domingo, janeiro 04, 2009

La isla bonita

Até bem pouco tempo atrás, havia um título que crescia feito praga nos cadernos de turismo dos principais jornais brasileiros. Um repórter era enviado para passar uma semana em algum país mais ou menos exótico, não entendia direito o que via por lá e, na volta, quando terminava de escrever a matéria, empregava o seguinte título: Angola, um país de contrastes. Ou Honduras, um país de contrastes. Ou ainda Nova Zelândia, um país de contrastes. Até que algum editor mais exigente, cansado de saber que este título poderia ser usado para descrever qualquer lugar que se visitasse, resolveu bani-lo para sempre das redações. Aposto que há pelo menos uns dez anos ninguém vê um título como este, ao menos na grande imprensa. Escrevo isso para informar que acabo de voltar de uma viagem de dez dias a Cuba – estive lá na semana em que a revolução de Fidel Castro completou 50 anos sem festas, pois a ordem no país era economizar cada centavo de peso para tentar recuperar uma economia devastada por três furacões que atingiram o país no início do segundo semestre de 2008. E, como até agora eu ainda não entendi direito tudo o que vi por lá, se fosse convidado a escrever uma matéria sobre a ilha, adoraria que o título fosse Cuba, um país de contrates. Ainda que todos os meus amigos jornalistas rissem da minha cara por semanas a fio.

Um post deve ser pouco para dar conta da quantidade e da disparidade de sentimentos e impressões que a ilha ainda nos proporciona. Embora eu não pretenda transformar estes dias dez em um diário de viagem, talvez fosse interessante, ao longo da semana, voltar ao assunto. Não faço aqui uma promessa, só uma sugestão. Veremos.

Eu nunca estive em países notoriamente caros para o turista, como o Japão, a Suécia ou a Rússia. Mas no quesito hemorragia na carteira, tenho certeza de que Cuba não faria feito diante deles. O país funciona com duas moedas: o peso cubano, dinheiro dos locais, e os temíveis CUCs (cubanos convertidos), que circula no bolso dos turistas. Por alguma magia do governo, um CUC equivale a um euro ou a oitenta centavos de dólares. Ou, para desespero dos brasileiros, a pouco mais de três reais. Além do sorriso constante e da simpatia dos cubanos, nada mais é de graça no país.

Um folheto com informações turísticas básicas, destes disponíveis aos montes nas rodoviárias, estações de trem, aeroportos e lobbys de hotel de qualquer lugar do mundo, em Cuba custa 10 reais. Sim, dez reais por um pedacinho de papel dobrado em quatro que mostra, por exemplo, um mapa de Havana com as indicações dos principais pontos a ser visitados. Uma hora de internet sai por 33 reais – e, como eles não têm banda larga, você responde quatro e-mails e percebe que seu tempo acabou. Por uma ligação de menos de dois minutos para o Brasil, em que só temos tempo de desejar um apressado feliz ano novo para a primeira pessoa da família a atender o telefone, ainda que não seja a mais íntima, temos de pagar em torno de 23 reais, enquanto que um passeio de três horas de barco pelas inacreditáveis praias da ilha, com direito apenas a água, não sai por menos de 120 reais.

Perguntei a um guia se ele não achava estas quantias uma afronta ao turismo e ele me respondeu que sim, que achava sim. “Ainda mais quando eu penso que o meu salário mínimo é de 60 reais por mês”, ele me respondeu. Argumentei, depois de ter lido esta informação em vários sites de viagem, que Cuba estava perdendo turistas para a Costa Rica, a República Dominicana e dezenas de ilhas no Caribe, onde se gastava bem menos para se extasiar da mesma forma diante de um mar azul-turquesa. “Mas a Fidel não interessam os turistas”, ele respondeu. “Fidel diz que ninguém é obrigado a vir aqui. Se não quiserem vir, que não venham”. E o senhor concorda com isso, eu perguntei. “Pelo amor de Deus, o turismo é a única forma de termos comida até o fim do mês. Sem o turismo, jamais teríamos como ganhar um dinheiro extra para alimentar nossas famílias”. Este guia, que abordava os turistas na rua com a discrição de um espião, já que não era ligado às agências oficiais do turismo e, portanto, proibido de exercer tal atividade, tinha como ocupação oficial o comando da cozinha de um dos maiores hotéis de Havana, onde trabalhava em turnos de 24 horas por 48 de descanso. “Com o que eu ganho lá, e por mais que economize, eu só tenho condições de sustentar minha casa e meus dois filhos por 14 dias. Os outros 16 eu completo com o que faturo nesta caça aos turistas”.

Este guia foi apenas a primeira das dezenas de pessoas que encontrei ocupando postos de trabalho diferentes daqueles para os quais haviam se preparado. Uma outra guia de viagem, que passava os dias tentando vender excursões de barco, era engenheira química formada na antiga Alemanha Oriental num curso superior de seis anos de duração. O rapaz que recolhia os guarda-sóis e as cadeiras de praia no fim do dia era graduado em história da arte e engenharia mecânica. O mestre de cerimônia dos shows divertidos e precários mostrados em um hotel na beira da praia havia se formado em medicina veterinária há dez anos. Todos optaram por trabalhar ao lado dos turistas porque dali vinha o imprescindível reforço do seu orçamento. Sempre que eu conversava com eles, saía com a impressão de que alguns conceitos talvez excessivamente burgueses como a realização profissional, os anseios, as aspirações sociais e o desejo humano por excelência, o da liberdade, não faziam muito parte da realidade de cada um. “Eu acho que as pessoas são felizes”, me disse o moço das cadeiras de praia. “Nós temos tudo, uma casa, serviço médico e podemos estudar. Só não temos dinheiro”.

