Assim que me mudei para São Paulo, um amigo do Jornal da Tarde me levou para jantar na cantina Famiglia Mancini, uma maneira carinhosa de me dar as boas-vindas à cidade. Eu já conhecia o lugar e confesso que nunca esteve entre meus prediletos. Em todo caso, achei que seria pouco elegante recusar o convite e lá fomos nós, enfrentar as filas na calçada do Bexiga. O garçom nos acomodou em uma daquelas saletas em que havia lugar para duas mesas – a nossa e a de um casal que chegara praticamente na mesma hora que nós. Eles deviam ter por volta de 40 anos e talvez, mas agora o cálculo é por conta e risco da minha imaginação – devessem estar juntos por mais de dez.
Cada um abriu o seu próprio cardápio e fez um pedido diferente ao garçom. Mergulharam, então, em um silêncio que perdurou pelo jantar inteiro, mais de uma hora de um mutismo assustador. Cada um olhava para um canto, os rostos não se encontravam jamais; um polvo talvez soubesse o que fazer com as mãos melhor que eles. A única expressão que ouvi, dele, foi um muito obrigado quando o garçom trouxe o troco. E foram embora tão mudos quanto chegaram. Eu e meu amigo, que à época era solteiro e hoje está no terceiro casamento, comentamos como devia ser chato voltar para casa daquele jeito, praticamente na companhia de um estranho. Imaginamos que aquele não deveria ter sido um episódio particular – era possível que aquele silêncio e aquele desconhecimento da presença do outro já rondassem aquele casal por muito tempo. Concordamos que a solidão a dois é um espetáculo muito triste.
Ainda hoje me lembro daquele jantar porque ele não foi só marcante, foi o primeiro de uma série que eu pude ver se repetir ao longo dos anos. Encontros tingidos pelo silêncio ou por um único assunto, repetido à exaustão. Há um mês, sentei-me ao lado de um casal num restaurante da Vila Madalena. Era horário de almoço e eles estavam visivelmente apressados e nervosos. Melhor dizendo, ela estava nervosa. Quanto a ele, não posso me certificar se estava realmente vivo. Ou ali. Foi impossível ignorar o motivo do nervosismo dela. Com a voz em volume máximo, ela contou que precisava ser operada e o plano de saúde não permitia que o procedimento fosse feito por um médico não conveniado. O problema era exatamente este – nem uma vírgula a mais, nem uma exclamação a menos. E ela levou cerca de 40 minutos para explicar isso para o marido. Ele deve ter entendido logo na primeira vez, mas ela repetiu a informação com todas as variações possíveis, enquanto ele não abriu a boca uma única vez, a não ser para introduzir o garfo. Pensei no que era mais dolorido – o silêncio total do casal do passado ou a repetição obsessiva de uma única fala para que não despontasse um abismo entre o casal atual.
Como às vezes alguns assuntos parecem nos perseguir em determinadas épocas, três ou quatro dias depois daquele almoço saí para comer uma pizza, desta vez com dois amigos. Era domingo de carnaval e a pizzaria, concorrida durante todas as noites do ano, exibia uma calma estranha. Ao nosso lado, sentou-se – e lá vamos nós de novo – um outro casal, elegante e cheio de distinção. Pois ela passou todo o tempo, todo o tempo mesmo, contando de como perdera e mais tarde recuperara um anel de brilhantes, o mesmo que ela orgulhosamente exibia como prova de sua aventura. Novamente a história foi repetida pelo menos cinco vezes pela mulher, enquanto o marido entornava suas tacinhas de vinho tinto e mal tocava na pizza. No resto do país era carnaval, mas na mesa deles já havia sido decretada a quarta-feira de cinzas.
É pretensioso demais tentar desvendar o que vai pela cabeça dos outros, embora alguns sinais sejam visíveis. Mas todos estes episódios de absoluta falta de comunicação e entrosamento só me fazem acreditar que muita gente já não está mais onde deveria estar. O corpo ainda continua saindo e fazendo companhia para o outro, mas a mente e o coração já escaparam faz tempo.
quinta-feira, março 04, 2010
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5 comentários:
Por que as pessoas fazem isso com elas mesmas? É o medo da "solidão sozinha"? Tb vejo esses casais por aí...e fico pensando.
Bjs, adoro o seu trabalho, as matérias e o blog.
Oi, Juliana, muito obrigado pelo carinho e pelo incentivo. Beijão
engraçado, acabei de ler, na folha de são paulo, 2 textos sobre solidão a dois (ou mais),provocadas pelo celular.
diferente a causa, mas o efeito acaba sendo o mesmo, né?
Impressões:
Que imagens! Adorei o polvo. Me passam pela cabeça mil variações de casais com seus braços espremidos neles mesmos, nas tacinhas de vinho, no macarrão da familia mancini, na elocubração de falar qualquer coisa para apagar o espaço surdo que há entre um e outro. A repetição é sim maçante e o silêncio - desta forma - absurdo. De qualquer forma, nas duas situações há o abismo, uma estase, o lixo amoroso, o zumbido do que não se comunica mais. E tocada por assistir tudo isso de fora - no meu caso não exatamente assistir, mas imaginar - fico pasma, é assombroso, embotado, engulho... E qual não seria o desespero interno dessas pessoas, ou qual o tamanho da falta de contato consigo mesmo que as permitem paralisar nisso? Fico imaginando que tipo de interrupção (ou intrusão) as salvaria. Quiçá da próxima vez eu me sente a mesa com os dois - certa de que isso também não bastaria.
Um beijo
Fátima e Júlia, muito obrigado pela visita e pelos comentários. É um mundo muito doido este mesmo, né? Solidão a dois, celulares em vez de pessoas, enfim... acho que todos estamos fugindo de alguma coisa....
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