quarta-feira, outubro 10, 2007

O menino


De repente esse menino começou a falar umas coisas esquisitas. Outro dia mesmo, na hora da janta, a gente com a cara quase enfiada no prato de sopa de feijão que a mãe dele tinha feito, ele deixou a fatia de pão de lado pra dizer, assim do nada, que era importante que cada um de nós tivesse um ideal nesta vida. Eu fiz de conta que não ouvi e continuei comendo, a mãe dele olhou pra mim, com a colher de sopa a um palmo da boca, e também não falou nada. Na hora de dormir, eu perguntei pra ela que história era aquela de ideal. Ela jurou que não sabia de nada, que nunca tinha ensinado o moleque a falar daquele jeito. Você tá de prova, ela continuou. Quando foi que a gente falou de ideal aqui dentro, quando? Na certa, eram as más companhias. Ele já tá meio crescido, ela falou, pára pouco em casa, sai por aí com um monte de moleque que a gente nem sabe direito de onde vem, na certa é com eles que o menino estava aprendendo essas coisas. Eu juro por nossa senhora, disse ela, que eu nunca ensinei essas coisas de ideal pro menino. Se ele anda aprendendo isso, é fora de casa.

Discussão na cama dura pouco. Quando a gente deita, é pra dormir mesmo. Teve época que a gente fazia umas outras coisas, mas agora isso diminuiu também. Eu continuo gostando, eu sei que ela gosta também. Mas nos últimos tempos ela deu de pedir pra gente fazer depressa, porque senão no outro dia ela fica muito cansada na hora de levantar. Depois que tiraram o ponto de ônibus daqui da frente, a gente precisa levantar meia hora mais cedo pra pegar a condução. E meia hora é muito pra quem já dorme tão pouco. Então, naquela noite, a gente nem falou do menino e nem fez aquilo que deixou de fazer faz tempo. Mas que aquela palavra não me saía da cabeça, ah, isso não saía mesmo. Ideal. Onde o menino anda aprendendo essas coisas?

No outro dia, eu chamei ele no canto. Você já tá ficando grande, menino. Logo vai ter de ajudar na casa. O que você acha que vai fazer da vida? Eu ainda não sei, falou o menino. Mas tem de saber, na sua idade eu nem só sabia, como já fazia, eu falei. Eu sei, ele respondeu, mas é que eu gostaria de fazer alguma coisa que me desse prazer. Eu quase perdi a cabeça. Você não responde desse jeito pro seu pai, eu falei. Você tá bem crescido mas ainda pode levar uma coça. Quem anda falando essas coisas pra você, me fala agora que eu vou lá tirar satisfação, eu falei. Ninguém anda me ensinando nada, pai. Como não anda? Claro que anda. Ontem você falou de ideal, agora você vem me falar de prazer. Na sua idade, se eu falasse umas coisas dessas pro meu pai, eu levava um tapa na boca que ia ficar três dias sem comer. Mas o que é que tem demais, o menino perguntou. Eu vou te ensinar o que é que tem demais, repete isso que eu te ensino, falei por último e mandei o menino direto pro quarto. Depois eu fui junto, eu e a mãe dele, porque é um quarto só na casa.

Naquela noite eu tive um pesadelo. Sonhei que caía uma chuva braba, dessas que alagam o bairro inteiro. E era cada trovão, mas cada trovão. Só que o trovão não fazia barulho de trovão, a cada vez que o céu ficava branco, o que eu ouvia vindo lá de cima, em vez do trum, trum, era ideal, prazer... Parecia que as nuvens ficavam gritando na minha cabeça, com voz de macho doente: ideal, trummmm, prazer, trummmmm. Acordei ensopado. Olhei pro lado e o menino já tinha levantado. Agora esse menino deu de me atormentar até de madrugada, eu ralhei. Fui pra cozinha e a mãe dele já tava coando o café. Cadê o seu filho, eu perguntei. Ele já foi. Ele disse que nem conseguiu dormir direito, de tanto que você roncava, se mexia e falava alto de noite, ela disse. Culpa dele, tudo culpa dele. Ele foi pra aonde, eu perguntei. Ele foi andar por aí, sem rumo. Ele tomou um gole de café e disse que ia andar, porque hoje.... ela parou no meio da fala. Por que hoje o quê, mulher? Você anda escondendo coisa de mim, eu gritei. Porque hoje ele me falou que tinha acordado feliz, ela falou. Feliz? Feliz aqui? Nesta casa? Eu não tô dizendo. Esse menino vai acabar dando trabalho pra gente. Escuta o que eu digo.

6 comentários:

Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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João Roncatto disse...

Caraca Roveri.
Que magnífico, é seu isso?
É forte lindo pra pensar muito.
Adorei meu querido.

Rafinha! disse...

Adoroquando meu RSS pisca uma postagem nova aqui. Achei o texto impressionante, não sei, talvez devido a proximidade dos fatos com nosso próprio dia-a-dia.. é chocante!

Parabéns :D!

Guilherme Nullius disse...

Cruelmente lindo.

Só no blog disse...

Rafinha e Guilherme, muito obrigado pelas palavras e pela visita aqui. Valeu mesmo