quarta-feira, abril 20, 2011

A Maria Callas na cadeira da cozinha

Não são os terremotos, os tsunamis ou o derretimento da calota polar que me fazem acreditar que deve haver algo de errado com o clima. O que me leva a pensar que alguma coisa está mudando na natureza é ver que até na Sexta-Feira Santa agora faz calor. E até onde minha memória me permite viajar, eu garanto que não era mesmo assim. Desde quando aquelas sextas-feiras frias e tristes da minha infância, quando não havia nada mais animado a fazer além de esperar pela procissão que passava na frente de casa, deram lugar a praias com sol e tempo bom? Este sim, para mim, é um dos mistérios da fé. Naqueles dias santos, havia uma melancolia e um inexplicável temor diante da morte que, penso eu agora, estavam intimamente ligados às nuvens cinzentas que cobriam o céu da minha cidade. Era um convite natural à tristeza que, felizmente, parece que abandonamos.

Me lembro de minha mãe dizendo que, em seus tantos anos de vida, nunca ter visto uma Sexta-Feira Santa ensolarada. Para ela, talvez, a natureza em si fosse uma católica praticante que recolhesse parte do seu brilho em respeito ao deus morto. Meu pai não se barbeava naquele dia e nós, crianças, deveríamos ficar longe da tevê e do rádio. Tínhamos reforçada a recomendação de, especificamente naquele dia, não brigar na rua e nem dizer palavrões, ao menos em voz alta. Era proibido rir alto, correr ou jogar bola no campinho esburacado. Acho que era proibido ser muito feliz também.

Diante de tantas restrições, talvez eu me obrigasse a encontrar algum encantamento naquele dia, alguma brechinha para me extasiar no meio de um ritual de cores escuras, velas mal-cheirosas e estátuas de semblantes doloridos e machucados. Encontrei o tal encantamento numa misteriosa figura feminina. Ela tinha o rosto coberto por véu e um pano amarelado nas mãos que, mais tarde vim a saber, trazia a imagem da face de Jesus. Para mim, aquela mulher, chamada Verônica, era o que havia de mais misterioso e fascinante na Procissão do Senhor Morto.

Ao longo do percurso da procissão, todos paravam, se não me engano nove vezes, para ouvi-la cantar. Uma dessas paradas se dava bem em frente ao portão da minha casa. Quando a procissão se aproximava, minha mãe arrastava para a calçada uma cadeira que em pouco tempo iria se converter num minúsculo palco sobre o qual Verônica soltaria sua voz fina, dolorida e potente, enquanto desenrolava o pano amarelado com a imagem do rosto do Cristo martirizado. O que ela está cantando, eu perguntava para quem estivesse mais perto. Devia ser algo em latim, já que ninguém nunca me respondeu satisfatoriamente. O canto da Verônica era o acontecimento mais aguardado de um dia em que nada mais deveria acontecer. Com o tempo, aquela mulher que eu ingenuamente acreditava ganhar vida só no dia da procissão, deu um toque de Natal para a minha Sexta-Feira Santa. Ela era uma espécie de Papai Noel entristecido que trazia um único presente: a voz misteriosa e incompreensível que fazia uma serenata pungente na frente da minha janela.

E durante anos eu aguardava a procissão da Sexta-Feira Santa, na certeza de que, num milagre tão potente quanto o da ressurreição de Cristo, Verônica voltaria para a vida bem em cima da cadeira da nossa cozinha. E então, numa tarde, enquanto acompanhava minha mãe até uma loja recém-aberta no bairro, passamos na frente de uma casa simples, com jardinzinho ressecado e duas janelas azuis cravadas numa parede que havia sido branca algum dia. “É aqui que mora a Verônica”, minha mãe disse, sem nem sequer diminuir o passo. Gelei. “Que Verônica?”, eu perguntei, talvez já com medo da resposta. “A que canta na procissão. Ela mora aí com os dois filhos”. A vida, então, era só isso: a Maria Callas da minha infância morava no mesmo bairro e tomava conta de dois filhos numa casinha modesta. Talvez até trabalhasse fora, mas nisso eu nunca quis pensar.

Quem sabe tenha sido naquele momento, em que a magia se desfez de forma tão impiedosa, que o sol começou a raiar também na Sexta-Feira Santa.

3 comentários:

Anônimo disse...

que bom que voltou! seus textos fazem falta =)

Unknown disse...

Que saudade dos seus textos. Que bom que você voltou a nos presentear com suas histórias. Não suma de novo. Abração!

Só no blog disse...

Brigadão, meus queridos. Beijão a boa semana pra vocês