Um articulista do jornal Folha de S. Paulo escreveu esta semana um artigo muito curioso sobre como a medicina, mais especificamente a psiquiatria, resolveu tratar como doença, ou síndrome, o que até algum tempo atrás não passava apenas de comportamentos específicos. Assim, práticas como assaltar a geladeira à noite, colecionar coisas antigas, ter dificuldade em se desfazer de papéis sem importância, ser tímido ou expansivo já são assuntos para consultórios médicos – em alguns casos, até com necessidade de medicamento. Pode-se concluir, ao final do artigo, que qualquer comportamento que nos desvie um pouco do que seria o grande consenso social já pode ser curado, reprimido ou adaptado. Em pouco tempo, graças à lábia dos psiquiatras e a prescrição de novas drogas, todas as nossas arestas seriam aparadas – e a sociedade seria composta de pessoas insuportavelmente parecidas. Ou não.
Pensando nisso eu resolvi, mais uma vez, escrever sobre assuntos que eu não domino. E sobre os quais eu deveria manter uma prudente distância – mas a vontade de falar novamente venceu. O artigo, que poderia suscitar uma onda de preocupação e desânimo, me deixou feliz. Feliz por acreditar que nem todos enxergam esta questão pelo mesmo ângulo do articulista e, principalmente, por acreditar que existem pessoas que jogam todas as suas fichas na valorização das diferenças e na obtenção do prazer por meio delas.
Já revelei aqui que faço terapia há muitos anos e se tivesse de resumir em poucas palavras o que me empurrou para o divã diria que foi justamente a vontade de desaparecer na multidão, de conduzir os meus desejos e anseios na direção das grandes massas, de implodir em mim tudo aquilo que, a princípio, me distanciava da grande conduta social que ensina que crescemos para casar, ter filhos, conservar num emprego fixo, buscar algum tipo de prosperidade e segurança na vida profissional, engolir a rotina em doses diárias e assegurar-se de que a velhice jamais nos encontrará desprevenidos.
Tente fazer de mim uma outra pessoa, talvez eu tenha dito ao meu analista em nosso primeiro encontro. Ou, na medida do possível, faça de mim alguém muito parecido com todo mundo, inclusive na infelicidade. Me enquadre, eu devo ter solicitado. Diante de um pedido tão impositivo, percebo hoje que meu terapeuta precisou de muito tempo e de muito jogo de cintura para me desobedecer sem que eu me desse conta. Precisou de muito tempo para me mostrar que eu só teria algum valor se aprendesse a cultivar tudo aquilo em que eu queria dar fim. Que eu só seria reconhecido como pessoa, principalmente por mim mesmo, se eu percebesse que a diferença que tanto me incomodava era a minha digital neste mundo. Que aquilo que me fazia distinto, e por isso mesmo desconfortável em algumas situações e deslocado na maioria delas, era o que precisava ser cuidadosamente lapidado para se converter em fonte de prazer e alegria. E que se meu desejo às vezes resolvia cortar caminho por algum atalho escuro, que ótimo: era ali que eu seria apresentado à surpresa e ao acaso da vida.
Ser o que somos é algo que vamos aprendendo aos poucos. Não costuma ser fácil e muito menos indolor. Mas a alternativa a isso pode ser ainda pior: é a gente se transformar numa fotografia desfocada e arruinada pelo tempo, cujas feições não serão reconhecidas nem por nós mesmos daqui a pouco. E, para encerrar, existe coisa mais prazerosa do que assaltar a geladeira de madrugada, ainda que seja de vez em quando?
sexta-feira, julho 03, 2009
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14 comentários:
é sempre um enorme um prazer ler você.
sempre tem alguma coisa em seus textos que é exatamente aquilo que eu sempre pensei, mas que só descobri quando li... deu pra entender?
Oi, Fátima, muito bom ouvir isso. Muito obrigado, é um incentivo para eu continuar a escrever por aqui...beijão.
Cada texto seu é uma obra prima.Vc diz o que sinto,expressa meu desencanto e aponta caminhos.Vamos assaltar a geladeira sem culpas....
Querida, eu só tenho assaltado menos a geladeira porque depois dá uma preguiça de escovar os dentes de novo, né? se não fosse por isso....
É o fetiche do patológico, para manter a tão doce e cômoda normalidade de tudo. Afinal, louco era o Machado, não nós.
Excelente texto! Assisti às peças "A Noite do Aquário" e "Ensaio para um adeus inesperado". Sai do SESC muito tocado pelo sensibilidade como foram tratados temas tão perturbadores. Torço para que continue escrevendo!
Um abraço.
Espetacular. Lindo. Tocou-me profundamente, porque eu me vi naquelas palavras. Abração, meu caro.
Grande Paulo: que honra ter você como leitor, querido. Valeu demais pela mensagem. Super abraço, roveri
Eu sou pior que colecionador de papel velho: eu faço arquivos de coisas (aham) "interessantes", recortes de jornais e revistas, folhetos, cartões postais. Mimata !
Fiquei curiosa para ler esse artigo. Quando foi publicado?
Faz algum tempo que tenho lido seu blog...sempre encontro boa leitura. Recentemente também fui ver Dueto da Solidão do Sesc Vila Mariana e gostei bastante das peças! Fiquei com vontade de ir no dia 22. Espero que ainda tenho ingressos!
Oi, Lívia, tudo bem? Então, este artigo foi publicado na Folha de São Paulo, edição de 30 de junho, terça-feira da semana passada. Sobre a peça, brigadão por ter ido. Deve rolar ingresso para o dia 22, sim. É difícil comprar no dia, mas um pouco antes sempre rola.
beijão
sérgio
Fazer um comentário depois do que você escreveu não é fácil. Confesso que já estou a alguns minutos olhando pra tela do computador sem conseguir digitar uma palavra. Sabe quando algo te toca tão profundamente que esquece de respirar? Então...é isso.
Bj.
Oi, Janaína, que ótimo retorno você me dá. Muito obrigado. sérgio
Minha terapeuta ainda está tentando me convencer disso...
Será que ela vai conseguir????
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