Há algumas semanas, o amigo e editor André Fischer me convidou para escrever uma crônica para a revista mensal que ele edita, a Junior. Eu sempre fico meio prevenido diante destes convites porque acho que não vou dar conta, não por falta de tempo, mas de inspiração. Sempre acho que quem convida a gente para alguma coisa alimenta alguma expectativa, sei lá, espera que a gente entregue um produto bacana. E então eu travo, acho que não consigo produzir nada legal e que a pessoa que fez o convite vai dizer que gostou só por camaradagem.
Fui tomar um café com ele e ele me mostrou alguns números anteriores da revista. Pude ver, com muita alegria, que o espaço que ele estava me destinando fora ocupado, em meses passados, por amigos queridos como o dramaturgo Alcides Nogueira e o jornalista Carlos Hee. Quando ele me disse que eu poderia escrever sobre qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, então eu topei. Chegando em casa, li o que o Alcides e o Carlinhos haviam escrito em seus respectivos meses, entendi o espírito da seção e, na mesma tarde, escrevi a crônica que segue abaixo. O título, Olhos de Azeitona, foi dado pelo próprio André e eu achei bem legal. Espero que curtam.
“Poucas coisas o irritavam mais nas noites de sábado do que o cheiro de pizza que escapava com igual incômodo dos dois elevadores do seu prédio. Ele sempre acreditou que aquele aroma, em que sobressaíam de maneira indisfarçável rastros de cebolas e lingüiças, era a principal prova da existência de vidas monótonas ao seu redor. Vidas que, em sua compreensão contaminada de inquestionável soberba, haviam se atrofiado tanto ao longo dos anos que hoje podiam ser acomodadas nas mesmas caixas de papelão em cujo interior as pizzas trepidavam ao ritmo dos baques do elevador. Em seu íntimo, ele sabia que era uma forma preconceituosa de diagnosticar os seus vizinhos, mas ele nunca acreditou que a melhor tradução da felicidade fosse a imagem de um queijo derretido escapando dos lábios num sábado à noite.
Mas naquele sábado ele concordou que precisaria se render. Havia acordado às sete da noite, confuso e enjoado depois de um chill out em que os copos de vodca e uísque repousavam sobre bandejas nas quais as carreiras de cocaína tinham traçado irresistíveis pegadas. A cabeça pesava e o estômago doía. Devia ser fome. Àquela hora, sabia, seria impossível encontrar companhia para jantar. Lembrou-se, sem muito ânimo, do imã que havia grudado em sua geladeira com o telefone de uma pizzaria. Resistiu em telefonar porque, se o fizesse, acreditava que em poucos minutos iria se igualar aos vizinhos que tanto desprezava. Olhou em sua despensa: um vidro pela metade de shoyu, uma lata de ervilha e uma embalagem de Bis com a data vencida. Discou e pediu uma pizza média, a mais simples do cardápio. Margherita, disseram do outro lado da linha. E três latas de Coca Cola normal.
Cinco minutos antes do previsto, o interfone tocou. Um motoboy trazendo a pizza estava à sua espera na calçada. Desceu com o cheque já preenchido. Nestas horas, pensou, era sempre bom ganhar tempo. O rapaz conferiu o valor, agradeceu os dois reais a mais pela gorjeta e pediu para que ele anotasse o número do celular no verso do cheque. À falta de caneta, usou a do motoboy. “O senhor é novo aqui no prédio?”, perguntou o rapaz, então com a viseira do capacete levantada, enquanto ele anotava o telefone. “Nem novo e nem senhor”, respondeu, mal-humorado. “É que pizza o senhor nunca pediu”. Ao levantar a cabeça para devolver a caneta, deparou com dois olhos negros e curiosos, que o observavam entre as grades do portão. Negros como as azeitonas que, pouco mais tarde, ele encontraria decorando sua pizza. “É que”, balbuciou hipnotizado pelo olhar do motoboy, “eu não gosto tanto assim de pizza”. O rapaz o encarou por alguns segundos em silêncio, baixou a viseira do capacete e respondeu que daquela ele gostaria.
Comeu apenas metade da pizza. O que não o impediu de, na sexta-feira seguinte, fazer um novo pedido. E assim na terça, na quinta, e assim no outro sábado. Jogava fora as bordas da pizza, grossas e mal assadas. Às vezes, jogava fora o recheio também. O que o alimentava, a iguaria das suas noites, ainda que o excesso de romantismo e a infantilidade da situação o incomodassem profundamente, eram os olhos negros do motoboy. Os olhos de azeitona. As azeitonas que, ainda que murchas e pequenas, ele se recusava a jogar fora.
No fim de tarde do terceiro sábado, o interfone tocou. O motoboy havia chegado. “Mas eu não pedi nada”, disse ao porteiro. “O motoboy mandou dizer que é por isso mesmo que ele veio”. Ele desceu e, pela primeira vez, viu o motoboy sem capacete, seus cabelos que, fossem mais longos, seriam encaracolados. “Tem uma coisa que eu faço todo sábado à tarde”, disse o motoboy, antes mesmo que o portão se abrisse. “Eu faço sempre sozinho, mas fiquei com vontade de te levar desta vez”. Ele olhou para aqueles olhos negros, que à luz da tarde nem tão negros assim eram, e não sentiu medo. Sentou-se na garupa, vestiu o capacete cinza que o motoboy lhe trouxera, e ficou feliz por, depois de muito tempo, se permitir ser conduzido para algum lugar que ele desconhecia.
No sábado de ruas mais desertas, em menos de 15 minutos estavam no Ibirapuera. Caminharam em silêncio até o lago, sentaram-se na grama e, de dentro de uma bolsa de plástico, o motoboy retirou um mundo de fatias de pizza assadas e grosseiramente recortadas que jogava aos patos e cisnes com uma alegria infantil. “É só por isso que eu sou feliz de fazer o que eu faço”, disse, com os olhos fixos no lago. “Preferi que você visse. Se eu contasse, não ia ter a mesma graça”. Envergonhado, ele colocou a mão na bolsa do motoboy e prendeu entre os dedos uma quantidade tão grande de massa de pizza que chegou a espantar os gansos mais próximos. Olhou para o motoboy e riu de um jeito quase abobalhado. “Eu queria te pedir um favor”, disse o motoboy. “Se você for pedir pizza hoje...lá por volta da meia-noite, quando eu já estiver terminando o serviço, eu posso subir para comer junto?”.
Ao voltar para casa, no início daquela noite de sábado, alegrou-se diante do aroma de cebolas e lingüiças que vazava dos elevadores”.
domingo, fevereiro 21, 2010
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3 comentários:
é urbano é humano é solitário é sábado é pizza é muito SP...
é urbano é humano é solitário é sábado é pizza é muito SP...
Envolvente e sincero, tive a impressão de que o motoboy e o homem sofrem da mesma solidão, sorte dos gansos...parabéns ;)
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