Eu tenho acompanhado com muita curiosidade, nos últimos dias, o animado debate entre criacionismo e teoria da evolução alimentado pelos leitores do jornal Folha de S. Paulo. Acredito que não exista em qualquer veículo de mídia impressa um espaço, como a seção de cartas, em que a gente possa ter uma noção precisa sobre como anda a cabeça das pessoas. Os editoriais representam a opinião dos patrões, os articulistas falam por si próprios; sobram, então, as cartas enviadas por leitores pacientes que nos ajudam a traduzir um pouco o mundo. E, há dez dias, leitores enfurecidos e irônicos estão subsidiando uma guerra santa entre aqueles que acreditam que o homem surgiu a partir do sopro divino em um molde de barro e os que acham que o topo da nossa árvore genealógica deve estar reservado para um sorridente macacão africano.
No sábado, um leitor provavelmente pouco apaixonado pelos estudos de Darwin disse que enquanto não nascer um pato a partir de um ovo de galinha ou uma macaquinha não parir um ser humano, ele vai continuar acreditando que foi feito por Deus, à sua imagem e semelhança. Da minha parte, se este for o preço para que ele se converta ao darwinismo, eu torço para que ele continue com sua fé divina – o mundo já está caduco demais sem que patinhos comecem a piar atrás de uma galinha confusa e de um galo com a pulga atrás da orelha. Até porque, pelo pouquíssimo que li a respeito de Darwin, ele diz que as espécies se aprimoram e a natureza se encarrega de fazer uma seleção natural, dando prioridade aos mais fortes e aptos, o que não quer dizer que galinhas se transmutem em patos e muito menos que crianças comecem a nascer nas selvas africanas paridas por macacas desorientadas. Isso soaria como uma hierarquia absurda.
Hoje um outro leitor, ao que me parece farto desta discussão, colocou no mesmo saco de suas queixas a quiromancia, anjos e homeopatia. Aposto que, a partir de amanhã e com razão, médicos e associações de homeopatas vão escrever protestando contra a carta deste leitor. É engraçado ver que uma discussão que começou lá atrás, com Adão e Eva de um lado e alguns macacos mais espertinhos do outro, tenha respingado na cabeça dos homeopatas, coitadinhos: eles fazem seis anos de medicina, mais dois de especialização para depois ver sua prática chamada nos jornais de “besteiras”. Ou seja: embora ninguém saiba de onde realmente tenha vindo, é bom não mexer com este lugar imaginário, que todo mundo fica puto. Parece um pouco brincadeira de criança: a minha mãe é santa, já a dos outros...
De minha parte, sem querer ofender ninguém, eu acho muito mais bacana acreditar que meu tatataravô tenha sido mesmo um macacão forte, exímio caçador e chefe de família exemplar, que cuidou bem da minha tatataravó grávida, protegeu-a do frio e da fome e tirou cuidadosamente os piolhinhos de todos aqueles macaquinhos que, milhares de anos e centenas de cruzamentos depois, deram origem a mim, que não sei caçar, mal consigo proteger a mim mesmo e, na hora da fome, visto um moletom e corro até a padaria da esquina para comer uma fatia de pizza de mussarela. Vendo a coisa por este lado, não sei se a espécie evoluiu muito, não.
Mas há algo que me agrada muito na teoria da evolução – é acreditar que nós estamos aqui por mérito. Que somos descendentes de uma linhagem de vitoriosos, antepassados hominídeos que seguramente enfrentaram desafios inimagináveis para perpetuar sua espécie no planeta. E, caso queiramos insistir na presença de Deus neste processo, melhor ainda: não parece haver nada mais divino do que amparar a nossa evolução, ser o grande arquiteto que aprimorou cada uma de suas pequenas criaturas, que permitiu que aquele primata que vivia em árvores e se equilibrava em cipós hoje domine a ciência, as artes e, ainda que se atrapalhe nas emoções, é a prova mais bem-acabada de que o tempo é um artesão insuperável. Deus, na minha modestíssima opinião, é isto. E não é pouco. E eu me orgulho muito mais de pertencer a esta família, numerosa, peluda e barulhenta, do que àquela outra, nascida de uma porção de barro e condenada a sofrer por toda eternidade porque um dia cedeu ao desejo e quis experimentar o proibido e o desconhecido.
segunda-feira, dezembro 08, 2008
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2 comentários:
Roveri, tem dois caras que eu respeito muito, o Richard Dawkins e o Bill Maher. Ambos ateus radicais. Mas o Dawkins vai mais longe: seu livro "Deus, um Delírio", destrói até a fé do Papa (se é que Bento tem alguma). Pois no livro Dawkins, que cita Carl Sagan e Einstein o tempo todo, fala uma coisa linda sobre a vida: em meio a tantas doenças, intempéries da natureza, acidentes cósmicos e o escambau, nascer já é em si um ato quase miraculoso, que o indivíduo tem que agradecer aos antecessores primatas. Estamos aqui por mérito. Divino é o macaco.
Otávio, meu querido. Assino embaixo do seu comentário com letras maiúsculas. Abraço grande.
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