quarta-feira, janeiro 28, 2009

Pelo direito de não gargalhar de tudo

Há algumas semanas pude assistir à montagem de um dos textos clássicos da dramaturgia americana do século 20. É um destes textos capazes de colocar o tempo no bolso: quanto mais os anos passam, mais parece que eles foram escritos ontem. E eis que não saí especialmente tocado pelo espetáculo por sentir que algo nele não se cumpriu: acredito, e isso é uma opinião pessoal que pode ser contestada por qualquer um, que havia no texto um certo tipo de dor, uma desesperança quase palpável que não chegou ao palco. Uma das atrizes em cena, profissional tarimbada e de reconhecido valor, construiu sua personagem com uma alegria histérica e um cinismo incômodo que eu nunca havia localizado no texto. Confesso que achei aquilo um pouco estranho e inoportuno – mas não critico as opções pessoais que cada ator faz no momento de levantar seus personagens. Até porque, pela reação de grande parte da platéia, percebia-se que a atriz não estava sozinha em sua escolha arriscada: como uma regente, ela parecia se deliciar com as gargalhadas que brotavam a cada um dos seus comandos.

No dia seguinte, uma diretora de teatro, também profissional de reconhecido valor, me ligou para perguntar o que eu havia achado do espetáculo. Disse a ela que no geral havia gostado, embora tivesse saído do teatro muito incomodado com a performance da atriz. Ela então me disse que havia gostado da peça exatamente pela performance da atriz, muito adequada aos nossos tempos. “A única maneira desta peça se tornar palatável ao público de hoje”, ela me confessou, “é extraindo toda a graça possível do texto. Ninguém agüenta mais sofrer numa poltrona de teatro. As pessoas querem rir e os atores que querem público devem saber disso”.

E então ontem fui assistir a um espetáculo este sim brilhante – Réquiem, do dramaturgo israelense Hanoch Levin, em cartaz no Centro Cultural São Paulo. Inspirado em três contos de Tchechov, Levin, até então inédito no Brasil, construiu uma dolorida parábola sobre a vida que se esvai sem que nos demos conta disto. Quando os personagens percebem que a morte (ou a vida?) acaba de roubar deles tudo que de mais importante eles tinham, parece ser tarde para qualquer tipo de reação – eles se conformam e seguem adiante sem o pouco que um dia possuíram. Poucas vezes eu chorei tanto diante de uma dor tão domada quanto aquela exibida pelos personagens da peça. Eu não acho que nada na vida seja obrigatório, mas se for possível abrir uma exceção aqui, eu diria que Réquiem é um espetáculo obrigatório.

Em uma das cenas mais pungentes do espetáculo, quando um querubim surge em cena para ler um cartão postal que um bebê de seis meses, morto por queimaduras, enviou à sua jovem mãe, as gargalhadas começaram a pipocar na fileira atrás da minha. “Como seu filho não sabia ler e nem escrever, e morreu antes de conhecer as palavras, eu vou traduzir para a senhora o que ele escreveu”, diz o querubim. Poucos corações de concreto não se partiriam diante de um enunciado deste tipo. E então o querubim transmite a mensagem de conforto infantil que o bebezinho morto enviou do céu, ou de algum lugar melhor que este, para sua inconsolável mãe que se mostrava incapaz de chorar. Eram duas ou três linhas escritas com navalha, de uma dor tão seca, tão avessa ao melodramático que por isso mesmo dilacerantes. E as pessoas, atrás de mim, rindo como se estivessem na gravação do Zorra Total ou do Pânico.

Tive vontade, ao sair do teatro, de ligar para a diretora e cumprimentá-la: você estava certa. Não é que as pessoas estejam saindo de casa dispostas a rir, é mais grave: elas saem de casa dispostas a encontrar a gargalhada onde ela positivamente não existe. Sei que este post está assumindo o tom de algo que eu mais abomino na vida: a cagação de regra. Que cada um ria e chore com aquilo que melhor lhe aprouver. Mas se alguém é capaz de gargalhar – estou ressaltando: o verbo é gargalhar - diante da imagem de uma mãe que viu seu bebê de seis meses morrer queimado, então eu já não sei mais para quem ou o quê devemos dedicar aquelas poucas lágrimas que não temos vergonha de exibir em público. Temo pelo futuro do teatro, sinceramente. Cresci ouvindo a ameaça de que a tevê e o cinema um dia o destruiriam. Acho que não: o grande inimigo do teatro são aqueles que, impiedosamente, saem de casa noite após noite para pisotear a máscara da tragédia.

