Como era de se esperar de qualquer filho, havendo a possibilidade, é claro, passei este Dia dos Pais ao lado do meu, em Jundiaí. Faz quase 20 anos que troquei a casa dos meus pais por um canto meu, aqui em São Paulo - e até hoje continuo me perguntando se algum dia a gente realmente consegue sair da casa dos pais sem se sentir irremediavelmente preso a uma infinidade de lembranças nas quais os nossos pais continuam a ser uma das presenças mais constantes. Talvez a gente consiga, sim, sair da casa dos pais. O difícil, acredito, é conseguir algum dia tirar a casa dos pais de dentro da gente, mas talvez nem seja este o caso. Ainda me lembro do dia em que parti: minhas coisas eram tão poucas que couberam tranquilamente dentro do meu primeiro carro, um gol azul 1986. Quando eu estava fechando o porta-malas, ele me perguntou se eu não gostaria de ficar mais um pouco por lá, uma semana que fosse, até que eles se acostumassem melhor com a idéia de que o caçula, que já nem era tão caçula assim, estava indo embora. Eu respondi que se não fosse naquela hora, na semana seguinte ia ser mais difícil, e mais difícil ainda na próxima. Era naquela hora ou provavelmente nunca. Vim.
Nestes quase 20 anos vi bem menos o meu pai do que o via quando o nosso teto era o mesmo, claro. Sei que a gente pode sempre dizer que a relação melhorou, que o carinho se tornou mais refinado, que os diálogos agora brotam sem tantos conflitos, que conversamos hoje quase como dois amigos, coisa difícil de ocorrer quando disputávamos a mesma tevê, o mesmo chuveiro, o mesmo lugar na mesa e todas as outras mesquinharias que só conhecemos quando dividimos nosso espaço com alguém. Tudo melhorou, admito - mas tudo também se tornou um pouco menos intenso, um pouco menos colorido, um pouco menos acalorado. Senti pela primeira vez que meu pai estava envelhecendo há alguns anos, quando eu tive alta após uma operação de hérnia e ele foi me buscar no hospital. Seus reflexos no volante estavam começando a falhar, ele conduzia o carro muito devagar, prestava pouca atenção nos cruzamentos e nos sinais e parecia tão desatento que, naquele instante, eu achei que tinha sobrevivido à cirurgia mas talvez não sobrevivesse àquela curta viagem do hospital até a minha casa - ou melhor, até a casa deles.
Claro que depois deste primeiro sinal, todos os outros despencaram sobre ele com uma velocidade assustadora. É como se o nosso pai, que em algum momento pôde mesmo ter sido o nosso super-homem, agora estivesse sob um ataque impiedoso de criptonita, que vai diminuindo sua audição, sua visão, seu entusiasmo pela vida. Dei de presente para ele, hoje, uma camisa - do mesmo tamanho de tantas outras camisas com as quais eu lhe presenteei ao longo da vida. Mas agora ela estava maior - a manga comprida desrespeitava os limites do pulso e quase chegava aos dedos; os ombros estavam mais caídos - parecia que havia muita camisa para pouco pai. Claro que esta visão me trouxe lágrimas aos olhos, que eu elegantemente escondi. Mas, cinco minutos depois, ele voltou a me dar outra pequena lição, destas que só os pais sabem nos dar, ainda que nem queiram. Ele tem um canarinho amarelo-escuro que, também vítima do tempo, está ficando cego e, depois de dez anos, já não canta mais. Meu pai colocou alpiste e um pedaço de fruta em sua gaiola e depois o conduziu com a mão até o alimento. E ficou ali, ao lado dele, até que ele comesse quase tudo. Quando a operação terminou, ele disse para mim - ou talvez para ele próprio: a vida não é fácil nem para os canarinhos. Este é o meu pai, ou uma faceta dele.
domingo, agosto 12, 2007
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4 comentários:
Que lindo,amor.Vamor cuidar bem desses nossos canarinhos tão queridos.Beijos.
Meu pai sempre foi orgulhoso demais para aceitar cadeiras de rodas, mesmo com dificuldade e lentidão vencia em pé a pólio com suas bengalas. De uns anos para cá o tenho visto aceitar as cadeiras em aeroportos e shopings. Invariavelmente faz piadas da própria condição, para disfarçar o desconforto. Espero que quando chegar minha hora de abdicar do orgulho eu também o troque pela sabedoria e o bom humor. Lindo texto Roveri. Forte Abraço. Elton
olá, passei para dar um oizinho...sábio seu pai... até canarinho do reino sofre.. como Angela Rorô fala, a natureza é fria e cruel. rsrsrs. Bjs
Olá Sérgio, tudo bem?
sou jornalista em Jundiaí e gostaria de entrevistá-lo para a revista do HSE. Pode ser? Por favor entre em contato: renata.martinho@ig.com.br. Abs,
Renata
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