Acho que poucas coisas despertam mais a saudade da infância, principalmente para quem foi criado no interior, do que as festas juninas. Há muito tempo que não participo de uma delas, mas é muito comum que, nesta época, um fim de tarde qualquer nos surpreenda com um cheiro de fogueira, de pinhão cozido, o som distante de uma quadrilha (nada a ver com o cotidiano de Brasília) e, ainda mais raramente, com a imagem um garotinho cruzando a rua de chapéu de palha e um bigodinho de carvão desenhado pela mãe. Normalmente ele segue de cara amarrada, talvez se perguntando como aquela imagem ingênua e folclórica de um caipirinha ainda pode se encaixar entre os concretos desta cidade. Mas eu ainda acho mais comovente observá-los de jeca-tatu do que fantasiados de bruxas e gnomos de um halloween que não desce pela garganta de ninguém.
As festas juninas nunca foram um mistério para a minha infância porque, desde o início do ano, quando meu pai aparecia em casa com a folhinha ganha de brinde na farmácia ou no mercado, a gente já ficava sabendo direitinho quando seria o carnaval, a páscoa, o dia de São João. Mas o que movimentava mesmo a vida da molecada do bairro, ah, isso a folhinha não trazia. Eram as épocas. Provavelmente hoje chamaríamos de temporadas, mas na infância chamávamos de épocas...Época dos papagaios, de rodar o peão, dos carrinhos de rolimã, das bolinhas de gude, dos jogos de taco e outras brincadeiras das quais já devo ter me esquecido.
Até hoje, aquelas práticas sazonais ainda me deixam muito intrigado. Quem avisava os moleques do bairro que, em determinada manhã, todos deveriam correr à papelaria e comprar folhas de papel-manteiga e varinhas de bambu para fabricar papagaios na mesa da cozinha? Como todos sabiam que, num sábado qualquer, teríamos de sair às ruas com nossos saquinhos de bolinhas de gude cheios até a boca? Quem nos alertava sobre a importância fundamental de guardar as latinhas de massa de tomate porque, no dia seguinte, eles seriam convertidas em aparelhinhos de telefone ligados por um barbante branco? Era como se todos nós, os meninos da rua, obedecêssemos a um misterioso ciclo da natureza, o mesmo que obriga as cigarras a cantar, as formigas a trabalhar e as fêmeas a tosar o próprio pêlo com a boca para aninhar os filhotinhos que estão chegando.
Ninguém nos avisava de nada, mas cada moleque, no seu íntimo, sabia muito bem em que época do ano ele devia sair de casa já com as bolinhas, os papagaios, os carrinhos, os peões ou a lenha para as fogueiras na rua. Ninguém errava, ninguém descumpria aquele contrato firmado sabe-se lá com quem. O certo é que da mesma maneira que as épocas começavam subitamente, mais subitamente ainda elas desapareciam. Uma bela tarde, a gente voltava para casa e, novamente sem que ninguém nos instruísse, íamos silenciosamente guardar o papagaio no fundo de uma gaveta qualquer, pois no dia seguinte eles não riscariam mais o céu. A nova manhã traria as bolinhas, ou os carrinhos de rolimã ou as latinhas de massa de tomate. E era assim que os nossos dias e semanas eram contados, e era assim que a nossa infância corria, entre uma brincadeira e outra. E foi assim também que, em algum dia sem que ninguém mostrasse qual, as ruas amanheceram vazias. Nós, que durante anos inconscientemente combinamos todas as brincadeiras de infância, devemos ter concordado também que, na manhã do dia seguinte, já de alguma forma maduros, guardaríamos nossa infância dentro de uma gaveta qualquer e que, em função disso, sairíamos às ruas para outros compromissos que também traziam alguma coisa em comum: o poder de enviar cada um de nós para um canto diferente da vida. Para todo o sempre.
terça-feira, junho 12, 2007
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5 comentários:
Eu vivi “as épocas”. Lindo texto, mas também triste. Triste porque sou um dos meninos que ainda está aqui, no interior. Triste porque faz décadas que não vejo um moleque numa oficina pedindo um rolamento, ou trepado numa árvore desenroscando uma pandorga (papagaio no RS). É triste sermos os últimos representantes “das épocas”. De qualquer forma te dou 5 das minhas melhores bulitas pela doce lembrança. Abraço desse moleque que não saiu daqui.
Obrigado pelo comentário, querido. É que também me bateu uma certa nostalgia ao me lembrar de tudo aquilo...E de ficar pensando: onde foram parar todos aqueles meninos, não? Super abraço.
Depois da primeira vez que entrei no teatro Oficina brincando de Ciranda Cirandinha, comecei a pensar em como seria divertido colocar em prática idéias malucas de intervenções infantis, do tipo brincar de roda na estação Sé do metrô às 6 da tarde, convidando as pessoas que passassem a participar. Ou fazer um campeonato de queimada no vão livre do MASP. Ou ainda pular corda na entrada de algum edifício de escritórios (e chamar os engravatados e as mulheres de salto alto para entrarem na corda). Pequenas bobagens, pequenas infantilidades, mas uma forma de brincar de resgatar esse universo, nem que seja por 40 segundos antes dos seguranças mandarem sair dali.
E ler o seu post me deu uma saudadezinha da época em que não tínhamos vergonha de fazer bobagens como essas (eu adorava me vestir de caipira nas festas juninas...). Fico imaginando o quanto não seria divertido provocar essa cidade tão séria como essa em que vivemos com uma grande quadrilha vinda do nada, em algum lugar público... Com direito a bigodes pintados (ou reais, agora já temos idade para tê-los, hehehe), camisas xadrez, calças remendadas e claro, chapéus de palha...
Oi, Maurício. Acredita que consegui visualizar tudo isso que você descreveu? Achei sua idéia o máximo. Acho que se rolasse isso, eu encontraria uma camisa xadrez no fundo do armário pra engrossar esta quadrilha urbana, viu.
Grande abraço
emocionante. eu também lembrei das minhas épocas. não cresci em jundi, mas no meu tempo de menino o jardim paulista e a alameda casa branca, onde passei o fim da infância e a adolescência, eram parte de uma pequena vila do interior, que tinha todas as épocas possíveis. era bom na bicicleta e nas bolinhas de gude. nos papagaios sempre fui uma negação. obrigado pelo texto, poeta.
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