Hoje, ao revirar rapidamente os jornais acumulados na porta de casa ao longo destes dez dias, vejo uma matéria sobre um escritor e um fotógrafo que foram a Cuba para reproduzir os passos de Che Guevara durante a revolução. No final, eles se confessaram atordoados com a melancolia e a falta de perspectiva e liberdade dos cubanos. Eu, que nunca fui muito competente em ciência política, não paro de me perguntar em qual momento a revolução falhou. Pois falhou, sim. O ser humano não nasceu apenas para ter uma casa e direito à assistência médica e formação escolar. Eu acredito que o ser humano precisa de algo muito mais valioso, algo que não encontrou espaço na revolução: o sonho. Precisa acreditar, ainda que em vão, que o dia de amanhã pode ser diferente do dia de hoje. E poder lutar por isso. Sem isso, não vivemos. E que me perdoem os esquerdistas convictos que com certeza dirão que em Cuba não há crianças pedindo esmolas na rua, como aqui no Brasil. Dou razão a eles: realmente não vi crianças pedindo esmolas nas ruas. Vi seus pais fazendo isso.

Eu já falei aqui sobre meus dois gatinhos, o Pirulito e a Ritinha. Pois bem, eles têm casa, comida e assistência médica. Como ficam de olhos atentos no monitor do meu computador quando estou trabalhando, eu ousaria dizer que eles contam com formação escolar também. Mas todo fim de tarde, sem exceção, os dois vão para a janela e ficam observando o mundo lá fora, através das redinhas de proteção que revestem todo o apartamento. Nestas horas, se eu pudesse entrar na cabecinha deles, eu sei que veria um mundo em que os dois se imaginariam livres para caçar pardais, revirar uma lata de lixo e se entregar à uma ruidosa noite de amor no telhado de alguma casa. Eu tenho certeza de que, por um único dia na vida, eles trocariam a casa, a comida e o veterinário grátis pelo prazer de experimentar a liberdade do lado de lá das redinhas – ainda que isso lhe custasse alguns arranhões e mordidas de outros gatos igualmente livres. Na próxima tarde, quando Pirulito e Ritinha subirem de novo ao parapeito da janela para ver o mundo lá fora, eu ficarei triste por eles, como já fico, e por todos os cubanos sorridentes e amáveis que conheci na viagem.

Se ninguém reclamar, eu falo mais um pouquinho de Cuba no próximo post!

10 comentários:

Anônimo disse...

cuba te ha inspirado, caramba! claro que sim, escreva mais, muito mais. e seja bem vindo! feliz ano novo. guza

Só no blog disse...

Brigadão, querido. Sua leitura fiel é um estímulo para mim, você sabe disso. Beijo grande e um ótimo ano pra nós, né!

Anônimo disse...

Feliz ano novo Sergio, eu estava sumido muita festa fim de ano agora voltei, e ótimo o que vc disse sobre Cuba, alis nunca imaginei que fosse tão caro um passeio por lá. E pode falar mais sim sobre Cuba, garanto que ninguem vai reclamar.
Abração

Só no blog disse...

ôba, que delícia de post. Então vou escrever mais, fico tranquilo.
abração.

Iris disse...

Ah, os dois leitores fiéis aí de cima já disseram isso, mas achei que você ficaria feliz em saber que tem mais alguém pedindo mais sobre Cuba =)

Então... sí! sí! Fale mais muitos poucões sobre a viagem!

Só no blog disse...

Iris, querida. Então eu prometo falar mais um pouquinho esta semana ainda. Beijão, obrigado pela visita. Gostei do outro comentário também. Beijão

Iris disse...

=)
Ah, tenho certeza de que adoraria um dia falar com seus gatos. Vendo a tela de computador de um dono desses, só podem ser letrados. E é tão bom conversar com gente letrada =)

Abração

Anônimo disse...

Oi Roveri, feliz 2009, amigo! Gostei do texto e vejo o país pelo seu ponto de vista. O ser humano merece, sim, mais que comida e assistência médica. Pode escrever mais que vou ler. beijo.

Lucianno Maza disse...

Meu querido Roveri,
que post sensível (para variar...)!
Já perdi algumas noites discutindo com meus amigos socialistas (?) que nunca acreditei na felicidade do povo cubano.
Você leu ou viu o "Antes do Anoitecer" do Reynaldo Arenas? Me lembra tanto a nós escritores e nosso anseio felino pela liberdade...
Acho ali um retrato sobre os cubanos.
Espero que as coisas mudem, fique o melhor do governo de lá, mas que os "filhos de Cuba" finalmente ganhem suas asas.
Feliz 2009!
Beijão

Só no blog disse...

Oi, Luciano, que bom te ver por aqui, querido. Olha, concordo com você nesta questão da liberdade. Às vezes, parece tão antigo falar sobre socialismo e revolução num mundo que está de cabeça para baixo, mas eu fiquei realmente tocado com tudo que vi por lá. Que bom que você sacou tudo. beijo