quarta-feira, novembro 11, 2009

Palavras cruzadas

Nunca tive a chance de perguntar aos amigos Alberto Guzik , Mário Viana e Marta Góes que, como eu, começaram a vida no jornalismo para algum tempo depois se dedicar à dramaturgia, se eles têm um olhar específico para as reportagens que produziram em suas carreiras, e um outro destinado às peças, contos e biografias que também saíram de suas mãos. Na verdade, o que eu gostaria de saber deles é se é possível a existência desses dois olhares e como cada um deles se comporta. Pode parecer uma pergunta trivial, mas acho que ela faz toda diferença do mundo. De sua resposta depende, acredito, o grau de satisfação (ou não) que sentimos diante de cada ponto final.

Como os três queridos amigos que citei acima, eu também fui treinado profissionalmente para dar conta do imediatismo. Por mais interessantes, informativos e saborosos que pudessem ser os nossos textos nos jornais e revistas em que trabalhamos, sabíamos sempre que eles estavam condenados a uma morte prematura. No caso das revistas, talvez tivessem eles uma sobrevida de poucas semanas, mas nos jornais diários nossos textos estariam irremediavelmente mortos na hora do almoço do dia seguinte. E isso porque construímos nossas carreiras antes da chegada avassaladora da Internet. Hoje, um repórter da mídia impressa sabe que, na maioria das vezes, seu texto não passa de uma bela criança natimorta: se ele conclui uma matéria às seis da tarde, ela já estará velha desde as cinco. Em pouco tempo, até os peixes exigirão ser embrulhados por notícias mais quentes e interessantes.

Me lembro de um episódio ocorrido quando eu era redator do Jornal da Tarde. A revista New Yorker havia publicado um artigo imenso sobre o maestro e arranjador Quincy Jones. O jornal adquiriu os direitos de publicação, traduziu o material e um editor pediu para que eu deixasse o texto no tamanho – o que vale dizer que 2/3 de todo aquele palavrório deveria ser cortado. Era um texto tão bem redigido e com as informações tão emaranhadas que, se eu cortasse uma linha aqui, ela iria fazer falta no parágrafo seguinte. Trabalhei dois dias na edição daquele texto. Quando entreguei o material pronto para o editor, estava feliz com o resultado: o que era realmente relevante no artigo sobre o maestro parecia estar ali. A matéria seria publicada no dia seguinte. Quando chego para trabalhar, às 11h da tal manhã seguinte, vejo as duas páginas com toda a história do Quincy Jones encharcadas e jogadas no bueiro. Havia chovido, parte do jornal desceu literalmente pelo ralo e justamente aquelas duas páginas estavam ali, para me alertar sobre a fragilidade do nosso trabalho e a brevidade das nossas aspirações. Aquelas duas páginas sobre o bueiro formam uma imagem que irá me acompanhar para sempre.

Faço todas estas divagações a propósito de um fato concreto: há 15 dias, a Imprensa Oficial do Estado publicou, em um livro chamado O Teatro de Sérgio Roveri, quatro de minhas peças: O Encontro das Águas, Abre as Asas Sobre Nós, Andaime e O Funil do Brasil. Depois de muito tempo, voltei a ler estes textos, agora impressos, e a imagem do jornal com o Quincy Jones voltou a me assombrar: até que ponto resistiremos? Ou melhor: qual será o destino, a validade, a função e o objetivo das coisas que fazemos? Vejam: é uma questão prática e funcional, sem nenhuma conotação pessimista ou mesmo derrotista. E, o mais importante: uma questão que não esconde nenhum desejo de reconhecimento e posteridade. Até porque, sempre que ouço alguém dizer que está produzindo uma obra para ficar, eu rio de tanta pretensão. Eu sempre acreditei que, nesta vida, a gente só fica pra titia.

Reli os quatro textos e tive a tranqüila sensação de que continuaria a assumir a paternidade de cada um deles – o que é raro. No entanto, é preciso admitir que alguma coisa mudou: os textos cumprem, com honestidade, a função de revelar uma história que um dia eu desejei contar. Hoje eu contaria as mesmíssimas histórias, mas talvez de forma diferente – e então eu percebo que o tempo só faz colaborar para que a gente se torne obcecado pela palavra exata, pelo sentido inconfundível, pelo frescor que os dias apagam. Eu sinto que algo poderia ser mudado, mas não sei precisar o quê – até me dar conta que não temos o destino às vezes cômodo das histórias, que as páginas dos livros abrigam e preservam. Em um único dia, levantamos uma pessoa e somos outra na hora de dormir – e nada de tão importante assim aconteceu. Apenas uma camada nossa morreu, como uma casca que a cebola despreza. Parece, então, haver uma ingenuidade naquilo que fizemos num passado recente – e os dias, assustadoramente, estão nos tornando um pouco mais cruéis e talvez um pouco mais cínicos. A gente descobre, ao visitar o nosso passado de palavras, que a ingenuidade agora é algo que nos incomoda, porque parece que ela não diz mais respeito a uma pretensa pureza de espírito. Ou a uma benvinda inocência. Detectar ingenuidade em algo que fizemos parece sinalizar que não fomos espertos o suficiente, só isso.

Um dia, ainda vou pedir para que os amigos acima me digam sinceramente o que eles sentem quando esbarram em sua própria obra pelas lentes do tempo. Talvez a questão seja apenas uma grande encanação da minha cabeça, mas eu continuo acreditando que este tema, de tão poderoso, pode separar o dia da noite naquilo que fazemos.

Uma curiosidade: sempre que estes assuntos impalpáveis cutucam a minha cabeça, eu me lembro de uma entrevista do genial diretor de cinema John Houston. Um dia, pediram para que ele falasse sobre Marilyn Monroe. Ele disse exatamente o seguinte: “Marilyn Monroe era exatamente igual a milhares de loiras que chegam todos os anos a Hollywood para tentar a carreira no cinema. Mas ela era diferente”. Em três linhas ele disse tudo que eu tentei dizer no imenso post acima. Talvez sem conseguir.

2 comentários:

Mário Viana disse...

Cacete, Serginho... Que sinuca... Eu penso muito nisso também, mas antes de responder melhor, peço tempo pra refletir. Quem sabe eu responda no meu blog e a gente cruza os posts... Só posso te adiantar que, como dramaturgo, eu me sinto sempre um repórter.
Seria preciso reler algumas reportagens feitos no passado, mas vc mesmo disse, no dia seguinte elas estavam cumprindo sua missão na feira... Eu mesmo já encontrei uma reportagem minha embrulhando um cacho de bananas. Foi estranho. Assim como é estranho ir ao dentista e folhear uma revista antiga, onde tem matéria nossa. Dá um revival estranho.
O teatro tem o dom de se renovar. Uma montagem nunca será igual à outra, nem um espetáculo é igual ao de ontem.
Mas há que se pensar, pensar...

Só no blog disse...

Que bom saber, queridão, que estas preocupações também passam pela sua cabeça, às vezes acho que são encanações minhas. Tomara que você também escreva a respeito. Vou adorar ler