terça-feira, dezembro 18, 2007

Urubus da sociedade

Sempre fiz um esforço descomunal para tentar entender como os advogados lidam com seus dilemas éticos e suas crises de consciência. Sim, porque acredito que eles devam ter várias ao longo de sua vida profissional. Que todo mundo tem direito à defesa, de Hitler a Idi Amim, de Paulo Maluf a George Bush, é um fato aceito por qualquer sociedade civilizada. Mas me pergunto onde um advogado consegue buscar convicção para defender alguém que é reconhecidamente culpado? Acredito que não seja só uma questão de honorários, embora a conta corrente pareça ser o ponto mais flexível da coluna vertebral deles. Quando o assunto são grandes corporações, grandes homens e seus grandes pecados envolvidos, eu até compreendo o desempenho dos advogados. Nestas questões em que há milhões de dólares envolvidos, parece haver pouco espaço mesmo para os dilemas pessoais. É sempre um jogo de tubarões e, por maior que seja a mordida do adversário, a história comprova que tudo costuma acabar bem para os grandes. Eles podem até sangrar um pouco, mas não conhecem as hemorragias que vitimam os pobres.

Mas não é deles, dos grandes, que eu quero falar, não. Leio na Folha de S. Paulo desta terça-feira que um garoto de 15 anos morreu vítima de torturas e choques elétricos na cidade de Bauru. Suspeito de ter roubado uma motocicleta, o jovem CArlos Rodrigues Júnior foi preso por seis policiais militares. Algum tempo depois, já estava morto, com escoriações pelo corpo e queimaduras provocadas por choques elétricos. O fio desencapado, provavelmente utilizado para torturar o garoto, foi encontrado em poder de um dos policiais envolvidos na operação. Um laudo do Instituto Médico Legal da cidade comprova que o coração do jovem não resistiu a uma descarga elétrica e parou.

E então surgem os advogados dos policiais dizendo que seus clientes são inocentes. Eles, os advogados, alegam que o garoto, jovem e de saúde perfeita, teve um mal súbito ao ser preso e morreu. Simples assim: um garoto de 15 anos é algemado e morre. E, inexplicavelmente, seu corpo apresenta sinais de tortura e queimadura. Nossa tendência primeira é deixar um pouco a civilização de lado e jogar os seis policiais na cadeia, para que literalmente apodreçam ali. Mas não somos bárbaros: eles também têm direito à defesa. E então eu me pergunto como fica a cabeça deste advogado chamado a fazer o serviço imundo. Parece não haver a mais remota dúvida de que o garoto morreu nas mãos dos soldados. Por onde, então, começar a tese de defesa? Onde buscar concentração, paz de espírito, consciência tranquila e estômago para ir à imprensa e aos juízes e dizer que os soldados seus clientes são inocentes? De onde forjar a cara-de-pau para ir a público dizer que o menino morreu mesmo ao ser algemado? É tão grotesco que chega a dar ânsia. Você tem um garoto jovem e saudável que morre em algumas horas, você tem um corpo cheio de hematomas e queimaduras, você tem o fio desencapado usado para dar choques. E, de posse de tudo isso, um advogado aceita dizer que o garoto morreu de mal súbito e que seus clientes são inocentes. Os advogados que me desculpem, mas não consigo enxergar, nestas horas, profissão mais degradante.

Que ideal pode haver em defender culpados? Que nobreza pode haver em você lutar pela liberdade de alguém que deveria estar na cadeia? Que satisfação pode existir em mentir intencionalmente? Suponhamos que este advogado consiga fazer com que prevaleça sua tese absurda de que o garoto morreu de um mal-estar. Não é uma hipótese a ser descartada, ainda mais neste país de vale-tudo. E neste dia, então, ao sair vitorioso do tribunal, o que o nobre advogado faria? Iria levar a mulher para jantar fora e depois dançar? Iria anotar em seu currículo mais uma vitória profissional? iria colocar sua cabeça cheia de artimanhas num travesseiro de espuma, dar um longo e sonoro suspiro de dever cumprido? Realmente não consigo entender o ofício deles. Ao encarar a mãe deste menino, por exemplo, o advogado seria capaz de sustentar o olhar e dizer que seu rebento de 15 anos morreu porque era alérgico ao material das algemas? São tantas perguntas que eu gostaria que um advogado me esclarecesse tudo isso algum dia. Quem sabe assim eu teria um pouco menos de nojo do que eles são obrigados a fazer.

5 comentários:

Anônimo disse...

excelente texto, roveri. assino embaixo, ipsis literis.

Só no blog disse...

Pois è, Marcinho. Hoje, com as novas revelações sobre o caso, a gente fica ainda mais indignado, né? Claro que no post eu não quis generalizar, não quis falar de todos os advogados, de forma indistinta, mas somente daqueles que se prestam a tal serviço. Beijão

Vanessa Medeiros disse...

Os homens são mais podres do que conseguimos imaginar, roveri. Aposto que tais advogados colocam a cabeça no travesseiro, dormem tranquilos e, mais, com uma sensação de superioridade, de poder sobre o sistema e sobre as leis, teoricamente feitas para garantir a justiça, mas que eles conseguem burlar apresentando o argumento de que apenas garantem que ela chegue a todos os lugares. É mesmo nauseante.

Só no blog disse...

Vanessa, querida. Muito obrigado por todos os comentários que você deixou aqui e por visitar meu blog com frequência. E aqui vai: não sou de gêmeos, não. Sou um virginiano bem metódico, daqueles que separam meias e cuecas e deixam tudo bem dobradinho!!!

Elton disse...

Não vou defender os criminalistas, mesmo porque não sou um deles. Não por não ter estômago em defender alguém sabidamente culpada, mas pela estupidez de um sistema que ao mesmo tempo em que prega a defesa para todos, nega qualquer outra forma que não seja a mentira. Só há dois escapes para um culpado: negar quem é ou o que fez. E convenhamos mentir não é defesa. Portanto, só os inocentes têm direito a defesa, os culpados têm direito à mentira.
Defesa seria defender o ponto de vista do agressor e procurar que o Juiz ou Jurados entrassem em sua humanidade e compreendessem os motivos que o levou a cometer o crime. Mas, nosso sistema penal não funciona assim. Se o culpado defender sua atitude, mesmo que os julgadores a entendam justa, ele será condenado.
Logo que sai da faculdade desisti do direito penal, não por ser incapaz de compreender atos como o dos policiais que mataram o menino que roubou a moto, mas por recusar-me ser um profissional da mentira.
Grande Abraço
Elton