Eu sempre alimentei a fantasia – ou deveria dizer ilusão? – de começar uma vida nova em algum lugar distante. Este sonho nunca teve nada a ver com trabalho ou estudo, pois quando viajamos para trabalhar ou estudar, normalmente damos continuidade a alguma coisa que já vínhamos fazendo por aqui. Seria um desdobramento, no máximo um aperfeiçoamento, de algo que sempre nos foi íntimo. Meu desejo era muito mais radical: eu pensava em partir para um local desconhecido onde pudesse ter uma outra vida. Começar de novo. Tentar ser outra pessoa, de preferência alguém que pouco lembrasse a pessoa que eu sou e sempre fui. A distância e o anonimato total me reinventariam, me deixariam talvez mais próximo da pessoa ideal, daquilo que a gente tenta ser e não consegue.
De todos os chavões contidos no parágrafo acima, nenhum parece ser tão improvável quanto o da pessoa ideal. Sei que, acima de tudo, são dois conceitos que não combinam: sendo pessoa, é impossível ser ideal; sendo ideal, é impossível ser humano. Mas nada me impede de sonhar, de sonhar com a possibilidade de um dia pairar um pouco acima dos erros e das deficiências que eu sempre critiquei, em mim e nos outros. Engraçado que eu nunca acreditei que as possíveis correções em minha rota pudessem ser feitas aqui mesmo, na casa em que vivo, no trabalho que exerço e na companhia das pessoas que conheço. Para ser outro, para ser um outro melhor do que eu, primeiramente a geografia teria de vir ao meu socorro. Uma nova paisagem, um novo clima, uma nova língua e o estranhamento decorrente de tudo isso: só assim eu poderia mudar.
Precisei de quase 40 anos de vida para escrever meu primeiro texto de ficção. Coincidentemente, este primeiro texto, que me abriu as portas para uma concorrida oficina de monólogos oferecida por alguns professores da USP, tratava exatamente disto. Era um conto de três páginas chamado O Fantasma de Nova York. Espero que ele esteja arquivado em algum lugar, gostaria de reler em algum momento. Era a história de um homem de 30 e poucos anos que trabalhava no World Trade Center. Na manhã do 11 de setembro de 2001, ele decidiu que chegaria um pouco mais tarde ao escritório. Ao contrário do que sempre fazia, desceu do metrô uma estação antes e parou para tomar um café. A pouco menos de uma quadra das Torres Gêmeas, viu o choque do primeiro avião. Paralisado na rua, assistiu ao segundo choque e à conseqüente queda dos edifícios. Em seus devaneios, acreditou que o ataque significava, antes de mais nada, um aviso cósmico de que ele deveria mudar de vida. Afinal, se não tivesse parado para o cafezinho, àquela hora estaria morto como todos os seus amigos do trabalho.
Em vez de ligar para a mulher e os pais e comunicar que estava vivo, o homem do conto pegou um táxi até a Estação Central de Nova York, onde tomou o primeiro ônibus para longe do estado. E então começou sua saga, de estado em estado, de profissão em profissão, trabalhando de marceneiro e garçom, escondendo sua identidade, se reinventando de alguma forma em cada trailer que alugava para provisoriamente morar. Fez trabalhos que jamais imaginara fazer, conheceu gente que passava a quilômetros do seu círculo social, tornou-se um estranho para si próprio. Até que, três anos depois, ele decidiu voltar. Procurou a mulher, que então já havia se conformado com sua condição de viúva – afinal seu corpo nunca fora localizado entre os escombros. Quando tentou explicar-lhe por que fez o que fez, ela lhe estendeu um envelope e partiu. Dentro do envelope estava seu atestado de óbito, fornecido pela prefeitura de Nova York no ano anterior. O conto termina com o homem olhando para o horizonte da cidade da qual um dia ele fugiu, com seu próprio atestado de óbito nas mãos, dizendo para si próprio que, para alguém que queria se reinventar a tal ponto, era bom ter em mãos o atestado de óbito em nome da pessoa que um dia ele fora.
Este conto, vejo hoje, só expandiu o desejo que um dia também foi meu. Eu acho que não iria tão longe quanto aquele homem foi. E, caso fosse, tentaria ao menos suavizar o sofrimento daqueles que gostam e se preocupam comigo. Mas, vez ou outra eu me vejo exatamente como o homem do conto, suspenso na rua diante dos enormes prédios que desmoronam e dizendo para mim mesmo que, enfim, é chegada a hora de começar de novo em outro lugar.
quinta-feira, fevereiro 11, 2010
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3 comentários:
Lembrei-me de Paris, Texas e Profissão Repórter. Belo post.
O problema dessa história de fugir pra se reinventar é acreditar que em algum momento se foi alguma coisa, que temos alguma identidade, mesmo que negativa, para abandonar. Acho que a impossiblidade de ser alguma coisa nos persegue onde quer que a gente vá. Mas em todo caso, se vc resolver se mudar, dá pra me alugar seu apartamento por um precinho camarada e sem fiador?
Bom Carnaval
Márlio, como você pôde notar, eu usei todos os verbos no passado. Resolvi abandonar esta ideia de fugir para começar de novo em outro lugar depois que abri a minha correspondência do IPTU e vi que o prefeito Kassab considerou meu apartamento isento de taxas. Vi que é bem mais barato e confortável ficar por aqui mesmo...Te vejo na avenida.
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