19 comentários:

Márlio Vilela Nunes disse...

Sérgio,
Esta história de entretenimento, que o público só quer rir, que só quer coisa fácil e mastigável, sei não. O teatro poderia apontar outro caminho, oferecer outras expectativas. Por que não mostrar que melhor do que dar gargalhadas é encontrar algo que nos traga a experiência da beleza? Por que não ensinar que, para que este encontro ocorra, é necessário saber da tragédia, mesmo que se esteja diante de uma comédia? Por que não oferecer ao público o melhor que se pode?
Vc dá o exemplo de generosidade nos ofertando belos, sinceros e corajosos textos como este. Bravo!
Abraço,
Márlio

Só no blog disse...

Márlio, muito obrigado pela beleza do comentário, querido. Veja: não tenho absolutamente nada contra a comédia e acho completamente saudável a disposição de sair de casa para rir apenas. O problema é quando a gargalhada se torna obrigação, se torna norma, se torna a única coisa que alguns atores e produtores aceitam encarar em seus desafios profissionais. Eu penso que o teatro é um dos poucos lugares em que esta experiência da beleza que você falou pode ocorrer ao vivo, e diferente noite após noite. E se esta experiência da beleza surgir justamente quando as lágrimas escorrem pelo nosso rosto? Será que existe algum mal nisso? Eu espero que não. beijo grande.

Anônimo disse...

A idéia de que o público sai de casa pra rir é coberta de preconceitos, Sérgio. Existem os espetáculos feitos com esse fim - e alguns são ótimos, vide "Oito a Zero", do Pedro Garrafa - mas nem todos eles pretendem isso. Essa idiotia de algumas pessoas do público nada mais é que falta de formação intelectual, fruto de uma má educação (cabe um Almodovar aqui) que vem se arrastando há anos. Não temos tradição teatral, e algo mais sofisticado na linguagem ainda é para iniciados. Quando o espectador descobre que existem pontes pra levá-lo a outros lugares, ele topa. É difícil? Claro, mas vale a pena. Triste mesmo é quando um diretor se rende aos fatos e provoca a risada, creca de muros e pavimenta um caminho pra onde o público é levado, mas não vê o caminho.

"Não posso me acostumar com vento assoprando o mar e as ondas beijando a areia..."

Abs

Isabella disse...

Concordo. Também não tenho nada contra a comédia, aos textos feitos simplesmente para rir. O imperdoável, para mim, é a peça que tenta extrair risada da onde não se pode rir, não há motivos para rir, não cabe uma risada. Entende? Isso me irrita muito. Parece falta de compromisso com o texto, com a obra, com tudo que está ali...
Enfim, sou leiga, minha opinião não conta muito (hehehe), mas assisti a muitas peças assim e não me agradam nem um pouco.

Unknown disse...

Creio que isso não é um fenômeno que aconteça somente no teatro. Estamos no meio da banalização de toda informação. Os noticiários só nos trazem histórias horríveis (pais que matam seus filhos, jovens da classe média que espancam doméstica, balas perdidas, policiais que atiram em inocentes...)e com isso o que é chocante passa a ser normal. As pessoas que riram com a cena tão tocante do espetáculo certamente não enxergaram a dor existente no texto, pois notícias mais dilacerantes caem nas suas cabeças todos os dias de um jeito tão sensacionalista e sem noção de nada.

Só no blog disse...

Otávio, Isabella e Fred, meus queridos. Obrigadão pela visita e por terem complementado minhas idéias sobre o tema. Que bom que a gente pode compartilhar as coisas por aqui, né?

mARIA disse...

bRAAAVO!!

entao nao estou só!!!!!!!!!!
sinto que pude vomitar suas palavras na cara dessa massa inoportuna e sem senso algum.

no brilhante espetáculo "Aldeotas" de gero camillo tive a mesmíssima sensacao. as gargalhadas pareciam querer abafar a belza crua e cruel que desembaraçava-se aos nossos olhos de forma magistral. uma pena para quem nao percebeu o quao rico é aquele texto.

sem mais. oBRIGADAA !!

Só no blog disse...

Oi, Maria, muito obrigado pelo comentário. Quando escrevi, tive medo de que as pessoas achassem que eu não curtisse comédia. Longe de mim, adoro uma boa comédia. Outro dia fui ver A Festa de Abigaiu e fiquei gargalhando duas horas. Minha bronca é de quem sai de casa decidido a rir de qualquer coisa - e acaba perdendo grandes oportunidades de se emocionar.

