segunda-feira, abril 06, 2009

Duas historinhas para uma segunda-feira

Passei a semana toda me lembrando de dois artigos da Danuza Leão publicados há muitos anos na Folha de S. Paulo. Talvez fosse mais chique dizer aqui que passei a semana inteira pensando em Proust, Tchekhov ou Sarte, mas o mal é que nem sempre a gente é chique, então me ocupei mesmo com a irregularidade por vezes frívola da Danuza Leão. Mas estes dois artigos, como eu disse muito antigos, por algum motivo se alojaram na minha cabeça e talvez não saiam de lá tão cedo.

O primeiro deles dizia respeito a algumas pessoas solitárias que ela via perambulando pelos botecos do Rio de Janeiro tarde da noite. Eram pessoas, segundo ela, com o olhar perdido e vazio, uma garrafa de cerveja pela metade e um desejo quase cirúrgico de companhia. Quando li este artigo, eu morava na Avenida Brigadeiro Luís Antonio, a duas quadras de um boteco muito parecido com o descrito pela Danuza, na ambientação e na frequência. Sempre que eu voltava para casa a pé, de madrugada, eu olhava para aquele balcão sujo, aquelas mesas simples com um paliteiro e um vidro engordurado de ketchup sobre uma toalhinha que um dia devia ter sido branca. E, ocupando aquelas mesas, os poucos personagens que um dia a Danuza soube descrever tão bem. Não com a acuidade de um romancista, coisa que positivamente ela não é. Mas com o olhar amedrontado de alguém que um dia, se não cuidasse bem da vida, talvez terminasse tendo apenas palitos, moscas e uma cerveja pela metade como companhia. O artigo de Danuza me tocou tão sinceramente que mandei um e-mail para ela, dizendo que compartilhava de cada vírgula que ela havia escrito. Foi a primeira vez na vida que escrevi para um colunista– e ela nunca me respondeu. Não faz mal.

O segundo artigo era uma pequena pérola sobre a dor e a saudade. Ela falava do teor dos telefonemas que recebia semanalmente da mãe enquanto esta era viva. As ligações nunca traziam grandes novidades: versavam sempre sobre alguém distante que tinha caído doente, um outro desconhecido que havia morrido, um terceiro que estava terminando o casamento, e tantas outras miudezas que talvez só interessassem mesmo às partes envolvidas. Ela ouvia os telefonemas como um misto de delicadeza e desinteresse e logo depois desligava. Dali a alguns dias a mãe voltava a procurá-la, com novas historinhas sobre os mesmos e batidos temas. Às vezes, ela ligava para a mãe também, mas isto era mais raro. O normal era que a mãe a procurasse.

Um dia, a mãe morreu e com o passar do tempo ela percebeu o quanto aqueles telefonemas lhe faziam falta. O quanto ela gostava de saber, no fundo, de todos aqueles relatos que não chegavam a lugar algum. Os anos se passaram, a vida foi seguindo seu rumo até que um dia ela acordou com uma vontade incontrolável de ligar para a mãe. E desejou, apesar de toda impossibilidade, que a mãe estivesse viva para atendê-la do outro lado. E então, e aí a faca entra no peito e dá duas voltas, ela se deu conta de que já não se lembra mais do número do telefone da mãe.

Tão bonito. E com toda a dor do mundo.

11 comentários:

Iris disse...

Lindo.

(dizer algo mais não expressaria tão bem o que senti ao ler isso)

Anita disse...

Ja li muito o blog da Danusa. Engraçado e' que quase nunca ha comentário dos leitores. Sempre achei que ela fosse frívola quando a lia no JB dando conselho de que brecho visitar no sábado e outras bobagens. Ou entao o livro de etiqueta dela, tao classe media, tao lugar-comum ! Ensinando a nao misturar macarrão com farofa pras crianças e como fugir do camburão de policia se se esta usando salto alto. Mas no blog ela e' uma escritora de primeira ! Textos divinos sobre a morte da gatinha dela, apreciações de como os casais dançavam na década de 50, o operário magrinho e calado que reformou o banheiro dela, um casal anônimo que ela viu num bistro num subúrbio de Paris. Tudo muito tocante.

Só no blog disse...

Concordo com você, querida. Na maioria das vezes, não são textos que me cativam, não. Mas estes dois grudaram na minha memória. beijão, sérgio

Mário Viana disse...

Eu tendo a discordar de vocês. Gosto do que a Danuza escreve, gosto até da frivolidade. E quem achar que o livro de memórias dela é frívolo, precisa ler de novo. É lindo. Como diz a Adelia Nicolete na peça "Rubros": às vezes, um pouco de frivolidade é fundamental.

Quanto a essa história do telefonema da mãe, caramba... eu pensava nisso essa semana. Desde que minha mãe morreu não tenho sabido de tios, primos e congêneres, seres que pareciam´só existir na memória dela. E hoje estão por aí, no limbo das lembranças.

Vida, vida...

Só no blog disse...

Pois é, querido, as mães são esta espécie de mensageiras do que anda meio perto da gente e a gente não enxerga, né... tios, amigos de infância, a nossa história enfim...

Anita disse...

Mario Viana: so queria acrescentar algo: uma certa frivolidade e' essencial ! Eu na verdade me deliciava com as dicas dela no JB ! Eu nao limito os autores de bons textos a tais e tais categorias.

Só no blog disse...

Íris, querida. Obrigado pelo carinho constante.

Anônimo disse...

No dia em que ele se foi eu estava embarcando para uma viagem sonhada. No hall do aeroporto eu só conseguia ouvir o som de uma música do Jota Quest "Facil, extremamente fácil..", que tocava numa propaganda de um banco. Acho que a ouvi umas 20 vezes até embarcar. Passados 10 anos a saudade ainda dói. Lendo esse texto lembrei do quanto dói mais ainda não ter dito tudo. beijos Rachel

Só no blog disse...

Oi, Rachel, eu acho que esta sensação de não ter dito tudo vai acompanhar a gente pra sempre, né? Talvez não tenhamos dito tudo, mas vamos torcer para termos dito o suficiente, né? beijão

Anônimo disse...

Sergio, perdoe-me pelo desabafo. Acordei na madrugada e fiquei me sentindo uma idiota pelo comentário deixado. Aos invés de apenas comentar fiquei falando de mim.É que seu texto me emocionou muito e trouxe a lembrança do dia que meu pai se foi. de verdade, perdoe-me.beijos Rachel

Só no blog disse...

Rachel, querida. Seu comentário foi lindo. Não tem nada do que se desculpar. Este espaço aqui é seu. Beijo grande.