Acabo de voltar da locadora. Fui devolver a caixa com a primeira temporada da série Dexter, com 12 episódios dos quais consegui ver apenas três. Não por falta de tempo, e sim de paciência mesmo. Dexter é um perito da polícia de Miami, um cara que entende tudo de sangue e por isso é chamado a solucionar alguns dos crimes mais espinhosos cometidos naquela cidade que, a julgar pelas paisagens tropicais e o onipresente sotaque espanhol, não passa de uma Havana muito mais limpa, chique e evoluída. Só de olhar o estado em que ficaram os corpos das vítimas, Dexter já é capaz de dizer de onde veio a pancada, quanto de sangue se perdeu, se o infeliz caiu de primeira ou ainda tentou lutar pela vida contra seu algoz e até se o assassino sentiu algum prazer ao dar cabo de um aparente inocente.
Dexter sabe de tudo isso não por ser um perito gabaritadíssimo - ele sabe porque ele próprio é, antes de mais nada, um assassino também. Um assassino higiênico, um matador meticuloso que elimina seus inimigos com a assepsia que se espera encontrar em uma sala de UTI, um justiceiro sempre pronto a deixar a sociedade livre de seus malfeitores sem que a faxineira tenha de lavar as manchas de sangue do carpete no dia seguinte, tudo porque Dexter é limpo na hora de fazer o serviço sujo. E tudo isso, ao contrário do que se poderia esperar, faz de Dexter um personagem raso e previsível, um trintão que se vê dividido entre o presente e um passado um tanto quanto nebuloso, onde ele espera encontrar - e depois de encontrar, talvez compartilhar com o público - , a gênese, a cena inicial, o motivo primeiro que transformou o adolescente loirinho que ele foi no assassino científico que ele é.
Num exercício de psicologia que eu já assumo como raso, antes que alguém o faça em meu lugar, fiquei pensando onde os caminhos de Dexter se cruzam com os de outros dois heróis de séries americanas, de quem a morte também se tornou uma companhia constante - Jack Bauer, de 24 Horas, e o doutor House, da série House. Os três, de alguma maneira, têm, a capa episódio, o poder de decidir entre a vida e a morte de seus companheiros de cena. O caso de Jack Bauer é sempre o mais complexo, já que seus inimigos querem destruir o mundo - ou ao menos aquela parte do mundo compreendida pela mente de Jack Bauer, que é a sociedade americana e, ainda mais especificamente, a cidade de Los Angeles. Jack Bauer não luta por um mundo melhor - ele luta para que o mundo possa continuar exatamente do jeito que é. Ele não é o herói romântico que defende ideais de igualdade, justiça social e respeito humano: ele quer apenas que os prósperos e pacatos cidadãos americanos continuem a ser prósperos e pacatos até o fiml dos tempos. E, se ainda for possível, dando as cartas na grande partida mundial que estamos jogando. É o herói prático, o cão de guarda treinado para morder ou até matar o invasor que pular o muro da casa de seu dono. Se há fome, dor e tristeza do lado de fora desta casa, paciência, Jack Bauer tem de cuidar do jardim e não das vielas escuras que rodeiam sua mansão tão imaginária quanto vulnerável.
Doutor House, ao contrário de Jack Bauer, foi treinado para vencer a morte, ainda que a vida que ele resgata tão brilhantemente no final de cada episódio represente mais uma punição do que uma dádiva para seu. É como se ele dissesse:"Você quer viver? Está bem, viva, então. Mas não me culpe por isso depois." A vida que o doutor House devolve aos seus pacientes até então terminais vem carregada de uma quantidade de ironia e desprezo que consegue ser mais daninha do que qualquer efeito colateral de um remédio poderosíssimo. House salva as pessoas como quem tira um abelha que caiu num copo de coca-cola, com um misto de nojo, antipatia e revolta porque, afinal, ele ainda tinha intenções de beber a tal da coca-cola. Salvar um paciente não redime House de sua dor mais profunda, porque ele sabe, melhor do que ninguém, que ele está restituindo ao paciente algo no qual ele já deixou de acreditar há muito tempo - a graça de viver.
Jack Bauer mata e House salva porque eles estão a serviço de algo muito maior, a serviço de uma crença, de uma filosofia, de um treinamento e de um dogma que são superiores a eles próprios. Como todo personagem trágico, suas ações resultam maiores do que sua capacidade de compreendê-las. Eles fazem o que fazem porque não conseguiriam fazer diferente. E o que eles fazem, do ponto de vista da lógica muito peculiar de cada um, é o certo. Perto deles, Dexter é um menino mimado que mata porque chamou para si uma responsabilidade que não lhe cabe. É o garoto que, na escola, entregaria para a professora os nomes dos coleguinhas que colaram na prova e não fizeram a lição de casa, com a crença infantil de que estaria ajudando a construir uma classe melhor. O que Dexter pratica é a eugenia, e não a justiça. Seu maior pecado é o mesmo que levou para o calabouço outros tantos vilões da história: a incapacidade de conviver com os seus iguais. No caso, com os tão assassinos quanto ele. Tive medo de assistir à primeira temporada completa da série e descobrir, lá na frente, que ele se transformou num assassino porque o pai não lhe deu uma bicicletinha quando fez sete anos. Sei que não deve ter sido este o motivo, mas se fosse, faria todo o sentido.
terça-feira, maio 13, 2008
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2 comentários:
Oi Sergio! Fiquei sabendo que você tem um blog só hoje! Que desinformada! rs
Nunca vi Dexter, já House adoro... mas não tenho paciência para o Jack Bauer... :(
Um beijo, nos vemos! Faz tempo, né...
Acho que vc não prestou atenção nos três episódios que assistiu. Dexter não é justiceiro, mas apenas um assassino. Seu pai adotivo o ensinar a canalizar esse instinto para "praticar justiça".
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