Seu Armando usava sempre camisa xadrez de mangas compridas, calça de tergal, óculos de armação marrom e sandálias de couro com meias pretas. Era um figurino que o deixava eternamente velho, a ponto de eu acreditar que seu Armando talvez já tivesse nascido velho. Uma idéia parecida com aquela que fazemos dos nossos pais quando somos crianças: eles também sempre foram velhos. Eu via seu Armando nas manhãs de domingo, nas aulas de catecismo. Talvez eu o visse outras vezes também, já que ele morava a duas quadras da igreja e era provável que circulasse muito pelo bairro. Mas, na minha memória, seu Armando aparece apenas ao pé do altar, rodeado de imagens de santos e de velas acesas.
Seu Armando representava para aquele bando de garotos conduzidos à força aos mistérios da religião o que talvez os computadores e os games representam para a garotada de hoje: ele era o nosso portal para um mundo antigo, habitado por santos crucificados de cabeça para baixo, por mulheres queimadas, por mártires conduzidos à eternidade nas pontas das lanças ou em tonéis de óleo fervente. Por fiéis que foram mutilados, decapitados, cegados e apartados de sua família só porque defendiam aquela mesma fé à qual estávamos sendo apresentados naquelas manhãs de domingo. Passávamos duas horas extasiados diante de seu Armando, o nosso cicerone por aquela Viagem ao Centro da Terra dos Católicos.
Ninguém sabia descrever os milagres dos santos com tanta devoção quanto seu Armando. Como ele já parecia mesmo muito velho, talvez eu acreditasse que ele tivesse sido testemunha ocular daqueles dias em que leprosos levantavam de suas tumbas, em que peixes punham a cabeça para fora dos lagos para ouvir as pregações, dias em que a água virava vinho e os pães se multiplicavam. Nada nos impressionava mais do que saber que todos aqueles santos, cujos corpos haviam sofrido as maiores barbáries em vida, se mostravam impressionantemente intactos quando desenterrados. Este era, aliás, o maior gozo de seu Armando: ver em nossos rostos de moleques a certeza de que a carne sobreviveria ao tempo. Ao menos no caso dos santos – nós, pecadores em potencial, aguardaríamos a eternidade espremidos e misturados em um ossário qualquer.
À medida que se aproximava o dia de nossa primeira comunhão, seu Armando ia também, aos poucos, nos conduzindo às trevas do pecado. Não havia mais lugar para episódios bíblicos e nem para santos aventureiros. Todos nós éramos convidados a pensar no que havíamos feito de errado em nossa até então curta passagem sobre a Terra. O momento da nossa confissão se aproximava e tínhamos cada vez menos dias para nos arrepender. Quando, enfim, chegamos a um consenso sobre o que era o pecado, nossa missão era descobrir de que maneira ele se imiscuía em nossa vida diária.
Faltando dois dias para a confissão, eu andava desesperado. Não conseguia pensar em algo absolutamente abjeto para dizer ao padre quando a cortininha do confessionário se abrisse. Diante de todos aqueles sanguinários que seu Armando havia nos apresentado, gente que mandava matar legiões de crianças e crucificar os eleitos, nada do que fazíamos parecia ser suficientemente hediondo. Cansado de procurar por grandes maldades em mim, perguntei a minha mãe o que eu devia confessar no dia seguinte. Ela pensou um bocado e, talvez para se livrar de mim naquela hora, mandou eu dizer ao padre que eu deixava restos de comida no prato, jogava café com leite na pia quando não queria mais e deixava a tevê muito tempo ligada, mesmo quando não tinha ninguém na sala.
Achei a lista muito oportuna e foi o que eu disse ao padre em minha primeira confissão. Ele ouviu atentamente, pediu para que eu nunca mais fizesse aquilo e que rezasse três pai-nosso e três ave Maria que Deus me perdoaria. Descobri, depois, que todos os alunos do catecismo tinham recebido a mesmíssima penitência. E fiquei feliz ao sentir que todos nós éramos pecadores do mesmo nível.
Hoje eu perdôo o seu Armando por ter colocado em tantas cabecinhas aquela baboseira toda a respeito do pecado. No fundo, como disse o profeta que ele adorou fervorosamente pela vida inteira, ele também não sabia o que estava fazendo.
terça-feira, agosto 26, 2008
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