esta estranha herança e, o que é o mais triste de tudo, por mais que tenhamos dedicado a nossa vida inteira a sermos diferentes do que eles foram. Há algo neste labirinto genético que parece nos perseguir, com o poder de uma maldição suave e sinuosa, um canto de sereia que em algum momento vai arrastar o nosso barco para o mesmo rochedo no qual eles arrebentaram os deles.
Se eu tivesse nascido mulher será que também teria, com o passar do tempo, aprendido a identificar em mim todo o repertório de gestos, emoções e reações que um dia pertencera à minha mãe? Minhas amigas mulheres afirmam que sim. E pior: dizem que com as mulheres este inevitável caminho costuma ser ainda mais pedregoso, já que até o design da mãe elas acabam assumindo com o tempo. Acredito que com os homens não seja diferente. Minha maneira de atender o telefone está se tornando parecida com a do meu pai, a maneira como eu peço para o frentista encher o tanque do meu carro já traz a mesma entonação que um dia eu ouvi dele, o jeito de me dirigir aos estranhos me faz lembrar do jeito como ele sempre se dirigiu aos estanhos; a calma na hora em que deveria ser de explosão; a explosão quando tudo deveria estar calmo... e aquele sujeito que eu vejo no espelho, que continua sendo eu, mas que às vezes, num flagrante dolorido, me surpreende com a imagem que é a dele. Eu amo e admiro o meu pai e a distância serve apenas para reforçar isso, mas nunca esteve nos meus planos me tornar igual a ele e nem assumir para mim o que ele teve de mais nobre ou mais mesquinho na vida. Eu continuo em busca da minha própria nobreza e da minha própria mesquinhez, mas cada vez que cruzo com uma delas, às vezes mais com a segunda do que com a primeira, elas me falam com a voz do meu pai.
Há alguns anos eu tive a chance de conviver por algum tempo com o ator Gianfrancesco Guarnieri, enquanto escrevia sua biografia para a Coleção Aplauso da Imprensa Oficial. De tudo que o Guarnieri me ensinou, sobre vida e teatro, nada me calou tão fundo quanto seu conceito de paternidade. "Ter filhos", ele me disse, "é uma chance que a vida nos dá de corrigirmos os nossos próprios erros. Se eles, os nossos filhos, acertarem, nossos erros terão sido parcialmente perdoados". Por não ter filhos, talvez eu nunca venha a sentir com o coração isso que o Guarnieri me disse. No dia, me lembro bem, senti com as lágrimas. Os filhos talvez pudessem ensinar este caminho do coração, não sei...
Escrevo tudo isso a propósito de uma das cenas mais arrebatadoras que o cinema nos trouxe nos últimos tempos. Ela aparece no finalzinho do filme Na Natureza Selvagem, de Sean Penn, quando um velho que perdera a mulher e o filho num acidente de trânsito, implora para que o jovem personagem vivido por Emile Hirsch aceite ser adotado, se não como filho, ao menos como neto. "Quando eu morrer, tudo vai acabar se você não aceitar este meu apelo". Foi o mais pungente pedido de imortalidade que alguém já fez no cinema. O rapaz, mais interessado em uma viagem ao Alasca, adia a decisão para quando voltar do gelo, condenando o velho ao esquecimento que um dia também nos atingirá a todos....
Me parece justo, talvez covarde ou confortavelmente justo, que nós ainda vivamos nos corpos, nas mentes e na mais ínfima atitude dos nossos pais. O que me assusta um pouco, às vezes, é o quanto deles continuará vivendo em nós, para todo o sempre.
quinta-feira, março 13, 2008
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