Há um quarteirão da rua Luminárias entre as ruas João Moura, onde eu moro, e a Heitor Penteado, que é praticamente minha ligação com o mundo: passo por ali todos os dias a pé para ir almoçar ou de carro para ir em qualquer canto da cidade, do banco à academia, do cinema ao supermercado. Neste quarteirão da Luminárias, que não chega a ter cem metros, fica a locadora onde eu alugo os filmes mais comerciais, já que cinema de arte não tem vez ali, e também uma oficina mecânica em que levei meu carro uma única vez. Nas últimas semanas, começou um movimento estranho neste quarteirão: um entra-e-sai de pedreiros encarregados, aparentemente, de produzir uma grande reforma num velho prédio pegado à oficina. Notei que eles não deviam estar fazendo nada convencional por ali quando começaram a instalar lâmpadas na calçada e dar um acabamento muito rústico ao prédio.
Depois começaram a surgir uns tipos que provocariam curiosidade em outros locais da cidade, mas não muito na Vila Madalena: gente de cabelo colorido e de cortes geométricos, roupas modernosas e cheias de atitude. Houve uma época em que atitude queria dizer iniciativa ou algum tipo de comportamento decisivo. Aprendi agora, lendo algumas matérias de moda e observando meus novos vizinhos, que atitude nada mais é do que acreditar que se está abafando dentro de roupas ridículas e se sentir desobrigado a dizer bom dia ou simplesmente um alô para qualquer um que cruze pelo caminho. É mirar um ponto em algum lugar do horizonte e caminhar em direção a ele como se não houvesse mais ninguém no mundo. E, quanto mais desengonçado for este caminhar, mais cheia de atitude será a pessoa em questão. À esta altura, vocês já devem ter imaginado que tipo de atividade resultou da reforma no velho prédio: uma agência de modelos.
Como ando muito a pé pelo bairro, sempre dou um jeitinho de entrar nos lugares novos. Às vezes, pergunto para os pedreiros no que eles estão trabalhando. Assim eu soube, por exemplo, que seria aberta uma cantina italiana na rua Original bem antes da inauguração, como também já descobri que de uma grande reforma em andamento na rua Jericó nascerá um novo bar. Mais um na Vila. Sempre senti vontade de conhecer uma agência de modelos, mas não tive coragem de bater na porta e pedir para visitar as instalações, algo me diz que eu não seria bem-vindo ali. A porta está sempre fechada e isso, no fundo, me alivia. A cada vez que ela se abre, sempre acho que vai sair dali um Willy Wonka ainda sujo de sua fantástica fábrica de chocolate.
Nos últimos dias, começaram a chegar as clientes da agência: meninas que mal chegaram aos 14 anos, trazidas por mães que devem ver nelas as substitutas de Gisele Bundchen, ainda que algumas tenham umas pernotas tão roliças que qualquer editora de moda jogaria seus books no lixo. Mas elas chegam, aos montes. Às vezes, retocam a maquiagem sempre carregada na calçada mesmo, antes de tocar a campainha; há casos em que as mães, sempre as mães, dão uma última ajeitada no cabelo e nos lábios de suas futuras tops. E então, invariavelmente, um fotógrafo sai da agência, as recepciona ali mesmo, na calçada, e já começa a disparar os clicks. Se eu fosse uma daquelas meninas, morreria de vergonha de ser fotografado na calçada. Todo mundo pára pra ver, dos motoboys aos passageiros do ônibus da linha Barra Funda que passa bem em frente. Mas as meninas ficam impávidas, como se soubessem, no seu íntimo, que atrair todos os olhares do mundo é a missão que o futuro lhes reserva.
Depois dos clicks na calçada, o fotógrafo costuma levá-las meia quadra adiante, quando a Rua Luminárias cruza a João Moura. Ali, na esquina, há um muro revestido de trepadeiras e um arbusto bem encorpado que deve fazer as vezes de floresta tropical para as garotas: elas se enroscam nos galhos e nas folhagens e são fotografadas como se estivessem em uma paisagem aventureira da Nova Zelândia. Todas as poses são exatamente iguais e o fotógrafo parece não se importar com o fato de estar produzindo books idênticos: meninas magras com o rosto semi-coberto por folhagens empoeiradas.
Pois bem: neste fim de semana um caminhão da prefeitura estacionou naquela esquina, arrancou a trepadeira dos muros e podou o arbusto, que agora se parece com duas perninhas de flamingo, secas e esqueléticas. Nesta segunda-feira, quando chegar para trabalhar, o fotógrafo vai levar um susto: seu cenário foi impiedosamente destruído. Nenhum rostinho angelical poderá ser mais misturado à trepadeira que avançava pelo muro com apetite descomunal. Nenhuma menina poderá, a partir de agora, esconder suas perninhas gordas atrás daquele arbusto tão simpático... Ah, esta prefeitura, sem saber, cortou pela raiz o sonho de muitas top models. Ô, judiação.
domingo, agosto 03, 2008
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3 comentários:
adorei o texto, serginho. delicioso. guza
Sou arquiteta e sua vizinha, achei muito legal achar esse seu texto por acaso. Incrível imaginar como a cidade sempre está em transformação ... de mecânica para uma agência de modelos. A esquina que antes não era nada, por alguns dias virou cenário. Que infelizmente perdeu seu "glamour" para alguma outra esquina, onde outras pessoas vão estranhar e comentar sobre as modelos. Como uma construção pode interferir e conectar pessoas desconectadas ...
Que legal a gente se encontrar por aqui, então. Apareça sempre, muito legal seu comentário. Abração, sérgio
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