Há algum tempo um jovem ator me procurou em busca de um texto inédito para que ele pudesse estrear na direção. Eu já o conhecia por intermédio de amigos, embora nunca o tivesse visto em cena – até hoje ainda não vi. Logo após nosso primeiro contato, feito por e-mail, ele foi chamado a trabalhar em uma novela da Globo em um papel que, se me recordo bem, cresceu à medida que a trama avançou, a ponto de ele passar a ser reconhecido em filas, cinemas, essas coisas todas. Achei que nossa provável parceria, depois da entrada da televisão na história, tinha morrido ainda no berço. Eu me enganara. Assim que a novela terminou, ele voltou a morar em São Paulo e me procurou na semana seguinte.
Ele estava interessado em um texto inédito meu, para três personagens. No nosso primeiro encontro, ao vivo, ele já surgiu com uma série de propostas de direção – a utilização de projeções, sons externos, imagens gravadas, toda uma parafernália que talvez aproximasse um pouco o teatro do cinema. Eu achei a proposta curiosa, mas não batemos o martelo neste primeiro encontro. Até porque havia um grupo do Rio de Janeiro interessado no mesmo texto. E eu disse que queria ouvir as duas propostas antes de me decidir.
Algum tempo depois, fizemos um segundo encontro. E foi quando ele me falou do Estradinha. Estradinha é um gato macho, que a mulher dele encontrou abandonado à beira de uma estrada ainda filhote (não fiz a pergunta óbvia por acreditar que foi em função do local do encontro que o bicho recebeu este nome). A mulher dele recolheu o gato, o trouxe para casa e, no dia seguinte, seguiram os três para o veterinário: o filhote, o ator e sua mulher. A idéia do casal era deixar o gato para adoção. Depois de examiná-lo, a veterinária informou que ele estava com a espinha quebrada – uma lesão irreversível, talvez provocada por um atropelamento na estrada. Estradinha não recuperaria o movimento das patinhas traseiras, não controlaria o fluxo das fezes e, o que é pior, só seria capaz de urinar se alguém pressionasse sua barriga. “Ninguém vai adotar um gato nestas condições”, disse a veterinária. “Ou vocês ficam com ele ou ele já é um filhote fadado ao sacrifício”.
Eles levaram Estradinha para casa e, segundo o ator, o casal não se lembra de ter tomado uma atitude que lhes trouxe tanta felicidade na vida. Estradinha pula e corre usando só as patinhas da frente e, se não fosse por um requebro engraçado, passaria por um gato normal. Três vezes por dia eles massageiam a barriga do gatinho para que ele consiga urinar. E, para usar as próprias palavras do ator, Estradinha só fica “constrangido” quando faz coco na frente de estranhos. A exemplo de todos os outros gatos do mundo, ele se apressa em esconder as fezes. E utiliza para isso o que estiver à mão: uma camiseta, uma folha de jornal, um tapete, um pano de prato. Eles compraram um banheirinho de areia para Estradinha, mas como ele defeca involuntariamente, nunca dá tempo de chegar lá.
Desde a noite em que foi encontrado na estrada, Estradinha nunca mais passou um dia sequer longe do casal. Eles só viajam para lugares em que o gato pode ser levado, pois a tal massagem na barriga tem de ser feita a intervalos regulares, ou o gatinho sentirá dores horríveis em sua bexiga cheia.
Talvez algumas pessoas achem isso um absurdo, é bem provável. Tanto carinho e tanto trabalho com um simples gato. Mas, quando o ator acabou de me contar esta história, assim do nada, eu lhe disse: o texto é seu, pode montar. Eu nem quis ouvir a proposta dos cariocas. Se alguém cuida tão bem assim de um gatinho paralítico, com certeza vai cuidar do meu texto com muito carinho também. Valeu, Estradinha!
sexta-feira, novembro 28, 2008
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11 comentários:
que história linda, toda ela! já estou louca pra ver a peça. beijos, querido Sérgio
Cléo, querida! Eu concordo com você: quando ouvi a história do Estradinha, eu falei: leva o texto, leva o cartão de crédito, leva tudo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
fantástico!!!
tanta sensibilidade... a peça será linda!
Que bonito!
Lindo! Adorei. O gato Messi ficou agora com mais vontade de conhecer o seu tio Massa! bjocas. Lili.
Ahh Roveri, você é demais!!! Parabéns tbm pelo texto delicioso da revista Serafina dessa semana. Abração!!
O ator é o Tiago Luciano e sua mulher Lucy Ramos??
é a mesma história que eu conheço...
Se for ele, acho que seu texto está em boas mãos...
José Jesus
Oi, Jesus, na mosca!!!!!!
Me recomendaram seu blog e tinham toda a razão: é muito bom!
Oi, Lívia, muito obrigado.
Apareça sempre por aqui.
Um grande abraço
sérgio
Roveri, emocionante. Fiquei com muita vontade de ver a peça :-)
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