segunda-feira, abril 14, 2008

Um beijo roubado

Creio que duas coisas podem ser ditas a respeito de Um Beijo Roubado, o mais recente filme do diretor Wong Kar Wai. A primeira é que não estamos diante de um trabalho nem tão impactante e nem tão belo quanto alguns dos filmes anteriores deste diretor chinês, a exemplo de Happy Together, O Amor à Flor da Pele e 2046. A segunda, e é sobre esta que eu gostaria de falar um pouco aqui, é que há muito tempo eu não via no cinema (e olha que ir ao cinema está entre minhas atividades mais habituais) um filme que professassse de maneira tão delicada a fé no amor - ou na convicção de que qualquer sacrifício pode valer a pena (mesmo o de trabalhar como garçonete em espeluncas perdidas no deserto americano) desde que um amor esteja à nossa espera no dia em que decidirmos voltar para casa. Eu arriscaria dizer que Um Beijo Roubado não passa de um pequeno filme que, amparado na sempre bela fotografia de Kar Wai, tem como pretensão única resgatar o nosso ideal de amor. Pode ser pouco, mas pode ser a tarefa de uma vida inteira também.

Antes de continuar, devo alertar que tenho um amigo que vive dizendo que eu possuo o péssimo hábito de deixar escapar o fim dos filmes que vejo em qualquer conversa. Como o tema deste comentário aqui é justamente um diálogo que se dá no final de Um Beijo Roubado, convido aqueles que ainda não viram o filme a interromper a leitura agora mesmo - não quero ser visto como um eterno desmancha-prazeres.

Um Beijo Roubado marca a estréia da cantora Norah Jones como atriz - para mim ela é eficiente nos dois ofícios, não mais que isso. Norah vive uma jovem ingênua e determinada que, após ser abandonada pelo noivo, bota o pé na estrada e passa os 300 dias seguintes trabalhando como garçonete nos estados do Arizona, Tennessee e Nevada. Conhece bêbados, losers, jogadores de pôquer e toda sorte de gente que, de acordo com o que o cinema sempre nos ensinou, parece ser o habitante preferencial do grande deserto americano. No dia em que retorna para sua Nova York natal, onde os pacientes braços de Jude Law estão à sua espera, ela diz que precisava ter feito aquela viagem para se livrar da pessoa que ela era. Uma pessoa de quem ela não gostava. Lizzie, a personagem de Norah, precisou viajar para se reinventar como ser humano. Precisou fritar e servir batatinhas, passar noites sem dormir, perder o dinheiro que economizou e, acima de tudo, esfriar seu coração para, 300 dias depois, emergir disso como uma pessoa melhor - ao menos uma pessoa aprovada pela sua própria consciência.

E foi isto que me fez gostar de Um Beijo Roubado - eu também acredito que seja possível se reinventar como pessoa em algum momento de nossas vidas. Não só possível, mas necessário. No fundo, sinto que seremos sempre os mesmos: mudaremos um ponto de vista aqui, talvez nos tornemos menos radicais ali, com um pouco de sorte aprenderemos a sofrer menos diante de situações que se repetem, entenderemos a duras penas algumas lições que a vida nos dá, amaremos melhor, quem sabe, ansiaremos por um sono mais tranquilo e sem sobressaltos e pode até chegar o dia em que nosso coração consiga finalmente bater mais feliz. Mas, cético que sou, desconfio que tudo isso pode não passar de um grande truque de maquiagem para tornar a nossa imagem um pouco mais agradável a nós mesmos - no fundo, sinto que o nosso disco-rígido permanecerá inacessível no beco mais escuro das nossas almas, insistindo a nos conduzir pela trilha mais difícil e espinhosa.

Por isso é bom ver alguém que, em apenas 300 dias, conseguiu fazer o que a maioria de nós talvez não consiga fazer em uma vida inteira: olhar a partida e dizer com convicção que estamos jogando melhor. Repito que pode ser pouco, mas de uma coisa eu tenho certeza: o chopinho depois deste filme desce muito mais gostoso.

6 comentários:

Anônimo disse...

Voce nao perde a mania de contar o final dos filmes, né, sergio roveri?

Só no blog disse...

Pronto, já tomei uma providência quanto a isto.
Valeu pela dica.

Ricardo Soares disse...

vi o filme na segunda- feira e tinha até pensado em escrever algo a respeito... mas vc matou todas as charadas... concordo com cada linha do que vc escreveu... abs

Só no blog disse...

Oi, Ricardo, brigadão pela visita, cara. Apareça sempre. Super abraço, Sérgio

MissDuda disse...

ahhhhhhhhh só faltou comentar que a tradução do nome do filme em português é uma dica para os brasucas nao terem o perigo de não entender muito bem as entrelinhas... nessa aí, o próprio filme conta o seu final!

Anônimo disse...

como diria a poeta cecilia meireles "a vida só é possível reinventada". dylpires.zip.net