Quase ninguém ainda se conhecia pelo nome. Éramos trinta e poucas crianças, assustadas em nossos sete anos, diante daquela professora que, embora bondosa, nos obrigava a passar quatro horas fazendo exercícios de caligrafia para que nossos punhos e dedos selvagens se habituassem com os mistérios da escrita nos quais dávamos os primeiros passos. Os uniformes ainda não estavam prontos, nem os cadernos haviam sido encapados. A espera pela chegada da primeira cartilha, a famosa Caminho Suave, foi quebrada por um baque seco no fundo daquela classe do primeiro ano primário: um dos nossos, um aluninho de cabelo preto cortado escovinha, caiu desmaiado no meio da aula.
Acho que nenhum de nós tinha presenciado antes um desmaio ao vivo. A professora o socorreu imediatamente e logo vieram em seu auxílio a diretora e uma velha zeladora da escola. Naquele dia, ele não voltou às aulas. Quando cheguei em casa, contei a aventura para minha mãe, que não teve dúvidas quanto ao diagnóstico: o menino desmaiara de fome. No dia seguinte, eu voltei para a escola levando dois lanches. Sinceramente não me lembro do que era o meu lanche, mas ainda consigo enxergar o dele: um imenso sanduíche de pão com mortadela. Assim que eu o vi - todos o viram muito bem no dia seguinte - caminhei em direção a ele, como um escoteiro, levando minha oferenda na mão. "Toma aqui, minha mãe mandou te dar. Ela falou que você desmaiou de fome". O menino não pegou.
Inconformado com esta recusa, procurei a professora para dizer que eu havia trazido um lanche para o menino do desmaio. Ela também tentou convencê-lo, sem sucesso, a aceitar minha gentileza. O lanche ficou na mesa da professora e não me lembro se algum outro aluno o pegou ou se ele foi mesmo parar no lixo.
Algumas semanas depois, todos os alunos foram submetidos a alguns exames médicos que diziam ser rotineiros. Primeiro, o exame de vista; depois o de fezes. Em um dia, recebíamos as latinhas de alumínio para colhermos as fezes. No dia seguinte, deveríamos trazê-las cheinhas, devidamente embrulhadas e com nosso nome completo escrito numa tira de esparadrapo. O resultado ficou pronto duas semanas depois, e causou uma surpresa geral. A classe todinha, incluindo as meninas, tinham oxíuros, aqueles bichinhos brancos que costumam provocar uma insuportável coceirinha no fiofó. Só um único aluno estava livre dos tais oxíuros: o menino que havia desmaiado. Neste dia aprendemos o nome dele: Mauro. Primeiro pelo desmaio e depois por seu cocozinho imaculado, Mauro se tornou o aluno mais famoso da turma. O único que, segundo a professora, nunca andava descalço e por isso não tinha vermes. Mais uma lição pra gente aprender.
À medida que os dias iam correndo e as crianças iam se conhecendo melhor, ficamos sabendo que Mauro também era o aluno mais rico da classe. O pai dele era dono de uma grande transportadora e de escritórios de contabilidade, instalados na rua mais movimentada do bairro, a primeira a ser pavimentada em toda sua extensão. Nunca soubemos por que Mauro desmaiou naquele dia, mas seguramente não tinha sido de fome. Quando contei para minha mãe a que família Mauro pertencia, ela demorou a se dar por vencida. "Esses ricos, grande coisa, nem sabem cuidar das crianças..."
quarta-feira, novembro 14, 2007
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2 comentários:
adoro teus exercícios de memória. eles ainda serão um livro. mark my words. daí eu escreverei o prefácio. bjs
Muito bacana o texto... Eu vivi esse tempinho, deu saudade da Caminho Suave (encapada com papel manteiga vermelho) mas não tivemos o cuidado do exame de fezes. Bem que precisava!
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