Valéria Medeiros disse...

Amo os contos do Tchékhov; fiquei com vontade de ver esta peça! Me parece que ele sacou a sutileza, a ironia e o não-julgamento checoviano que sempre me arrebata!
O problema é que não temos mais tanta sutileza (já tivemos?), tudo é isto ou aquilo, os meandros tornam-se linhas retas e secas, as oposições nos reduzem a histéricos robôs consumidores de gargalhadas efêmeras, oponiões feitas e gostos préfabricados que não nos deixam nos afetar de uma forma mais profunda. Mas ainda bem que existem pessoas que se deixam sentir, apesar de isso ser vertiginoso: sentir, deixar entrar, deixar sair... se tranformar...
E quanto aos gêneros: pra mim, são todos híbridos. Comédia, drama, tragédia etc. Há de quase tudo em tudo, então não sei nem quero classificar.
Quanto a outra peça que tb adoro - imagino qual seja, mesmo estando no Rio -, deve ter faltado esta tal sutileza na hora de olhar e construir a cena, porque, se bem me lembro, há cenas que mostram a violência de não se perceber o outro, tão maltratados que todos já estão...
E mostrar o que realmente se sente é um tabu... E esta peça naufraga em frustrações.
Pra mim há uma certa comicidade trágica no dia-a-dia daquela família; a distância e os fracassos ruminam por ali violentamente..., mas daí a ter sonoras gargalhadas... Bem, a gente é educado pra substituir emoções, né? Sente uma coisa e tem que expressar outra; enfim, é uma pena que o público tenha embarcado numa só direção grosseira, é uma pena que a atriz tenha escolhido ou visto a cena só por este estreito ângulo, sem trabalhar também nas sutilezas que levaram a personagem a agir tb daquela forma MAS há pessoas que agem assim, distantemente, achando que o viver dos outros é um grande espetáculo manipulado e que deve ser assistido com batata frita e coca-cola, seja uma guerra ao vivo, seja uma fofoca de famosos ou um estupro etc.
Viva a sutileza, a delicadeza, os meandros; e que fiquem vivos os olhares destes dois autores para as pessoas que se deixam e conseguem se aprofundar em si e nos outros. E isto é difícil, muito difícil, mas não impossível, né?
Muito bom ler seu texto!
bjim

Só no blog disse...

Puxa, Valéria, brilhante seu comentário. Contribuiu muito com o raciocínio que tentei esboçar aqui. Valeu demais pelo carinho. beijão, roveri

Lucianno Maza disse...

Meu doce Roveri,
eu assisti à primeira peça, e encontrei conforto aqui ao encontrar um par na opinião que tive, exatamente esta sobre a opção da atriz em questão. Quando comentei sobre minha impressão recebi respostas parecidas como a que sua amiga diretora lhe deu, e que o trabalho daquela atriz estava excepcional. Me calei então como o burro que não viu a nova roupa do rei. E lendo aqui pensei: o Sergio sentiu o mesmo, não posso estar tão equivocado.
O outro espetáculo já estava na minha lista e acaba de subir todas as posições depois de seu comentário.
Por fim, à respeito do que as pessoas querem rir e chorar, ah... Me identifico demais com essa questão, e proponho uma conversa ao vivo sobre isso. Será que sai nosso vegan? rs
Beijos querido

Só no blog disse...

Lucianno, meu querido. O nosso almoço precisa sair urgente, pois logo um só almoço não será suficiente para tanto assunto. Vamos tentar semana que vem? brigadão pela visita aqui, é sempre uma honra. beijos

Anônimo disse...

Fui trazido aqui por outro amigo, o Lucianno Maza, que vem refletindo sobre o riso em peças densas, sua atração criativa! E por mim capturado, numa tragédia dele que pretendemos montar... E li seu tópico, lindão! Vc sabe que adoro vc, né, Roveri? Acho de um talento de ser e estar fantástico, e isso resulta em obras maravilhosas... Porém, vou lançar aqui o que escrevi para o Maza, no Msn: "É um ponto de vista, mas o público tem outros, ainda bem. E assim se faz o Teatro. Se é tragédia para uns, é comédia para outros! Sabe-se Deus as referências de cada um. Uma platéia óbvia por si só é o pior dos dramas! O melhor é o imprevisível, aí sim se faz teatro". Quem sou eu pra ensinar algo a vc, que tanto já aprendi; mas é como chegou a mim tudo que li aqui. E agora deixo aos outros a conclusão! Bjo na alma.

