domingo, agosto 19, 2007

Um passado nada consta

Sempre gostei daquelas entrevistas típicas de alguns programas de televisão, ou de revistas mais populares, em que o entrevistado deve discorrer sobre um sonho, uma cor, uma música, um filme e até um prato predileto. Seja pelo tempo mínimo de leitura que ele nos exige, seja pela peculiaridade de algumas respostas, o certo é que nunca consegui resistir a este tipo de jornalismo em pílulas, que nos traz revelações desta magnitude: cantora predileta - ella fitzgerald; cantor predileto: belo... Termino a leitura imaginando como estes dois podem coexistir pacificamente dentro do mesmo cd-player e só posso concluir que estas pequenas entrevistas nos ensinam gandes lições de convivência. Mas todas elas trazem um tópico, geralmente o último, no qual eu passo muito tempo pensando. Um arrependimento, pede o repórter. Nenhum, responde o entrevistado. Podem reparar que nestas entrevistas de revistas ou da tevê, nunca ninguém se arrependeu de nada. No máximo, eles dizem que só se arrependem daquilo que não fizeram. Eu fecho a revista e fico pensando: será verdade?

Se algum dia eu fosse convidado a participar de uma enquete desta, talvez eu também respondesse que não estava arrependido de nada, somente para fechar logo este capítulo e não ser mais incomodado com isso. Estaria mentindo, porém. Se quisesse ser mesmo sincero, talvez eu fosse obrigado a resgatar aquelas palavras ásperas ditas em horas inoportunas, que, a despeito de todos os pedidos posteriores de desculpas, nunca mais voltaram para a minha boca; das vezes em que eu deveria estar em algum lugar e talvez por covardia estava em outro; das amizades que vi fenecer e pouco fiz para reanimá-las, do excesso de prudência com que conduzi alguns episódios da minha vida, quando na verdade o momento pedia rock num carro veloz e de vidros abertos; das drogas que não experimentei e de todas as outras que experimentei à exaustão; do medo de agarrar pela crina aquele cavalo selvagem que passou galopando à minha frente, pela minha incapacidade de reconhecer nele uma chance única que o destino estava me dando; dos palavrões que não proferi e que, justamente por não terem sido ditos, me deixaram um gosto amargo na boca; dos outros que disse, mas quando a ocasião já havia passado; de ter voltado cedo para casa quando o melhor da festa era seu depravado final; de não ter sido tão bom; de não ter sido tão mau; de ter confundido com taquicardia os primeiros sintomas de um possível amor; e, finalmente, de não ter notado a abissal diferença que existe entre o que não fiz e o que deixei de fazer. Enfileirados assim, parecem até sinônimos - mas cabe um Corcovado entre estes dois gestos.

Eu jamais saberia como seria minha vida agora se não tivesse tomado as decisões que tomei - ou, por outro lado, se tivesse tomado as decisões que não tomei. Mas não me preocupo com este exercício inútil de adivinhação. Se não fosse isso, seria aquilo; ou se não fosse aquilo, teria sido isso - e provavelmente eu continuaria aqui, neste mesmo lugar e desta mesma maneira. As decisões foram tomadas e parece não haver muito mais a ser feito. Como sinceramente não me lembro de algum dia ter agido de má-fé ou motivado por algum mau-caratismo explícito, me consola saber que o que eu fiz era o que eu podia ter feito naquele momento - talvez nem mais, talvez nem menos. Mas tudo aquilo que deixa um gosto morno na boca também costuma doer. Hoje eu me deito na cama e durmo. Como diria meu pai, quando eu era criança, o merecido sono dos justos. Mas acho que os grandes momentos, as grandes ocasiões em que a vida realmente parece valer a pena, são aqueles em que os nossos companheiros são a insônia e o sobressalto.

Daí eu volto a pensar naqueles artistas e famosos que nunca se arrependeram de nada, que sempre tomaram a decisão correta, que nunca se culparam por nenhum reverso travado que fez o avião deles cair de bico quando o céu estava azul, a pista seca e nem vento havia, que nunca foram para a cama acreditando que, por culpa deles mesmos, a noite seria longa e fria e solitária demais, que nunca foram extremamente cruéis consigo próprios, que nunca perderam a tacada final quando o jogo estava praticamente ganho e que nunca, ao que tudo indica, perderam alguns momentos preciosos imagiando como seriam suas vidas se em vez de terem virado à direita tivessem dobrado à esquerda... Daí eu volto mais uma vez a pensar neles e, sinceramente, eu não os invejo. Quando os meus arrependimentos me abandonarem, todos eles, daí sim eu passarei a achar que há algo errado na vida. Muito errado.

2 comentários:

Anônimo disse...

é isso. obrigado por abrir meus olhos para o q está bem na minha cara.

ismael.

Marcelo disse...

Me arrependo de muita coisa. Uma delas foi ter passado tanto tempo sem falar com pessoas tão ótimas e incríveis como vc e a "mãe" Ricca. Obrigado por ser tão generoso (é bem mais fácil fazer isso pelo teclado, mas um dia digo isso pra vc)!
Bjs