Talvez foi este início de ano, época em que os desejos e expectativas insistem em nos assombrar por mais que tentemos exorcizá-los, que resgatou do arquivo morto do meu cérebro esta historinha ocorrida há mais tempo do que eu gostaria de revelar aqui. Eu estava no quarto ano primário, num tempo em que as crianças desta série já sabiam ler e escrever com muita desenvoltura. Não sei ao certo, mas acho que éramos obrigados a fazer uma redação por semana - na verdade o nome da tarefa era "composição"; apenas no ginásio é que mudou para redação como persiste até hoje. Os temas eram sempre três: o que a gente gostaria de ser quando crescesse, tema livre ou algo baseado em uma foto ou cartaz que a professora grudava na lousa. Naquela semana em questão o assunto era o que a gente gostaria de ser.
De tanto escrever sobre isso nas semanas anteriores, eu já não sabia mais o que inventar. Eu já tinha sido médico, bombeiro, dentista e soldado, acho que as únicas profissões que uma criança de dez anos conhecia naqueles tempos. Então pedi para que meu pai fizesse a redação para mim. E ele decidiu que eu seria projetista. Eu não sabia o que era isso. Então ele, pacientemente, ditou como seria meu futuro de projetista. Disse que eu trabalharia numa indústria metalúrgica, que viveria rodeado de engenheiros, que faria muitos cálculos, que teria réguas, compassos e lápis com muitas pontas, que faria cálculos precisos e que minhas matrizes iriam gerar centenas de peças para a indústria automobilística. Graças à minha profissão, as pessoas iriam andar felizes e seguras em seus carros. Escrevi tudo isso na ordem que ele me ditou e segui feliz para a escola no dia seguinte.
Antes do início da aula, perguntei para o Luiz Carlos, um garotinho moreno, de cabelos lisos e com uma feridinha no braço que nunca sarava, o que ele gostaria de ser desta vez. Ele se sentava atrás de mim e, em vez de apenas dizer o que tinha escolhido como profissão, resolveu ler a redação dele. Fiquei surpreso quando ele revelou que gostaria de ser um pé de laranja. Um pé de laranja que viveria carregado de frutas, que seria uma festa para os passarinhos, que daria sombra para as crianças e que ainda enfeitaria a paisagem. Achei aquilo uma idiotice só. Como é que alguém, no juízo perfeito, desejaria ser um pé de laranja? Comecei a contar os minutos até que a professora caçoasse do que ele escreveu.
Na hora da leitura em voz alta, enchi a boca para externar o orgulho que eu tinha de ser projetista. Nenhuma das mais de 30 crianças da classe jamais tinha pensado nisso. Quando terminei de ler, a professora fez um silêncio e, em seguida, pediu para que o Luiz Carlos lesse a redação dele. E então vieram as notas. Eu tirei 6,5 e ele tirou dez. Devo ter passado o resto do ano amargando aquela injustiça que a professora havia cometido. Como um futuro projetista podia valer tão menos que um pé de laranja?
E como a gente parece ter vindo ao mundo só para bater a cabeça mesmo, continuei tendo notas baixas todas as vezes em que persegui os desejos que eram de outras pessoas. Pena que a gente não consiga aprender isso da primeira vez em que se dá mal, ainda no quarto ano primário.
quarta-feira, janeiro 09, 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
7 comentários:
por quanto tempo será que ainda vamos continuar batendo a cabeça?
é verdade mesmo. que pena que a gente não aprende isso no quarto primário.
Adorei seu texto. É isso mesmo, antes um pé de laranja autêntico do que um projetista fake. Mas tenho certeza de que vc merecia pelo menos 7,5 nessa redação. Bjs.
Pois é, Patty. Mas como se dizia naquela época, eu consegui passar de ano com o 6,5. E o melhor de tudo: não me tornei projetista!!!!
Pois é, as vezes a gente não entende o sonho e as aspirações dos outros. Talvez por não termos sonhos ou por estarmos seguindo a massa. Opa! Não é o massa, é a massa. Vc continua o mesmo, grande abraço, saúde e sucesso (sempre) no seu projeto!
Grande Fransber, é sempre uma honra receber sua visitinha neste espaço aqui. Espero que esteja tudo bem contigo, broda. Um enorme abraço e feliz 2008.
Eu também queria ser projetista quando pequeno. Queria ter minha própria fábrica de carros.
Eu devia ser uma criança bem chata...
Postar um comentário