domingo, outubro 12, 2008

Ainda bem que passa

Não entendo por que alguns dias insistem em ser tão estranhos. Dias em que, se houvesse um exame para detectar a nossa taxa de sensibilidade no sangue, como existem aqueles que denunciam a nossa sempre alterada taxa de colesterol, o resultado seria alarmante. São dias em que, ao menos aparentemente, tudo estava indo tão bem, e eis que surge uma nuvem para esconder o nosso sol. Olhamos para ela, a nuvem, até compreendemos um pouco de sua essência, mas não entendemos o que ela está fazendo ali, naquele momento, derramando tanta sombra onde, meia hora atrás, a nossa vida era quase uma caipirinha de maracujá na praia.

E tudo aquilo que era tão inofensivo, tão controlado, começa a doer. Uma canção ouvida por acaso numa rádio FM embaça o nosso olhar, um gesto de afago nos rasga feito um punhal, uma voz amiga arranha a nossa alma. Não é tristeza o que sentimos. E, o que parece ainda mais exótico, é que não é a tristeza o que nos faz tristes – é algum detalhe, alguma filigrana de um sentimento perdido, é a pequena falta de encaixe que não impede a engrenagem inteira de rolar, mas nós, só nós, sabemos que há alguma coisa raspando. É a dor indisfarçável de alguma coisa que está tentando se acomodar, talvez para não nos importunar mais no dia seguinte. Seria tão bom se fosse tristeza, mas não é.

Então é como se todo nosso corpo, de repente, se convertesse em um gigantesco rim, usando de toda sua habilidade para expelir uma pedrinha de nada, mas que deixa uma pegada de sangue em seu caminho. E, neste seu deslizar, a tal pedrinha vai removendo do lugar coisas e pessoas que levamos anos para acomodar. Neste seu deslizar, a pedra ressuscita os nossos mortos. E, disformes, eles nos dizem que não estavam assim tão em paz, que era engano nosso. Está tudo insepulto, está tudo clamando por alguma coisa que não sabemos exatamente o que é, está tudo tão revoltoso ainda. O problema, o nosso grande problema, nos damos conta então, é que não ouvimos antes.

Atravessamos o dia como um equilibrista que segura uma única lágrima no canto dos olhos – mas é a lágrima que aprisiona o dique inteiro. Se, por desleixo ou por cansaço, ela escorrer pelo nosso rosto, saberemos que todos os portões do nosso inferno estarão abertos. Prudentes, enfrentaremos este dia olhando meio assim de lado e lacraremos os nossos ouvidos com o fone do Ipod.

Um pouco mais tarde, quando a calma aparente voltar, ergueremos a cabeça e veremos que a nuvem está se afastando. É quase noite, mas não tão tarde a ponto de não sabermos mais em que lugar o nosso sol está se pondo. Aliviados, diremos que ainda não foi desta vez. Passou perto, mas não foi. A pergunta, no entanto, não vai sossegar enquanto não houver uma reposta convincente: se não era tristeza, e não era mesmo, o que foi isso então?

4 comentários:

Kiko Rieser disse...

"Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu..."

Anônimo disse...

texto emocionante. nesses últimos meses você postou textos sobre perdas e elaboração das perdas que vai render uma obra de ficção dolorosa e linda! p.s. não te liguei pq estava no teatro, vendo denise fraga na 'alma boa'. vamos nos ver nesta semana, que tal?[[]] guza

Bruna Ventura disse...

Eu me sinto exatamente assim hoje... até me assustei um pouco com esse texto...
Você disse o que eu não consigo.

Anônimo disse...

Quer sentar no meu colinho?
Sensivel desse jeito num da pra aguentar...
Num vou deixar meu nome pq nao interessaria pro ce e incomodaria outra pessoa.
Então sozinha na frente da minha tela te abro sempre que posso e me deleito com os seus sorrisos e claro com as suas lagrimas tbem.
Grande beijo.