quinta-feira, setembro 06, 2007

Meu bairro

Moro em São Paulo há quase vinte anos e ainda não consegui desvendar um dos mistérios desta cidade: será que os bairros daqui também escondem aquelas figuras famosas que parecem existir em todos os bairros das cidades do interior? O louco, o andarilho, o catador de quinquilharias, a solteirona misteriosa, o bêbado, a beata, a fofoqueira da janela, a benzedeira, a garota que se entregou ao sexo muito antes dos meninos da mesma idade (houve um tempo em que isso era um escândalo!), o craque de futebol, o macumbeiro... Fecho os olhos e tenho a impressão que todos eles estão desfilando na minha frente, pelas ruas ainda não pavimentadas da Vila Rami, bairro da cidade de Jundiaí em que nasci.

Loucos havia pelo menos dois. Um era o Miguel, que andava descalço e falava sozinho. Ele tinha uma legião de sobrinhos sempre prontos a partir em sua procura quando anoitecia e ele ainda não tinha voltado para casa. O outro, mais jovem, se chamava Zé da Hélia, muito educado até que alguém gritasse: olha a chuva. Quando ouvia esta frase, em qualquer situação ou ambiente, Zé da Hélia entrava em surto e distribuía os piores palavrões que a língua portuguesa já produziu. Depois, baixava a bola e voltava a sorrir, até que alguém, de uma janela entreaberta, gritasse "olha a chuva" à passagem de seu vulto magro e ligeiramente corcunda. Nunca ninguém conseguiu explicar que misterioso efeito a palavra chuva exercia sobre ele. Em comum, Zé da Hélia e Miguel tinham apenas o corte de cabelo escovinha, uma gentileza do Ismael, o barbeiro que chocou o bairro quando, no fim dos anos 60, mandou pintar na porta do seu salão: cabeleireiro unissex.

Maria Cruz era a solteirona. Ela chegou ao bairro vinda de Bragança Paulista, em companhia da mãe e do irmão, Dito Cruz, que tinha apenas dois dentes. Quando a mãe morreu, os dois passaram a viver numa casa pequena em condições pouco higiênicas - culpa dos gatos que compartilhavam do mesmo teto, diziam os vizinhos. No início de dezembro, Maria Cruz montava um presépio que fazia a alegria da garotada. Todo ano ele era exatamente igual, com as mesmas peças de sempre, e todo ano nós não víamos a hora de chegar dezembro para visitá-lo. Dito Cruz, também solteiro, tinha um pé bem fincado na rebeldia. Um dia, alguém arrumou um emprego para ele, com carteira assinada e tudo. Quando se apresentou na firma para o exame médico, o doutor lhe disse: "Senhor Benedito, agora que o senhor tem emprego, está na hora de consertar os dentes". Ele fechou a cara e respondeu no mesmo instante: "O que o senhor come com os seus dentes, eu como com os meus". O médico bateu um carimbo de reprovado em sua ficha e ele voltou para casa sem emprego e com as gengivas gargalhando.

Havia o seu Vitório, que com suas rezas garantia curar cachumba, rubéola, quebranto e todo tipo de escamação de pele a que chamávamos de cobreiro. A dona Rosália, que fazia balas de coco como ninguém e que foi a primeira moradora da rua a ter telefone. Como tínhamos muita vontade de usar o aparelho mas não conhecíamos ninguém a quem telefonar, ela deixava a gente ligar para a polícia ou para o bombeiro - só para ouvirmos uma voz do outro lado. E então ela explicava rapidinho que era apenas desejo de criança. Havia também a dona Beatriz, que vendia lápis de cor e papel sulfite e ainda era a mãe da Rita, que se tornou uma celebridade no bairro quando resolveu entrar para o convento. Em uma de suas raras folgas, antes de fazer os votos, Rita conheceu um motorista de ônibus, se apaixonou por ele e trocou a vocação por uma dura vida de dona de casa. A gente odiou, porque ela nunca mais usou aquele hábito cinza claro que só deixava parte do seu rosto à mostra.

Os dias mais tristes era quando alguém se mudava. No fundo, todos nós sabíamos que sair do bairro significava sair de nossas vidas - já que nossas vidas nunca iam além do bairro. Um dia, foi embora o Zé Maria, que anos antes tinha me atingido com uma pedra que me rasgou a testa. Num outro dia, foi embora o Wilson, filho da dona Nádia, que ganhava a vida fritando pastéis atrás do balcão de um pequeno bar que um dia fora do meu tio. Depois, foi embora o Valmir, que era bom de bola e melhor ainda no estilingue. Depois o Chiquinho, que todo mundo dizia ter o cabelo amarelo de tanto comer espaguete. Até que um dia morreu o Bicudo, atingido por uma bala que estraçalhou seu fígado bem no meio de uma quermesse numa noite de domingo. O autor do disparo era seu melhor amigo, que tinha levado o revólver para a festa apenas para exibir algo que, tenho certeza, não passava de um brinquedo novo. Os dois tinham 16 anos.

E um dia veio o asfalto, depois os semáforos, o riozinho em que o bairro inteiro aprendeu a nadar foi canalizado, o campinho de futebol deu lugar a dois prédios de apartamentos e, talvez por causa de tudo isso, todo mundo resolveu cuidar da vida longe da rua. E eu nunca mais soube de nenhum deles, nunca mais.

4 comentários:

Kalau disse...

Parabéns!!!!Adorei , vi a cara de cada personagem, sou do interior tb. Itapira- No meu blog em um dos primeiros posts eu falo tb dessas pessoas marcantes que vagam pela cidade http://kalaumusico.blogspot.com/ - Ah, daqui a pouco estréia mais uma peça querendo ir é só dizer. Abraços e bom feriado.

Só no blog disse...

Valeu,meu querido. Os bairros em que a gente nasceu vão nos acompanhar pela vida inteira, né? Peça nova? U~eba! Iremos sim. Beijão

artesclaudiaroveri disse...

Oi Sérgio, foi muito bom achar o seu blog, e melhor ainda ler suas histórias da vila Rami. Realmente, o "Zé que cata papel" (Zé da Hélia), e o "Miguelzinho" são patrimônios da Vila Rami. Nós não morávamos aí, mas bem perto, na rua Pirapora e eles tbm fizeram parte da nossa infância. Nossos pais gostavam muito dos seus e por tabela, nós tbm. Sabe quem somos nós?????
Daisy e Cláudia Roveri, filhas do João e da Lucila.
PS1: Você se equeceu de escrever sobre o Gilmar cantor.
PS2: ficamos muito orgulhosas do seu sucesso e estamos acompanhando o seu trabalho.
Abraços
Daisy e Cláudia

flávia coelho disse...

Ai que gostoso, em ibitinga tinha a dita sargada ( acho que era salgada, pq não tomava banho) e seu filho arbino ( albino, com certeza). Os dois eram doidos demais pra cidade, coitados.