Só no blog disse...

Eloy, querido. Que máximo receber sua visita por aqui. Curti muito seu ponto de vista. Viva a democracia! Aqui e nas plateias. Beijão.

Flavia Penido disse...

Oi! cheguei aqui pelo Cubo Mágico, e lendo seu texto lembrei de uma vez que, vendo "Toda nudez será castigada" com meu pai, este observou que o público ria cada vez que uma das personagens falava um palavrão. A peça era pesada, mas ao público o fato de palavrões seerem ditos eem alto e om som era motivo para rir...

triste né?

bjs!

Só no blog disse...

Oi, Ladyrasta, muito obrigado pela visita e pelo comentário. Mas agora fiquei curioso: o que é o Cubo Mágico??? Beijão

Carlos Canhameiro disse...

Olá Roveri...
Sempre fico na dúvida entre o calar ou o falar (escrever)... Tem gente escrevendo a todo instante e a "democracia" internetiana me faz sentir uma preguiça em replicar opiniões que brotam como cogumelos pós-chuva!
Mas, vamos lá... A vida é essa, à margem ou não, executando um réquiem ou funk nos dias em que não seremos mais...
Sempre pensei que o melhor do teatro era o público poder interagir (ou fruir) como quisesse. Deixe o público ser livre. Sei bem da impossibilidade de se definir liberdade, público ou mesmo deixar!... Mas o caminho da relativização não aponta escapatória em seu próprio caminho.
Assusta-me ver artistas adjetivando o público como IDIOTAS ou sem formação intelectual (que porra é essa?), ou de impiedosos iconoclastas da tragédia... O teatro não tem o público como inimigo. Sou um pouco avesso a elucubrações, mas não me furtarei de uma: acredito no teatro como comunhão e nesse espaço cabem tantos os que riem, como os que choram, os que não sentem nada, os que levantam, os que aplaudem, os que vaiam... Todos. Difícil é aceitar alguém rir durante uma cena dramática, mesmo que o ator esteja vestido com capa de chuva e uma nuvem soltando um raio como aureola e dizendo o texto mal-humoradamente...
Nem todos sabemos o que quer o público quando este sai de casa para ver uma peça. Eu julgo excepcional que ainda exista quem queira e se disponha a isso hoje. Tentar adivinhar parece mais papel de mães Dinah do que de artistas. Ainda sobre elucubrações, pelos comentários acima, intuo que estejamos mais preocupados em espezinhar o público do que com arte se materializando diante de nós.
O próprio Chiquinho Medeiros falou outro dia sobre como ele se sentiu aliviado qdo uma mulher riu em uma cena do espetáculo O pupilo quer ser Tutor. Palavras dele: “finalmente alguém que via a possibilidade do cômico naquela situação”. Veja... Não é mágico o teatro (ou as artes) justamente por isso?
Não temo pela morte de nenhuma arte, nem do teatro. Bobagens escatológicas que me parecem tipicamente humanas. Não acredito muito nessas fronteiras: tragédia, drama, comédia e o caralho a quatro. O mundo em paredes para melhor compreensão...
Sempre acho que cagar regra faz feder.
E, para não me furtar de opinar sobre as duas peças, que assisti:
Zoológico de Vidro é insuportavelmente chata. E reforçou a minha desconfiança com Tennessee Williams (produto americano supervalorizado) e com a Cássia Kiss, não sabendo o que fazer em cena, faça um tipo ridículo que sempre dá liga!
E Réquiem... Bem... Faço o contrário das suas palavras: é um espetáculo que se deve evitar!
E nisso consiste a máquina do mundo: não concordamos o que não quer dizer nada. São os dias que passam!
Há braços

Anônimo disse...

vimos a mesma peça, querido, e eu também me senti incomodada com o tom da atriz... mas, como vc mesmo constatou, as pessoas querem gargalhar... saem de casa para isso e se o texto for uma tragédia, pouco importa para elas... triste, né? bjs! Erika

Só no blog disse...

Carlos e Erika, muito obrigado pela visita. O que eu achei mais interessante, neste post, é que ele deu a liberdade para que a gente pudesse dizer o que sente pelo teatro que vemos hoje. E, pelo tom e seriedade dos comentários, percebo que é um assunto que merece o carinho de todos e as discordâncias são sempre bem-vindas. Abração para vocês.