quinta-feira, abril 30, 2009

Felicidade: modo de usar

A felicidade tem uma propriedade que se assemelha à blindagem. Quando estamos felizes, acredito eu, os problemas do mundo continuam a chegar até nós, é claro. Mas não nos atingem tanto. Ficamos sabendo das guerras, das inundações, da fome, da crise, das epidemias, de todos os males que preocupam governantes e milhões de pessoas e, ainda assim, nos sentimos leves. Não que a felicidade nos embruteça, nos torne insensíveis ou feche os nossos olhos a tudo aquilo que é triste e injusto. Ela simplesmente nos protege de tudo isso de uma forma quase maternal – e creio que não há egoísmo algum em sentir-se feliz quando um olhar mais atento e preocupado para o mundo talvez nos conduzisse para a melancolia.

A felicidade nos ensina a virar as páginas do jornal na esperança de encontrar, na página seguinte, algo tão jubiloso quanto a nossa própria alma. E, ainda que não encontremos, tudo bem, também: a felicidade é quase auto-suficiente. A gente ri do recado truncado na secretária eletrônica, do e-mail importante que voltou, do trânsito que não anda e do filme que é uma chatice embora a crítica tenha dito que é ótimo. A felicidade nos permite andar pelo mundo em sapatos confortáveis. Mais do que isso, até: a felicidade cria para nós um mundo melhor que o mundo real, uma realidade quase paralela. A gente vê tudo o que se passa ao nosso redor e se sente um eleito, alguém que está sendo momentaneamente poupado de tudo aquilo que faz do mundo às vezes um lugar um pouco triste.

Porém, naqueles dias em que a felicidade por algum motivo nos abandona (talvez por nossa própria culpa, quem sabe) tudo se torna diferente. A gente lê que a montadora Chrysler pediu concordata nos Estados Unidos e chora por duas horas só em pensar nos trabalhadores que a gente nem conhece e serão demitidos; depois vê que a Organização Mundial da Saúde elevou de quatro para cinco o índice de epidemia da gripe suína e se enfia debaixo dos cobertores para chorar por outras duas horas; fica sabendo que um carro atropelou e matou quatro pessoas na Holanda e urra de dor: a flor não abre mais, a secretária eletrônica está muda, o e-mail importante foi entregue mas isso já não tem mais importância nenhuma, o trânsito está uma maravilha mas a gente não tem vontade de ir para lugar algum. O mundo ficou triste e agora é deste mundo que a gente faz parte, é neste mundo que a gente se reconhece. A ausência da felicidade nos devolve ao mundo dos outros. E este abandono da felicidade dói como se nossa pele tivesse sido ralada: a gente olha para o mundo com os olhos úmidos de uma saudade tão antiga, mas tão antiga, que a gente acredita estar carregando de uma outra existência.

E então, nesta hora, e somente nesta hora, a gente descobre que a felicidade também nos aquecia. O sol brilha forte e amarelo do lado de lá da janela. Mas em algum canto da nossa alma começou a nevar. E tudo parece tão branco. E tudo parece tão triste. E tudo parece tão frio. E a gente não vê a hora de que alguma coisa aconteça. Algo de bom. Quem sabe ser feliz de novo.

9 comentários:

Anônimo disse...

Vc me encanta, Sérgio. Puxa, no ano passado eu encontrei dois blogs preciosos: o seu e o do Guzik. Me sinto muito bem entre vocês. E se não escrevo muito aqui é que às vezes o meu comentário não entra! Agora já percebi que clicando no anônimo fica mais fácil pra mim! Vamos a veire!
Sim, a felicidade nos protege, nossa casa... nossa teia de aranha... E como a gente projeta no mundo o que sentimos! E vamos nós procurando um equilíbrio, percebendo nossas nuances e nossos extremos... Que a gente tome conta deste sol pra aquecer o mundo também.
Bjim, Valéria

fátima disse...

"A felicidade nos permite andar pelo mundo em sapatos confortáveis".

você percebeu a beleza dessa frase?

estou "linkando" (ô, internetês!) esse texto num post no meu blog,tá?

bj

Só no blog disse...

Pois é, querida. Como você disse: e vamos nós, procurando este equilíbrio. Esta é a nossa missão, né? beijão. sérgio

Anita disse...

Sergio, eu não acredito nem vivo so nessa realidade dos nossos sentidos e corpos de carbono. As tragédias são so uma parte (ok,grande, muito grande !) da realidade desse nosso planetinha, mas não o definem.

angela disse...

adorei ter passado por aqui e sabe de uma coisa, era o dia certo de passar aqui, devo isto a Fátima. bom feriado!

Mário Viana disse...

Uma vez picharam na rua Augusta: "A felicidade é uma droga pesada". Marcou.

Anônimo disse...

Sergio, meu irmão, veterinário, professor da universidade federal do Piauí, doutorando pela USP, na área de saúde pública, em 1996,realizava uma pesquisa de campo pelo interior de um dos Estados mais pobres do País.
Numa de suas andanças entrevistou uma daquelas famílias miseráveis, para quem, a vida e o tempo parou naquele sertão árido e faminto.
Numa das casas, quando ele perguntou sobre o número de óbitos na família nos últimos anos, o marido respondeu: "- temos 11 filhos, perdemos um de 7 e outro de 4, há uns 3 anos. E a mulher completou: Voce tá esquecendo do nosso caçulinha de 11 meses, que morreu ano passado, também de esquistossomose. E o marido respondeu: - Tem razão, eu me esqueci dele doutor."
Segundo meu irmão, por um momento o casal parou de falar. Assim permaneceram por um bom tempo. Emocionado ele se despediu, e saiu ldaquee lugar certo de que tinha descobrto o significado da palavra felicidade,"esquecer a morte de um filho". Uma história que eu nunca mais esqueci.Beijos, Rachel

Só no blog disse...

Pôxa, Rachel, que história. É impossível de ser esquecida mesmo. Muito obrigado. sérgio

Kiko Rieser disse...

Para mim, este é o significado de uma infelicidade tão grande que perder um filho faz pouca diferença. A felicidade passou longe e nem sequer acenou...