quinta-feira, setembro 17, 2009

O último entre tantos adeus

Na manhã desta quinta-feira minha tia, única irmã da minha mãe, morreu aos 81 anos. A morte de hoje, ocorrida às 8h30, foi sua segunda morte. Ou sua morte oficial, aquela que constará nas certidões e atestados. Vítima de Alzheimer, ela já estava morrendo há pelo menos seis anos. Para seus filhos e netos, é bem provável que a morte tenha ocorrido inúmeras vezes ao longo dos dolorosos episódios em que ela foi apagando cada um deles da sua memória. A mulher idosa e macérrima que cerrou os olhos pela última vez na manhã de hoje já havia se convertido em uma espécie de fantasma em uma data que talvez ninguém se lembre exatamente qual – até porque foram tantas. Uma para cada pessoa que um dia escapou para sempre de suas lembranças.

Como vivíamos em cidades diferentes, não acompanhei de perto seu processo degenerativo. Mas aprendi que o Alzheimer é uma doença de inúmeras faces – algumas delas muito peculiares, até. Um doente de câncer é sempre um doente de câncer – e não parece haver nada de engraçado nisso. O Alzheimer, não. Antes de revelar sua faceta mais aterradora, é uma doença que transforma sua vítima, logo nos primeiros sintomas, em uma atração para a família. Confesso que era difícil ocultar o riso – ainda que fosse um riso piedoso – diante da visão da minha tia plantando e regando flores de plástico, aquecendo o telefone celular dos netos dentro do microondas até que eles explodissem ou tentando fazer um suco de laranja com o secador de cabelos. Até então, achávamos apenas que era uma pessoa com pouco mais de 70 anos compreensivelmente alheia a um mundo cheio de aparelhos tecnológicos. Como se fosse uma criança, talvez ela apenas não soubesse o que fazer diante de tantos aparelhos que a tecnologia, os filhos e netos haviam trazido para sua casa. Mas esta “infância” do Alzheimer dura pouco.

Depois da confusão com os objetos, veio uma fase, ainda mais inquietante, em que ela era invadida por ondas de intenso desejo sexual. Maquiava-se, tomava vários banhos por dia, recorria a velhos frascos de perfume para esperar pela chegada de um namorado misterioso, com quem ela iria “rosetar” a noite inteira. Recorri ao Aurélio. Rosetar: divertir-se às pampas com alguém do sexo oposto. A doença parece ter desenterrado nela um apetite sexual que seu marido, um pouco mais velho e já bastante doente, jamais seria capaz de dar conta. E então percebemos que não havia nenhuma contradição, física ou moral, em seu irrefreável desejo pelo sexo: dentre todas as pessoas próximas, o marido foi a primeira de quem ela se esqueceu. Uma tarde, ao sair do quarto arrumada e de batom nos lábios, ela viu o marido deitado no sofá. Olhou para os filhos e perguntou: quem é este velho que está dormindo na minha sala? É seu marido, responderam os filhos. Eu sou solteira, ela respondeu. E se tivesse de me casar, não seria com um homem tão velho e feio como este aí. Neste dia, se ainda havia alguma picardia na doença, ela foi embora.

E então começaram a vir os episódios mais tristes. Em meio às suas constantes crises de choro, ela dizia sempre que queria voltar para casa. Não adiantava dizer que aquela era a casa dela. Chorando e diante dos portões já com cadeados, para evitar sua fuga, ela procurava pela sua casa de infância. Tinha no rosto a impressão de uma criança perdida. E então, um a um, ela foi apagando os cinco filhos e cada um dos tantos netos. Foi falando cada vez menos, o olhar foi se tornando mais estranho e inquisidor, as pessoas ao seu redor já não lhe diziam mais respeito.

Até então, não tinha visto minha mãe chorar por causa da minha tia – talvez porque minha mãe fosse a única pessoa de quem ela ainda se lembrava. Mas, numa tarde de domingo, minha tia olhou bem para minha mãe e disse: Já está na hora de você se casar e ter filhos. Você não pensa em arrumar um marido?”. Minha mãe respondeu que já era casada, tinha dois filhos e uma neta. E fez a pergunta que finalmente trouxe as lágrimas aos seus olhos: Você não sabe quem eu sou? Minha tia olhou para ela e respondeu simplesmente: Não.

