Fui informado por um amigo, na hora do almoço, que o escritor português José Saramago tinha morrido. Fiquei surpreso, um pouco triste, mas daí, como sempre acontece em casos do tipo, a gente comenta a última coisa que soube, ou leu, a respeito desta pessoa que acabou de partir e retoma a nossa vida no mesmo instante. Desta vez, como eu tinha um compromisso profissional na hora seguinte, retomar a vida exigiu pouco esforço.
Resolvi agora escrever algumas linhas sobre o Saramago porque eu tenho uma dívida pessoal com ele. Não, eu nunca o conheci e nem o vi pessoalmente. Não, ele nunca soube da minha existência. Mas isso não impediu que eu tivesse uma grande dívida com ele, uma dívida que eu estou tentando pagar há quase dez anos, mas os juros parecem se agigantar mais rapidamente do que minha possibilidade de recuperação financeira e moral.
Em 1997, Saramago publicou um livro chamado Todos os Nomes. Não acredito que este livro tenha passado em branco, mas seguramente não alcançou o mesmo êxito de títulos como O Evangelho Segundo Jesus Cristo ou Ensaio Sobre a Cegueira. Todos os Nomes narra a história angustiante de um personagem chamado José, funcionário do Registro Civil de Lisboa, que leva uma vida assustadoramente medíocre e insuportavelmente monótona. Ele está muito próximo de ser um ninguém, um nada, um ser humano que, depois de 40 anos de vida, não deve ter encontrado uma única razão que justificasse o seu nascimento. O seu José sempre me pareceu uma versão um pouco mais moderna, embora tão insignificante quanto, do senhor Akaki do conto O Capote, de Nicolai Gogol – dois sujeitos tão insípidos que, se um dia suas mães os encontrassem na rua, seriam capazes de dizer: engraçado, parece que eu conheço este homem, mas não me lembro de onde.
Quando terminei de ler Todos os Nomes, eu estava assustado. Muito assustado. Porque, mais do que um personagem de ficção, o seu José se erguia como a imagem do nosso descuido. Era como se ele me dissesse, ou nos dissesse, para suavizar um pouco a ameaça, que se não tomássemos as rédeas de nossas vidas e fizéssemos delas algo interessante e prazeroso, era ele, o seu José, que a gente iria encontrar logo mais adiante.
Dois anos depois de ler o livro, algumas circunstâncias me empurraram para a terapia. Talvez fosse mais elegante dizer que as circunstâncias me conduziram para a terapia, mas, no meu caso, o que valeu foi mesmo um empurrão – da vida e de dois ou três amigos. Então, na primeira sessão, uma sexta-feira fria e chuvosa, em que eu cheguei ao consultório antes do psiquiatra e tive de esperá-lo no corredor, começou minha dívida com o Saramago. O médico me perguntou o que tinha me levado até lá. Contei algumas coisas provavelmente normais de se contar numa situação dessas, falei de uma tristeza aqui, de uma decepção ali, de um vazio cá, lá e acolá, e finalmente fiz o meu estranho pedido de paciente novato. “Por favor – pedi ao psicanalista – não deixe que eu me transforme no seu José”. Ele perguntou quem era o seu José. Como o livro estivesse ainda muito quente na minha memória, tentei ser o mais fiel possível na hora de descrever aquele homem que eu queria eliminar do meu futuro.
Já se foram quase dez anos daquela sexta-feira chuvosa e, se alguém me perguntasse, ainda hoje, o que eu fiz de mais relevante neste tempo todo, eu responderia, sem medo de soar piegas: eu continuo fugindo do seu José. E, como nos pesadelos, evito olhar para trás. Tenho um sincero e justificado medo de que, por mais que eu tenha me esforçado para me distanciar dele, seu hálito continua roçando o meu ombro.
sexta-feira, junho 18, 2010
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6 comentários:
Além de algumas coisas que você já me disse na mesa do bar, por telefone ou MSN, você escreveu muitas peças que me fizeram refletir muito (assim como esse José - o Saramago - não foi um seu José, só por ter te causado essa dívida) e mudar alguns conceitos. Então, na minha humilde insignificência, afirmo que, com toda a certeza, você não é um seu José.
brigadäo, kiko. E sem falar que, quando a gente conversa ao telefone, meu português é mais fácil de entender do que o do saramago, né? beijao e brigadao pela visita
brigadäo, kiko. E sem falar que, quando a gente conversa ao telefone, meu português é mais fácil de entender do que o do saramago, né? beijao e brigadao pela visita
Olá Sérgio. Que bonito e interessante post... É bom (sempre) vermos como os livros, a escrita, pode unir e representar-nos a todos independentemente do lugar que estejamos.
Estou a escrever-lhe porque, como actor (amador) que sou, pretendo usar um dos seus textos para apresentação aqui em Portugal. Preciso saber se está exigindo direitos de autor da peça "O Encontro das Águas". O texto será traduzido e adaptado. POde dar-me essa informação por favor?
Muito obrigado.
Um abraço directamente aqui de Portugal.
Cristovao
Olá, Cristovão, tudo bem? Espero que sim. Obrigado pela visita ao blog. Olha, por favor, me envie um e-mail que a gente conversa sobre o Encontro das Águas, com prazer:
sroveri@terra.com.br
abraço grande
Coisa de mestre. Muito tocante, permeado de cultura real, sem ser chatinho. Imagino se o seu médico havia ou não lido Saramago? Tomara que sim... O meu leu TUDO! (Isso quando não é o autor, ele mesmo)
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