terça-feira, maio 06, 2008

Iracema, a cantora.

Assim que Iracema se mudou para o bairro, em uma casa amarela de três cômodos e muros baixos de tijolos, a notícia começou a se espalhar: ela queria ser cantora. Numa época em que as nossas mães não passavam de donas de casa, professoras primárias ou balconistas de uma loja de armarinhos, Iracema, dois filhos pequenos e casada com um homem que raramente parava em casa, só queria mesmo saber de cantar. Levou muito tempo até que as mulheres da vizinhança aceitassem com naturalidade a vocação de Iracema. Mas não havia como culpar as vizinhas por aquela renitente hostilidade: era realmente difícil tratar Iracema como uma igual, ainda mais naquelas duas ocasiões em que sua voz, afinada e potente, escapava dos limites daquela casa pequena - ora quando cantava, ora quando era espancada sem dó pelo marido. Com sua magreza impressionante, a pele branca e o pescoço alongado, Iracema era uma mulher de Modigliani. Ainda que na época eu não conhecesse Modigliani.

Os filhos de Iracema se chamavam Rodinei, o mais velho e de quem eu rapidamente me tornei amigo, e Regina, a caçulinha de cabelos negros e encaracolados que gostava mais de brincar sozinha. Eu só precisava pular o mulo para chegar ao quintal de Iracema e brincar com Rodinei. Na maioria das vezes, Iracema dava duas bolachas Maria para cada um de nós - e minha mãe não compreendia por que, em casa, eu sempre reclamava quando só tínhamos bolacha Maria na lata de doce. "Na casa dela você come, que eu sei", minha mãe dizia. E comia mesmo - às vezes, as bolachas eram murchas e velhas. Mas Iracema era uma cantora e acho que eu, já naquela época, talvez acreditasse que os artistas deviam ter lá as suas manias e precisavam ser perdoados por suas bolachas velhas e com a data vencida.

Diziam, no bairro, que Iracema deixava os dois filhos amarrados ao pé da mesa quando saía de casa para cantar. Nunca conseguimos confirmar se esta história era verdadeira. A única certeza que tínhamos era de que, quando o marido de Iracema voltava de suas misteriosas viagens e descobria que ela havia escapado para cantar, o pau comia solto para o lado dela. Iracema apanhava até aparecer com o rosto branco manchado por hematomas no dia seguinte. E, nestas ocasiões, minha mãe não me deixava pular o muro para brincar com os filhos dela.

Um dia, Iracema começou a espalhar pela vizinhança que no sábado seguinte iria cantar na televisão. Era um programa de calouros - talvez o Chacrinha, talvez o Bolinha, já não me lembro mais. Quando chegou o sábado, o bairro todo ficou empuleirado diante das tevês em branco e preto e com chuviscos. Era verdade: Iracema surgiu diante das câmeras e cantou, em um vestido branco até os pés - parece que fora alugado - e com um penteado tão alto que quase não cabia na tela. Não me perguntem o que ela cantou e nem se foi aprovada. O fato é que Iracema nunca havia mentido para nós - ela era mesmo uma cantora.

Pouco tempo depois, Iracema, eterna pioneira, se separou do marido e foi embora de casa. Rodinei e Regina ficaram morando com o pai, que se viu obrigado a diminuir o ritmo das viagens. Os meses foram se passando até que eu e Rodinei caímos na mesma classe no último ano do primário. Uma tarde, pouco antes do final das aulas, a diretora da escola entrou na sala e pediu para que Rodinei a acompanhasse: havia alguém querendo falar com ele. Rodinei, assustado, caminhou em silêncio atrás da diretora. Quando a aula terminou, uns cinco minutos depois, eu também saí e pude ver Rodinei, em um canto do pátio, aconchegado e chorando no colo da mãe. Iracema, que, disseram depois, havia se mudado para o Mato Grosso, tinha voltado para ver o filho. Foi a última vez em que a vi . Alguns meses depois daquela breve aparição, Iracema morreu, longe dos filhos, aos trinta e poucos anos.

Estávamos no fim de 1972 e, quando se falava em cantora naquela época, ninguém pensava em outros nomes que não nos de Maria Bethânia, Gal Costa e Elis Regina. Mas para nós, os moradores daquele bairro que quase já nem existe mais, naquela tarde de sábado que ficou perdida entre os chuviscos da televisão, nenhuma delas três, juntas ou separadas, cantava tão maravilhosamente bem quanto a nossa Iracema.

6 comentários:

Márlio Vilela Nunes disse...

Sérgio,
Muito bom seu texto sobre Iracema, a cantora de lábios roxos de apanhar. Uma bonita e triste lembrança. Uma associação freqüente entre a ousadia de ser diferente, de inventar e sofrimento, exclusão, infelicidade. Cabe a todos aqueles que escolhem ir além do padrão (de não ser dona de casa, de não ser funcionário de uma empresa respeitada, de não ter uma família como as outras) bancar um outro enredo. Iracema fez as pessoas felizes com sua voz, com seu canto na TV, mas não conseguiu encontrar a sua própria felicidade. Morreu cedo, longe dos filhos, desconhecida. Que você, de certa forma um herdeiro, um afilhado dela em criar arte, possa também ser o seu vingador. Seja artista e seja feliz.

... disse...

Adorei esse post...
que bacana, poderia juntar vários posts do seu blog e lançar um livro de crônicas...é tão bacana, tão simples, e tão emocionante...
deveriam virar Teatro...
Parabéns!
Grande Abraço

Anônimo disse...

a beleza do texto me fez lembrar de outra iracema, a do chico:

"Iracema voou
Para a América
Leva roupa de lã
E anda lépida
Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá
Tem saído ao luar
Com um mímico
Ambiciona estudar
Canto lírico
Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará
Mas não muita
Uns dias, afoita
Me liga a cobrar
É Iracema da América"

parabésn pelo texto, massinha; e o brigado por compartilha-lo.

Só no blog disse...

Márlio, "Eu" e Marcinho, muito obrigado pelo carinho dos comentários. Fico muito feliz de perceber que, tanto tempo depois, o sonho da Iracema ainda consegue tocar alguns corações...
E, Marcinho, eu sabia que tinha uma Iracema na MPB, mas eu achava que era a do Adoniran...

Anônimo disse...

Essa do Adoniram também é maravilhosa, inda mais se ouvida na interpretação fundamental de Clara Nunes, de 1980:
"Iracema, eu nunca mais eu te vi
Iracema, meu grande amor, foi embora,
Chorei, eu chorei de dor porque
Iracema, meu grande amor foi você.

Iracema, eu sempre dizia,
Cuidado ao 'travessar essas ruas,
Eu falava, mas você não me escutava não,
Iracema, você 'travessou contra-mão.

E hoje ela vive lá no céu,
Ela vive, bem juntinho de Nosso Senhor,
De lembrança, guardo somente suas meias e seus sapatos,
Iracema, eu perdi o seu retrato."

Elis também cantou lindamente essa canção, mas não a registrou em disco.
Abraço

Só no blog disse...

Esta gravação da Clara Nunes é linda, não é? E também me lembro da Elis cantando, em um programa de tevê, eu acho, com o Adoniran do lado... Muito obrigado pela letra. Abração