sexta-feira, julho 13, 2007

Para o palco ou para a vida?

O diretor Luiz Valcazaras um dia me ensinou, provavelmente sem se dar conta disso, uma grande lição. Estávamos a duas semanas da estréia da peça Abre as Asas Sobre Nós, texto de minha autoria que ele dirigiu de maneira soberba. Era um fim de tarde no Espaço dos Satyros Dois. No dia anterior, ele havia pedido para que o elenco trouxesse algumas sugestões de figurino - peças de roupas que os atores tinham em casa e que talvez pudessem ser usadas no espetáculo. O ator André Fusko surgiu com um par de tênis ligeiramente surrado, que poderia ser usado pelo seu personagem, Paulo Preto. Fusko exibiu o tênis no camarim e Valcazaras aprovou a escolha. Na hora do ensaio, assim que Fusko pisou no palco, Valcazaras mandou parar tudo. E disse: "Fusko, esse seu par de tênis é para a vida, não para o teatro. Vamos precisar pensar em outra solução."

Eu nunca havia me deparado com uma definição como aquela - a de que algumas coisas serviam para a vida, e não para o teatro. Era como se aqueles tênis cheios de histórias e quilometragens, que haviam pisado sobre tantas coisas reais, não tivessem autoridade alguma para pisar no palco, não tivessem sequer autoridade para convencer qualquer espectador de que eles eram o que eram: um par de tênis. Claro que fiquei com aquilo na cabeça.

Voltei a pensar nisso esta semana, quando terminei de ler um livro escrito por um jornalista de quem me tornei relativamente próximo graças à Internet. O personagem principal da trama passa horas amarrado em uma cama, sob a mira do revólver de um assaltante que invadira seu apartamento numa tarde de sábado. É um relato poderoso não só da violência urbana, mas também da história recente do País - já que ao personagem, com as mãos atadas e a boca selada por esparadrapo, só resta pensar. E, neste fluxo ritmado de pensamento, ele nos conduz por um passeio nostálgico pelos últimos 40 anos da história brasileira. Tudo ia bem no livro até o momento em que o personagem é salvo de uma maneira inacreditavelmente milagrosa. Claro que eu não torcia para que o personagem terminasse com uma bala nos miolos - até porque, sendo autobiográfica, não existiria história alguma se o personagem tivesse morrido naquele assalto. O autor me esclareceu depois, por e-mail, que as coisas haviam se dado exatamente daquela forma. Ele havia sido absolutamente fiel ao relatar de que maneira fora salvo. E aí me lembrei de Valcazaras: o jeito que ele foi salvo serviu para a vida, mas não para a literatura. Às vezes, a verdade, quando cruza esta fronteira da ficção, fica sem graça, como o velho par de tênis do André Fusko.

Não sou místico nem nada. Mas desde aquela tarde no Satyros eu passei a ver o palco de forma diferente. Comecei a enxergar ao redor dele um certo campo magnético que não impede a entrada de nada e de ninguém. Mas que revela impiedosamente, a partir do momento em que se cruza esta cerca imaginária, se o sujeito é bom para a vida ou para o palco. E acho que isso faz toda diferença - porque comecei a entender também as pessoas que são boas para o palco, e não para a vida. É o outro lado da moeda no qual eu também nunca havia pensado. É uma fronteira cruel, misteriosa e absolutamente magnífica. Qualquer um pode cruzá-la, mas poucos, muito poucos, vão continuar convincentes e utilitários após a travessia. Aos que falharem, resta um grande consolo: talvez eles sirvam para a vida, o que não é pouco.

Hoje estou excepcionalmente feliz: acabo de ler na internet que Lula foi vaiado. Votei em Lula desde sua primeira candidatura. E mais do que um gigantesco puxão de orelha, eu acho que ele andava merecendo mesmo uma gigantesca vaia. Uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu - aqui vai minha pequena contribuição para ver se ele acorda deste torpor no qual mergulhou nos últimos tempos

3 comentários:

.lucas guedes disse...

que estranho isso, sérgio. vou pensar mais sobre o assunto. um abraço.

Anônimo disse...

que lindo este texto! que lindo!

Valmir Junior disse...

Fico triste por saber que tem gente que é só pro palco, mas não é pra vida. Quando na verdade o artista "deveria", teoricamente, ser credenciado para os dois justamente por conseguir encenar sua dor, encenar sua miséria, encenar a vida condensada do teatro.