No intervalo de apenas seis dias tive o prazer de assistir a duas peças da escritora francesa Marguerite Duras em São Paulo. Demorei um pouco para escrever sobre isso porque fiquei pensando se haveria algo em comum entre os dois textos, escritos com um intervalo de vinte anos e, cada um ao seu modo, testemunhas de um mundo em transmutação.
La Douleur, de 1945, narra a terrível espera da escritora pela libertação de seu companheiro Robert D., levado pelos nazistas para o campo de concentração de Dachau, na Alemanha. O monólogo foi apresentado em São Paulo em apenas dois dias, 12 e 13 de setembro, diante de um público extasiado no Teatro do Sesc Anchieta. Mirrada e magnética como uma Edith Piaf, a atriz francesa Dominique Blanc, dirigida por Patrice Chéreau, fez de La Douleur uma pequena descida aos infernos sem previsão de retorno. Ao inferno da dor, já presente no título, mas também ao inferno da espera, da angústia, da separação e principalmente da proximidade da morte.
Conversei sobre este texto com um amigo médico, leitor voraz e eternamente insatisfeito. Ele me disse que foi apresentado a este livro de Duras por um professor de clínica médica, que um dia surpreendeu os jovens estudantes com a declaração de que se eles quisessem entender a dor humana, deveriam ler La Douleur e não os livros de medicina. “Nenhum autor médico conseguiu chegar tão perto da descrição da dor quanto ela”, disse o professor. “Leiam e vocês entenderão até onde pode chegar o sofrimento humano”. Ele leu – e me garantiu que o professor tinha razão.
Ainda sob o impacto de La Douleur, que deixou várias pessoas prostradas na poltrona quando o espetáculo terminou, fui ver La Musica, que Marguerite Duras escreveria bem mais tarde, em 1965, já superadas as dores da guerra e na antessala da chegada do feminismo. La Musica, em cartaz no Tuca Arena, fala de um casal que se reencontra três anos após a noite da separação apenas para assinar a documentação do divórcio. Conversam aproximadamente das seis da tarde às três da manhã – um diálogo interrompido por três telefonemas, dois da nova parceira do homem e um do novo parceiro da mulher. Sim, nestes três anos eles refizeram a vida, mas de uma maneira que o público chega a pensar que seria melhor se não tivessem refeito.
E então eu entendi que os dois textos falam, acima de tudo, da separação, talvez mais do que da própria dor. No caso de La Douleur, a separação imposta por um mundo em guerra; em La Musica, a separação como consequência de pessoas motivadas por uma guerra mais particular, alimentada por pequenas traições, intransigências, fadiga, rotina e descaso. E, com suas palavras certeiras e impressionantemente precisas, Duras parece querer dizer que os bombardeios, sejam eles despejados dos aviões ou das bocas dos amantes, têm poderes igualmente letais.
La Douleur é um texto de sofrimento escancarado, imediato e reconhecível. La Musica, e agora isso me parece muito claro, traz a dor camuflada pela civilização cuja ausência permitiu justamente o nascimento do texto anterior. Talvez eles se complementem, talvez tragam um ponto de vista trágico e outro mais cotidiano sobre a dor da separação, sobre aquele hiato em que o amor num caso e a diplomacia no outro falharam. Talvez seja muito mais que isso. Ou talvez seja muito mais simples. É possível que os dois textos queiram mostrar apenas que viver sempre dói, em tempos de guerra ou de paz. E que não há receita possível para evitar isso, a não ser a nossa disposição de acreditar em alguma redenção possível.
sexta-feira, setembro 25, 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
Não consegui ver a francesa, mas quero ver La Música.
Serginho, me diz uma coisa... No cinema, a Dominque Blanc me lembra muito a Denise del Vecchio. Ao vivo também?
Queridão, acho que você vai gostar muito do texto do La Musica. Uma coisa tão simples, mas tão envolvente. Putz, acho que a Dominique não lembra a Denise, não. Pelo menos não fiz esta associação logo de cara. Vou ver fotos dela no google...
Postar um comentário