Nos meses e anos seguintes, ela foi mergulhando em um silêncio cada vez mais impenetrável. Já não andava mais, apresentava várias escaras pelo corpo e na segunda-feira à noite parou de comer. Morreu nas mãos dos enfermeiros enquanto estava sendo ligada a sondas e outros aparelhos totalmente inúteis. O adeus que lhe deram nesta manhã cinzenta de Jundiaí ainda foi o mais dolorido. Mas para todos aqueles que acompanharam o seu descomunal sofrimento, estava longe de ser o único.

18 comentários:

Isabella disse...

Que doença misteriosa...
Sei de casos de Alzheimer em conhecidos da minha família, mas nunca acompanhei de perto a perda da memória.
Deve ser um sofrimento muito grande.
Como pode isso?
Belo texto...
Um beijo.

Anônimo disse...

oi, Sérgio.

Tristíssimo relato, comovente e espanto; esta doença desencandeia muitas perdas, vários tipos de perdas. No princípio eu ri, mas depois entrei numa vertigem. Definitivamente somos um enigma.

Bjim,
Valéria

Vinícius Linné disse...

Parabéns. Escreves com muita propriedade. Se não chorei, foi por pouco. É realmente comovente o texto e nos faz pensar além...

Mário Viana disse...

Serginho, que bela homenagem. Seu texto trouxe sua tia de volta e a instalou em nossa imaginação.

Uma vez, numa clínica de fisioterapia, vi uma senhora fazendo exercícios - e ela tinha Alzheimer. A enfermeira me disse: às vezes, ela tá boa; outras, esquece o que é sentar. Em outras, fica diante do espelho e estranha a imagem refletida.
Triste, triste, triste.

Só no blog disse...

Isabella, Valéria, Vinicius e Mario: muito obrigado pela visita e pelas experiências que relataram aqui. ~beijões

Janaína disse...

Sinto muito Sérgio querido. Grande beijo

Paulo Cunha disse...

História triste, texto lindo. Tens o dom, meu caro. Meus sinceros sentimentos por sua tia e um grande beijo pra você. PC

Marcio Hasegava disse...

Um belo texto a partir de uma história triste que infelizmente parece replicada cada dia mais.

Alex Wildner disse...

Oi Sergio.
Entrei aqui sem razão. Sem razão saio. Não li seu texto, mas o enxerguei corridos pelas linhas da minha tela do notebook, eu mais que li, corri pelas linhas da minha memória. As lembranças de momentos tristes são intensamente dolorosas, mas o esquecimento, esse não conseguimos medir.
Meu avô colocou minha família em situação de angústia semelhante.
Se esquecer, ser esquecido...

Abraços

Alex W.

BRINQUEDO NOTURNO disse...

BELO TEXTO SERGIO, CARREGADO DE POESIA, VERDADE, HUMOR.
SORTE E +

BRINQUEDO NOTURNO disse...

DUCARALHO ESSE TEXTO RECHEADO DE CRIATIVIDADE POESIA VERDADE E FICÇÃO.
SORTIE E +

Só no blog disse...

Márcio e Brinquedo Noturno, muito obrigado pela visita ao blog e pelo estímulo dos comentários. Uma ótima semana para vocês.

Anônimo disse...

Sei o que é isso, caminhamos para isso em família. Triste e dolorido.beijos, Rachel

Marcio Tito Pellegrini Trigo disse...

Eu vi essa senhora... Na saudade desse sobrinho. Triste.

Só no blog disse...

Oi, Márcio, valeu pelo carinho e pela visita ao blog. Abração

Só no blog disse...

Oi, Márcio, valeu pelo carinho e pela visita ao blog. Abração

Marcio Tito Pellegrini Trigo disse...

Ainda não conhecia o blog, apesar de conhecer e gostar do seu trabalho.EU vi o link no blog do Guzik. Já virei frequentador. Abraços

Só no blog disse...

Ôba, que legal. Apareça sempre por aqui, será muito bem-vindo. Abraço grande.