Meu avô tinha um toca-discos que mais parecia uma escrivaninha. Era um móvel robusto, de madeira clara que, à falta de um piano, fazia as vezes de peça de decoração. Talvez por isso ocupasse um lugar de destaque na sala pequena, pesadamente apoiado sobre um tapete grosso. Foi ali que eu ouvi pela primeira vez um disquinho azul, de plástico, com a triste história do garoto Mogli. Eu devia ter entre seis e sete anos e aquele foi meu único disco por um longo período. Eu não devia gostar muito de música. Eu deixava o tal disquinho junto com uma coleção de LPs de Nelson Gonçalves, que eu nunca soube se pertencia ao meu avô ou a um tio solteiro.
Quando meu avô morreu, por algum motivo resolveram vender o toca-discos junto com a coleção do Nelson Gonçalves. Eu andava muito preocupado com as brincadeiras de rua, as bolinhas de gude e os balões para protestar contra o sumiço do toca-discos. E provavelmente já estava enjoado de ouvir a historinha do Mogli. Naquele dia, a música deve ter saído da minha vida sem grandes traumas.
Mas este jejum sonoro duraria pouco. Algum tempo depois, pedi a meu pai que me desse dinheiro para comprar um disco. De início ele recusou, indagando o que eu faria com um disco quando não tínhamos mais onde ouvi-lo. Primeiro a gente compra um disco, eu me lembro perfeitamente de ter dito. Depois o senhor compra um outro toca-discos para mim. Ele ignorou o pedido por vários dias, até perceber que eu não desistiria.
E então, num sábado de manhã, com o dinheiro exato para a compra de um disco no bolso, eu tomei um ônibus em direção ao centro da cidade de Jundiaí, onde havia apenas duas lojas de discos naquela época: a Casa Carlos Gomes, com um repertório um pouco mais refinado, e o Credi Curadinho, que vendia temas de novelas e álbuns de artistas nacionais bem mais populares. Entrei orgulhoso na Casa Carlos Gomes e, minutos depois, saí de lá com um disco embrulhado em um plástico branco, com o logotipo da loja.
Voltei de ônibus com a altivez de quem carregava uma joia debaixo do braço. Uma jóia e também uma missão espinhosa: convencer meu pai a cumprir a segunda parte do meu pedido e comprar um toca-discos novo – na época chamávamos de sonata. Levou um certo tempo, mas ele cedeu. Naquelas semanas em que eu não tinha como ouvir o disco, eu me contentava em olhar para a capa e ficar o dia todo pendurado no rádio, na esperança de ouvir ali a música que eu carregava nas mãos.
O disco, o primeiro disco que comprei na vida, menino ainda, era One Day in Your Life, de Michael Jackson, cuja letra eu sabia de cor sem conhecer uma palavra de inglês. Nas semanas que passei à espera do toca-discos, eu embalava aquele disco como as meninas embalavam suas bonecas. E quando a sonata finalmente chegou, também num sábado, Michael Jackson, acho que recém-saído do Jackson Five, fez a primeira trilha sonora da minha vida.
Ao ler incrédulo a notícia da morte de Michael Jackson, na tarde triste e chuvosa de quinta-feira, toda esta história voltou com um frescor inimaginável. Se eu fosse apegado a clichês, diria que me lembrei de tudo como se fosse ontem. E por muitos minutos não acreditei na notícia. Como é possível morrer quando se é Michael Jackson? Mais que um nome, mais que um artista – uma marca que nos acompanhou durante toda a vida. É como se alguém dissesse que morreu a Coca Cola.
E, depois da lembrança do primeiro disco, foram voltando as outras: as festinhas ao som de Off the Wall e Thriller, as intermináveis noites tentando imitar sua dança genial em uma discoteca perdida do interior, os meninos fazendo cara de vilão ao som de Bad, a espera pelo tão anunciado retorno do Jackson Five, a vinda dele ao Brasil... E então, de repente, Michael Jackson vai embora e deixa na gente aquela triste sensação de que a festa acabou. O DJ desliga o som, as luzes vão se acendendo, a cerveja terminou faz tempo e tudo que nossos olhos enxergam quando passeiam pelo salão é uma tristeza quase palpável e um ou outro bêbado esquecido pelos cantos.
E então a gente tem a certeza de que, naquele chão, grudento com os restos de bebida e bitucas de cigarro, nunca mais ninguém vai deslizar com tanta elegância.
sexta-feira, junho 26, 2009
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6 comentários:
"como é possível morrer quando se é Michael Jackson?" O triste é que ele vinha morrendo há tempos, perdido no labirinto de Neverland... Mas será que morre mesmo um artista de quem cada um de nós tem um pedacinho de história pra contar? bjs
Pois é, querido. Eu me fiz esta mesma pergunta agora há pouco. Estava voltando pra casa, duas da manhã, e no rádio do carro começa a tocar não Michael Jackson, mas Elis Regina. E daí a gente se pergunta: mas quem morreu, afinal?
Seus textos sempre bem escritos e agradáveis de ler.Confesso que Michael Jackson nunca foi meu ídolo,no entanto reconheço a importãncia dele pra minha geração.A gente nunca espera a morte de um superstar,acho que passa na nossa cabeça um sentimento de atemporalidade como se ele fosse eterno.E quando acontece de partir o sentimento de orfandade é inevitável.
O que nos deixa confuso é tentar juntar a arte do Michael Jackson com o humano dele. O que morreu foi o humano, a parte de nós que pode morrer. A sua arte, o que ele conseguiu colocar de si no mundo, isso é eterno. A verdadeira arte, a verdadeira diferença que se faz no mundo, afeta as pessoas e por isso nunca morre.
Fico sempre muito emocionado com a maneira como vc descreve as situações ! LINDO , SUBLIME !
ABS !
Tetê, Janaína e Albérico: mais uma vez, muito obrigado pelo carinho e torcida de vocês neste espaço. beijão
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