quinta-feira, junho 26, 2008

Eu sou um gato

Depois de idas e vindas, finalmente chego às últimas páginas do livro Eu Sou um Gato, escrito em 1905 pelo romancista japonês Natsume Soseki. Quando o livro foi lançado pela Editora Estação Liberdade, no início do ano, toda a crítica se apressou em comparar Soseki a Machado de Assis. Tal comparação é um irresistível convite à curiosidade de qualquer leitor. Embora eu tenha ficado um pouco reticente sobre isso, já que o narrador do romance é um gato sem nome, de pouco mais de um ano de idade. Cheguei a pensar que se tratava de uma fórmula fácil esta de eleger um bicho como narrador de um caudaloso romance - tudo pode se revelar fácil e compreensível sob o ponto de vista de um animal de quem não vai se exigir coerência alguma. Felizmente eu estava enganado. O gato pagão do romance é um personagem interessantíssimo, irônico e culto, sempre pronto a mostrar suas garras para a sociedade japonesa que, cem anos atrás, começava a se abrir para as influências do Ocidente. O gato do título, o alter-ego de pêlos e bigodes de Soseki, não faria feio se fosse hospedado num romance de Machado de Assis. Com um pouco de boa-vontade, ele seria bem vindo até no universo de Dostoievski, isso se ele fosse um gato um pouco mais taciturno e infeliz, e não é este o caso.

A primeira página do livro, na qual o gato, recém-nascido, demonstra seu horror diante do nariz dos humanos, já comprova que temos em mãos algo grandioso. Esta impressão só cresce na medida em que o bichano, ao ser adotado pela família de um professor universitário, passa a demolir com impiedosa soberba alguns hábitos da intelectualidade japonesa - entre eles o de escrever diários, redigir teses acadêmicas sem utilidade alguma e tentar dominar o idioma inglês. À moda de Proust, Soseki é capaz de gastar inúmeras páginas para detalhar, por exemplo, como os urubus pousam sobre uma pequena cerca de bambu que margeia a casa do professor. É um obstáculo, confesso, mas quando nos damos conta de que os gatos têm todo o tempo do mundo a gastar com urubus em cerca, vemos que estamos sendo apenas impacientes.

A narrativa de Eu sou um Gato ganha um peso e uma densidade consideráveis quando, lá pela metade do livro, o pequeno gato sem nome, impossibilitado de conviver com outros felinos, decide se humanizar. É uma metamorfose pungente, um pequeno tratado sobre todas as vezes em que abandonamos alguns princípios inerentes à nossa condição apenas para sermos aceitos na sociedade. Nos afastamos de nós mesmos para tentar uma aproximação com o outro. O gato, para poder conviver com os humanos, procura não apenas imitá-los, mas acima de tudo sentir e pensar como eles. A partir daí, suas observações precisas, que até então tinham como alvo o tédio de um Japão quase rural, a caça aos camundongos ou o incômodo das pulgas em suas costas, passam a focar os dilemas e a infelicidade que, a comparação aqui é minha, são a pulga nas nossas costas. Nas últimas páginas do livro, o gato, mais velho, maduro e, por conseqüência, mais descrente da vida, decide então falar sobre a fronteira entre a sanidade e a loucura das pessoas e sobre o local misterioso onde se acomodam os desejos que não se realizam, sem que, no entanto, deixem de ser desejos. Eles apenas, segundo o gato, mudam de lugar, mas continuam pulsando como no primeiro dia em que surgiram em nossas vidas. É bonito de doer.

Aqui vai a abertura do livro, na esperança de estimular os amigos a escalar as 486 páginas que virão a seguir:

"Eu sou um gato. Ainda não tenho nome. Não faço a mínima idéia de onde nasci. Guardo apenas a lembrança de miar num local completamente sombrio, úmido e pegajoso. Deparei-me nesse lugar pela primeira vez com aquilo a que comumente se denomina criatura humana. Mais tarde, descobri que era um estudante pensionista, a espécie considerada mais malévola entre todas essas criaturas. Contam que por vezes esses humanos denominados estudantes nos agarram à força para nos comer fritos. Na época, ignorando este fato, não me senti intimidado. Experimentei apenas uma agradável sensação quando o humano me soergueu com gentileza, pondo-me sobre a palma da mão. Aconchegado nela, pela primeira vez na vida encarei o rosto de um desses seres. Preservo até hoje na memória a impressão desagradável daquele momento. Em primeiro lugar, o rosto, que deveria estar coberto de pêlos, revelava a lisura de uma lata de remédio. Em nenhum dos muitos de minha espécie com os quais mais tarde me deparei observei essa horrenda deformação física. Não apenas isso: bem no meio da face se destacava uma protuberência, de cujos orifícios saía fumaça, por vezes em profusão, que me sufocava e debilitava. Só recentemente descobri provir essa fumaça de algo que os humanos costumam fumar e a que denominam cigarro".

O resto é mais ou menos por aí. Se não for ainda melhor.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá, tudo bem?
Posso te pedir uma coisa?
Entre em contato comigo.
Gostaria de conversar sobre trabalhos, adaptações... acho que tenho um caminho percorrido que, mesmo menor, é parecido com o seu... jornalista, satyros, teatro, satyros, literatura, satyros, visão fashionista... rs

Abraços,

Alex
alex.network@hotmail.com

Anônimo disse...

Acabei de ler seu comentário sobre o livro do gato. Esse comecinho é só para degustar e instigar o devoramento completo do livro, como aconteceu comigo quando soube de Kafka, Wilde, Hesse...

Abraço.

Alex

Só no blog disse...

Oi, Alex, é isso mesmo. Olha, não é um livro muito fácil, cheio de ação, nada disso. Mas ele faz observações brilhantes sobre a sociedade e a mente humana, coisas que nunca ficam velhas, né? Grande abraço.