sábado, abril 11, 2009

Sonata de outono

O jornalista Carlos Heitor Cony disse esta semana que ele se dá conta de que o outono chegou porque a praia que observa da janela do seu apartamento no Rio está mais deserta, as ondas têm um quê de dourado e o preço da água de coco, em função da queda na procura, baixou. Eu também sou avisado de que é outono por um retrato mais prosaico, mas nem por isso menos poético. Quando eu acordo, meus dois gatos, o Pirulito e a Ritinha, estão juntos na sala, disputando uma nesga de sol que também tinge de dourado não as ondas, que estas eu não tenho, mas o meu tapete que um dia já foi mais branco. Ao longo do dia, com o silêncio e a resignação dos ponteiros de um relógio, os gatinhos vão acompanhar esta migalha de sol que lhes cabe: por volta do meio-dia se encontrarão no quarto, no sol ao pé da cama, no início da tarde se alongarão pelo assoalho frio da cozinha e se despedirão do sol, no fim do dia, acomodados em uma caixa de papelão colocada sobre a máquina de lavar, na área de serviço. Carrego a estúpida impressão de que eles dedicam os seus dias entupidos de monotonia a perseguir um pouco de calor e conforto. No fundo, nada assim tão diferente do que nós fazemos com os nossos dias também.

Decidi falar do outono porque em maio, provavelmente no dia 12, deve entrar em cartaz um texto inédito meu, chamado Ensaio Para um Adeus Inesperado. Ao contrário do que ocorreu nos últimos anos da minha trajetória, trata-se de uma peça que não foi encomendada por nenhum diretor ou projeto. Era algo que eu queria escrever, ou ao menos precisava. Uma história que eu presenciei há muitos anos e com a qual eu só consegui fazer as pazes agora, que ela saltou da minha garganta para a tela do computador. É um texto aparentemente difícil para os atores; em vez da agilidade que os diálogos costumam proporcionar, eles têm de dar conta de pequenos blocos de monólogos, oito ao total – quatro para o personagem da mãe e outros quatro para o seu jovem filho. Foi a solução narrativa que encontrei para tentar explicar um evento no qual nunca coube qualquer explicação.

Em um momento da peça, já perto do final, o personagem da mãe revela sua opinião sobre o outono. “Eu não gosto do outono”, ela diz. “O outono, para mim, sempre foi uma não-estação, um período de entressafra, um momento em que a natureza tenta nos dizer que ela não sabe se administrar com muita eficiência também. Não é muito quente e nem muito frio, não é muito claro e nem muito escuro. Eu sinto como se a natureza nos dissesse, a nós, os seres humanos: tenham calma, eu estou tentando me ajustar. Mas isso leva algum tempo, alguns meses talvez. Enquanto isso, os dias terão de ser um pouco mais curtos. O que está por vir, eu temo, talvez seja um pouco pior”.

E então eu vejo estas manhãs tão radiantes, estas tardes tão luminosas, e quase chego a discordar desta mãe. Mas percebo que ela não está de todo errada. Como ela, eu também penso que o outono não é uma estação pronta. O verão se revela completo, assim como o inverno. Talvez até mesmo a primavera. Mas o outono, não. É a estação do sobressalto, de uma calma enganosa, de uma luz tão extasiante porque sabemos, antes de mais nada, que ela é efêmera. Sinto que é a estação da nossa grande cartada , aquele momento em que a cigarra, se prudente fosse, talvez percebesse que havia chegado a hora de recolher o seu canto. Os dias são tão magníficos, às vezes tão sorrateiramente magníficos, que é como se eles quisessem nos alertar que depende só de nós decidir se o inverno que se avizinha irá se instalar apenas nos termômetros ou também nos nossos corações.

12 comentários:

Anônimo disse...

que lindo texto. tenho muita vontade de ver o espetáculo. tomara que os horários permitam. ainda não vi o "encontro". não deu. fiquei muito tocado pela coisa do outono. outro dia escrevi sobre. voltarei a escrever em breve. verás por que. beijo grande. guza

fátima disse...

conheci seu blog pq. semanas atrás a rê, do frango com banana, me remeteu a um texto seu sobre avaliação física.

voltei algumas vezes. adoro seus textos.

Só no blog disse...

Brigadão, querido. Eu torço para que voc~e consiga ver o espetáculo, sim. Espero que role.
beijão

Só no blog disse...

Olá, Fátima, muito obrigado pela visita. Volte quando quiser, você é sempre bem-vinda. Abração, sérgio

Anita disse...

Amo o outono do Brasil, gosto de meio-tons !

Anônimo disse...

Oi Roveri,
Seus textos são verdadeiras "pérolas" e me fazem refletir sobre muitas outras coisas. Merda nessa nova estreia e com certeza estarei lá para conferir. Um grande abraço! FRED.

Só no blog disse...

Oi, Fred, muito obrigado. Já está feito o convite! abração

Anônimo disse...

Puxa quero essa peça, mas antes vou conferir o Encontro das Águas, texto que eu amo. Embora eu goste do colorido da primavera, não há estação como o outono. É perfeita. O que eu mais gosto no outono é que sua luz é igual no mundo todo. De um alaranjado que lembra os primeiros desenhos com lápis de cor. Sábado a noite, ao voltar do interior, dei de cara com a primeira lua de outono. Ela surgiu imponente perto de Jundiaí. E nos seguiu até São Paulo. Meio que nos protegendo. Foi lindo.Beijos de outono. Rachel

Só no blog disse...

Oi, Rachel. A lua surgiu em Jundiaí, então!!!! Hum, foi lá que eu nasci. Viu que boa escolha? beijão

Anônimo disse...

viu só...Jundiaí sempre nos presenteando.beijos, Rachel

Anônimo disse...

Olá, Sérgio! Muito tempo que não escreve mas leio sempre. É bom ler seus textos, alguns ressoam por tempos; falando em gatos, lembro daquele do seu antigo gato que já se foi, entre muitos outros... O da Dama do Telhado, logo acima, é sutil, mas toca fundo. E dá conta da anestesia emocional em que nos encontramos. E este texto sobre o outono, sobre a nova peça e sobre gatos traz afeto, traz a busca de calor, traz a nossa vontade de buscar saúde, seja através do sol, da exposição dos sentimentos etc. Que bom que este Adeus Inesperado vai estrear no outono, tempo em que a luz é outra, em que as folhas se jogam por terra pra constribuir de outra forma, e que o frio nos induz ao interior pelo exterior, nos induz à reflexão talvez. É uma passagem, uma estação; e a paisagem interna capta de alguma forma esta paisagem externa: que entrem em comunhão!
bjim, Valéria

Só no blog disse...

Oi, Valéria, como vai? Faz um tempão que a gente não se fala, né? Espero que esteja tudo bem com você. Muito emocionante o seu comentário, brigadão mesmo. Beijão, sérgio