Quando eu estava no quarto ano primário, meus pais me compraram um livro grosso, de capa azul, chamado Admissão. Hoje eu acredito que o título não devia ser apenas este, mas isso não importa muito. Era o maior livro que eu já havia ganho – a exemplo das apostilas do cursinho, que eu viria a conhecer muito mais tarde, aquele livro trazia uma série de exercícios preparatórios para o ingresso no curso ginasial. Naquela época, o nível de ensino das escolas públicas era imbatível e, na cidade de Jundiaí onde eu vivia, havia dois colégios especialmente concorridos: o Instituto de Educação e o Geva, que se não me engano era a abreviatura de Ginásio Estadual de Vila Arens, bairro vizinho ao meu. Então, naquele ano, eu tinha as aulas regulares do primário, durante as manhãs, e as aulas do famoso curso de admissão, no período da tarde. Eu achava que estudava muito, mas quando vejo as crianças de hoje, espremidas entre a escola, a esgrima, a natação, o balé, o inglês e a computação, eu volto a me sentir um Macunaíma. No final do ano, quando eu já devia ter feito todos os exercícios do livro, o governo mudou o sistema de ensino, acabou com o exame de admissão e nos obrigou a estudar nas escolas do bairro em que vivíamos. Meu sonho de ir para o exclusivo Instituto de Educação, e poder usar aqueles guarda-pós brancos até a altura do joelho, morreu na véspera.
Mas algo sobrevive em mim desde aquele período, por mais prosaico que possa parecer. É um conto que integrava o capítulo de língua portuguesa no livro de admissão. O conto falava de um homem extremamente solitário que, ao se levantar às três horas de uma manhã qualquer para tomar água, viu uma formiga atravessando rapidamente a mesa de fórmica da sua cozinha. Insone e melancólico, ele passou a enfeitar a vida daquela formiguinha com uma série de detalhes absolutamente humanos: imaginou o lugar em que ela vivia, as funções que era orientada a cumprir ao longo do dia, os filhinhos a alimentar e uma rotina estafante que a obrigava a estar no batente às três da madrugada. Na noite seguinte, ele se levanta no mesmo horário e vai até a cozinha para ver se sua visitante estava por perto. E lá estava ela, cruzando a mesa na mesma direção, sem se importar com a presença ameaçadora dele no cenário.
E a mesma história se repetiu durante várias madrugadas. O homem, com o cotovelo apoiado sobre a mesa, de olhar fixo no trajeto da formiga que já havia se tornado parte de sua vida. Até que um dia ela não apareceu mais, nem no dia seguinte e nem nunca mais. O homem então, mais insone e melancólico do que nunca, passou a acreditar em uma morte digna para aquela formiga que havia levado uma vida tão honrada. E que tinha sido, por algumas noites, a ocupação de sua existência vazia.
Hoje eu penso no livro e em seu conselho pedagógico. Será que quem decidiu pela inclusão daquele conto numa publicação destinada a crianças de dez anos imaginou que já estava na hora de elas tomarem contato com a solidão e o abandono? Será que aquele editor visionário acreditou que as crianças, dali a poucos anos, teriam de se haver muito mais com a melancolia do que com as equações de primeiro grau e os tipos de solo da África setentrional? Será que o livro, muito além de permitir o nosso ingresso no ginásio, era o primeiro passaporte para a nossa vida adulta?
Hoje eu deixei, por descuido, um pedacinho de maçã em cima da pia da cozinha e, quando voltei, encontrei ali ao menos umas trezentas formigas, ouriçadas com o calor e a refeição frugal. Pensei naquele homem do conto e em quantas histórias ele teria de criar para deixar cada uma daquelas formiguinhas felizes diante de sua nova identidade. Porém, como a vida corre e, entre todas as lições que aprendemos estão a higiene e a crueldade, expulsei-as todas com uma enxurrada produzida por um copo americano com água até as bordas. E elas escorreram pelo ralinho da pia, felizes e pagãs, rumo ao esgoto lá embaixo, onde cada uma poderá criar sua própria história.
terça-feira, janeiro 13, 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
9 comentários:
Salve, Serginho. Vovô viu a uva na zabumba de Zazá. Fazer admissão era um passaporte para um estágio onde nos sentiríamos tão mais "grandes", né? E o governo cortou nossa onda - somos contemporâneos, afinal, até nisso.
Hoje em dia, a formiguinha entraria com processo contra o cara por assédio ou uso de imagem. E curtiria a fossa na Ilha de Caras, onde diria que está à procura do novo amor.
beijos
Mário Viana
como pedagoga, eu digo: ah, que história bonita... e todo o resto do meu ser diz: que texto bem escrito!
eu sempre penso na vida das formigas! evito pisar nelas, desvio o pé, o passo, rebolo na calçada. mas tem horas que viro uma hitler e esmago qualquer uma que dê sopa perto do meu notebook (dizem que elas comem os fios de dentro do notebook, fazem um grande estrago! na dúvida, não custa esmagar.).
é uma relação tão estranha essa nossa com as formigas, já pensou? admiramos pq vivem numa comunidade, tem afazeres, são competentes, trabalhadoras. ao mesmo tempo, nada são... e atrapalham, transmitem doenças, picam... melhor pisar.
melhor pisar? estaremos sendo injustos?
Isabella, querida. Adoro as dúvidas que você levanta aqui. Prometo pensar nelas. Ainda mais agora no verão, que as formigas resolveram passar férias aqui em casa. Beijo grande.
Mário, meu lindo. Eu juro que tentei contar esta história sem dizer que eu sou da época da admissão... Eu devia ter escrito assim: naquele ano, meus pais me deram um CD-Rom e um Ipod que eu não gostei... mas acho que ninguém ia levar fé, viu. Beijão
Como diz o José Eduardo Agualusa, "eu sou do tempo em que o Michal Jackson era preto".
Mário Viana
Querido Sergio , seu texto é tão lindo que nem vale a pena vc "se entristecer" com o fato de não ter cursado o "ADMISSÃO" .
Eu passei por esta entrada solene no curso ginasial .
Nossa , quanta coisa me veio à memória ....
Obrigado e um forte abraço !
Fala, Alberico, obrigado por mais esta visita, meu caro. Um grande abraço.
"as crianças, dali a poucos anos, teriam de se haver muito mais com a melancolia do que com as equações de primeiro grau e os tipos de solo da África setentrional"
Eis uma verdade que o MEC deveria entender, aceitar e acatar!
Sempre na escuta, Sérgio!
Beijo.
Valeu, Kiko, brigadão pelo carinho.
Postar um comentário