quinta-feira, janeiro 07, 2010

Ensaboa, mulata, ensaboa....

Acho que de tanto ouvir dizer que estes dias que cercam o Natal e o réveillon são uma época de amor, que eu acabei me lembrando de uma história de amor. Não chega a ser exatamente uma história de amor, muito menos uma história com final feliz. Mas é uma história em que o amor ocupou o centro da discussão, embora ele (o amor) deva ter se envergonhado de ver seu nome e sua função tão profanados.

Aconteceu comigo. Numa época bem complicada da minha vida, final dos anos 90. Um período em que os dias se arrastavam, a vida tinha se transformado num interminável filme em preto e branco com um roteiro perverso e meu maior desejo era ver meu corpo fundir-se às molas e espumas do meu colchão – até que não houvesse mais distinção possível entre dormir e viver. Um amigo, hoje um profissional bem-sucedido que trabalha no Exterior, ao me ver tão amante das sarjetas me indicou uma psicóloga cujo consultório, um casarão arejado e surpreendentemente silencioso, situava-se numa rua muito movimentada e barulhenta da região central da cidade. Ao chegar para a primeira consulta percebi que difícil não seria falar sobre minha vida e meus problemas, difícil seria entrar com o carro na minúscula garagem que a psicóloga me oferecera. Cheguei a pensar que aprender a estacionar o carro ali já deveria fazer parte do tratamento. Quem vence este obstáculo, imaginei, tira de letra qualquer complexo de Édipo ou fixação na fase oral.

Ela atendia no segundo andar do casarão, aonde se chegava depois de vencer uma escada em caracol, com degraus escorregadios de uma madeira escura. “Tome cuidado aqui”, ela me preveniu. “Na semana passada um paciente caiu”. Na tentativa de provocar uma intimidade prematura, perguntei se a queda havia se dado antes ou depois da consulta. Ela não respondeu.

Ela atendia em uma sala espaçosa, com duas mesas. A primeira, e maior, ocupava o centro do consultório. Foi ali que ela pediu meus dados pessoais. A segunda, praticamente uma mesinha de café, ficava embaixo de uma janela, com vista para duas árvores imensas no quintal. Ela me perguntou se eu não me incomodaria de realizar as sessões ali, ao lado da janela. Descobri, em seguida, que a janela não estava ali para arejar meus pensamentos, e sim dar vazão à fumaça dos incontáveis cigarros que ela consumia com sofreguidão durante as sessões. Fingi que tanta fumaça também não me incomodava.

E assim, entre degraus lisos, cantos de passarinhos e nuvens de nicotina, teve início minha história com ela. Uma história, vejo hoje, de pouca intimidade e confiança. Eu sentia que as sessões não evoluíam, que as perguntas que ela me fazia eram inconsistentes, que seus exemplos eram inverossímeis e suas metáforas, pobrezinhas. Até que um dia ela fez o tipo de pergunta que, ao meu ver, deveria representar a cassação do registro de qualquer profissional da análise por exercício irregular dos clichês: “Você se ama?” . Talvez por ver a expressão de frustração estampada em meu rosto, ela procurou evoluir: “Você diz diariamente a você mesmo que você se ama?” Dei uma chance a ela, perguntando sobre o que exatamente ela estava querendo falar. E aqui eu transcrevo, entre aspas, tudo o que ela me disse:

“Eu quero saber se, durante o banho, quando você ensaboa seu braço, por exemplo, você diz assim: braço, eu te amo. Braço, você é uma parte muito querida do meu corpo e é essencial ao meu bem-estar e por isso eu te amo muito. E quero saber se depois você faz a mesma coisa com as pernas, com as mãos, com os pés. Eu quero saber se você declara seu amor incondicional a cada parte do seu corpo, enquanto as acaricia com água morna e sabonete... As partes do seu corpo precisam saber que são amadas por você. E assim, ao declarar seu amor a cada parte sua, um dia você vai se descobrir apaixonado por você mesmo”.

Por uma dessas graças divinas, a sessão acabou na sequência e eu não precisei responder nada. Saí do consultório e vim a pé para casa, me perguntando se eu não seria capaz de encontrar uma maneira mais inteligente de gastar meu dinheirinho suado.

Nunca mais voltei ao consultório dela, mas continuo tomando banho diariamente, dois por dia nestas semanas mais quentes. Na véspera do Natal, embaixo do chuveiro, me lembrei desta história e pensei em dizer o seguinte: “Braço, como você foi bonzinho para mim o ano inteiro, esta noite o papai Noel vai te trazer um lindo presente”. Mas achei melhor ficar calado: já imaginou se o outro braço, as duas pernas, as duas orelhas e os vinte dedos ouvissem a promessa e também exigissem uma lembrancinha de Natal...Achei melhor que eles se contentassem com a água morna e a espuminha. E já está bom demais!

Um comentário:

fátima disse...

hahaha... por essas e por outras é que eu prefiro gastar meu rico dinheirinho com outras coisas!
sinceramente, não consigo entender essa necessidade moderna que as pessoas têm de ter analista - lógico que existem casos patológicos que necessitam de ajuda psiquiátrica, e não é desses que eu falo.
conheço uma família, bem próxima a mim, por sinal, em que vão ao anlista o pai, a mãe e os filhos, estes desde a pré-adolescência. me parecem tão bem, todos eles, tão desnecessária a terapia...
acho que um bom amigo faz o mesmo efeito, ou um travesseiro, ou o simples exercício do bom senso.
pra quê essa dependência de outro ser que, às vezes, é mais inseguro que o paciente, menos preparado (como essa daí), menos vivido?

bj