Devo confessar aqui que conheço muito pouco da obra da escritora Lygia Fagundes Telles, que está sendo reeditada pela Cia. Das Letras. Vi alguns dos seus contos adaptados para o teatro, como As Confissões de Leontina e O Saxofone, e devo ter lido no máximo dois dos seus romances. Sei que tenho algumas coisas dela aqui em casa, mas a primeira passada de olho pela estante não localizou o quê. Assim, assumo que me dirigi mais curioso do que entusiasmado à homenagem prestada a ela na noite de terça-feira diante de um auditório lotado no Sesc Vila Mariana.
A cerimônia começou um pouco fria, e cheguei a pensar que aquele seria o tom da noite. Adorável engano. Depois de alguns discursos e depoimentos sobre a obra de Lygia, a cerimônia disse a que veio ao abrir o palco para aquilo que Lygia tinha a dizer – e não para o que havia a ser dito sobre ela. As memórias da escritora foram enchendo o auditório nas interpretações sutis de Eva Wilma, Regina Braga e Luciano Chirolli. As duas primeiras se revezavam nos papéis da própria Lygia e sua mãe – uma pianista amadora que abandonou os estudos para se transformar numa competente dona de casa, autora de uma imbatível receita de goiabada caseira. Chirolli deu vida ao pai da escritora, um homem que perdeu todo o dinheiro da família nos baralhos e nas roletas. “Perdemos hoje, mas amanhã ganharemos”, era seu lema para confortar uma família cada vez mais empobrecida pelo seu vício. Nestas memórias da escritora, costuradas com sensibilidade pela dramaturga Maria Adelaide Amaral, Chirolli interpretou ainda o histórico Alfredo Mesquita, fundador da Escola de Arte Dramática e primeiro diretor a oferecer a Lygia um papel de atriz, e Mário de Andrade, que um dia teria perguntado à jovem escritora se ela preferia ser bonita ou inteligente. Ao ouvir que ela preferia ser inteligente, ele a chamou de tola, dizendo que a beleza valia muito mais. “Eu posso dizer isso com autoridade, pois sou um canhão”. Se tivesse terminado por aí, a cerimônia dirigida por Sérgio Ferrara já teria valido a pena. Mas o melhor estava por vir.
Aplaudida de pé ao subir ao palco para um discurso que deveria ter no máximo 15 minutos, Lygia, que aos 86 anos já aprendeu a fazer pouco caso do tempo, falou sem pressa sobre sua infância, sobre os anos na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde havia apenas seis meninas numa turma de 120 alunos, sobre sua amizade com Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, sobre a Academia Brasileira de Letras e, principalmente, sobre a vida. Sobre a vida que passa muito mais rápido do que a gente espera ou gostaria. Engraçada algumas vezes, confusa e redundante em outras, e absolutamente adorável o tempo todo, Lygia pediu para que a plateia jamais se esquecesse da lição deixada pelo seu pai – perdemos hoje, mas amanhã ganharemos – e clamou para que continuássemos insistindo no amor, no amor individual, no amor coletivo, no amor pelo outro – mesmo que este outro seja o nosso inimigo.
Saí da cerimônia com vontade de ler muito mais coisas de Lygia Fagundes Telles. Mas não necessariamente hoje, não tão logo talvez. Ainda que a vida passe rápido, como ela mesma ensinou, quero continuar por um bom tempo comovido com sua voz, antes de voltar a me comover com suas palavras no papel.
quarta-feira, abril 29, 2009
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8 comentários:
lembro de ter começado a ler a obra da lygia com uns quinze anos. foi a primeira vez que escolhi o que ler, fora os livros obrigatórios da escola e os "da moda". pedi indicação a um professor de literatura e lá fui eu: fiquei completamente encantada.
já faz um tempo que não leio nada da autora. que bem que vc me lembrou!
o evento deve ter sido lindo...
um beijo!
Oi, querida. O evento foi emocionante, de verdade. Já fui atrás de um livro de contos do qual eles tiraram algumas trechos para a cerimônia. Quero conhecer na íntegra, agora. beijão, sérgio
Serginho, Lygia é musa.
Tente achar o conto "Pomba Enamorada". É uma das minhas paixões 'lygianas', ao lado de outro conto, "Emanuel".
Mário, querido. Como eu disse: eu conheço tão pouco da obra da Lygia que fico envergonhado, juro. Mas saí tão tocado daquela homenagem a ela, de ouvir a clareza e a humanidade do discurso dela, que agora quero corrigir esta falha. Valeu pela dica dos contos, irei atrás deles, sem falta.
Sergio,
Teu texto me fez pensar no Tempo por outro ângulo. A vida é curta, as vozes sobram só nos textos ( e na memória, ainda mais fugaz);mas outras vozes surgem. Tão encantadoras quanto. Tua voz é das que ocupam este lugar para mim.
Obrigado por escrever.
abraço forte,
Aimar
Aimar, queridão. Muito obrigado pelo carinho e pelo incentivo que me animam a continuar com minhas divagações por este espacinho aqui. abração
"Ciranda de Pedra" foi um livro fundamental pra eu pegar gosto pela leitura em definitivo - isso bem antes da novela. Tenho muito carinho por esse livro.
Lygia é uma escritora que escreve sobre a condição humana. Nos vemos em seus personagens com seus medos, desejos, dúvidas e, principalmente, entre a razão e a loucura, a vida e a morte. A maior lição dessa escritora é rirmos de nossas próprias desgraças para que a vida seja mais leve.lygia é para ser lida,depois somos fisgados por ela e quando percebemos já estamos completamente apaixonados por ela.
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