sábado, agosto 15, 2009

Bate e volta

Durante todos estes anos como jornalista, tive a chance – ou seria melhor dizer a sorte? – de entrevistar pessoas muito interessantes. Algumas delas, inesquecíveis. E o interesse, neste caso, não tem a ver necessariamente com fama. Eu me recordo de entrevistados marcantes que eram pessoas comuns, gente anônima que, por necessidade da pauta, se prestava como personagens para as matérias. Um destes personagens foi um senhor que jogava vôlei na unidade do Sesc Pompeia. Era uma matéria sobre atividades físicas na terceira idade. Fui até a quadra, vi o finalzinho do jogo e escolhi aquele senhor ao acaso. Como Sartre dizia: a última palavra é sempre do acaso.
Resumidamente, a história do homem era a seguinte: ele estudava num seminário e estava prestes a ser ordenado padre quando viu um padre idoso e doente desesperado diante da proximidade da morte. O velho padre, ele me contou, se agarrava à cama de maneira quase histérica, gemendo que não queria morrer de jeito nenhum. Então ele, o entrevistado, perguntou ao enfermo: “Mas padre, pense que o senhor está indo ao encontro de Jesus. O senhor nos ensinou a esperar a vida inteira por este momento e agora, quando este momento chega para o senhor, o senhor fica assim, tão apavorado?” E o velho padre então lhe respondeu: “Você acha que em algum momento eu acreditei nestas coisas que eu ensinava a vocês? Você acha que eu acredito que vai ter um Deus me esperando? Não vai ter nada. Acaba tudo aqui”.
No dia seguinte, meu entrevistado fez as malas e abandonou não apenas o seminário, mas também o catolicismo. Ele me contou muito mais de sua vida, a profissão de farmacêutico que ele escolheria depois, uma viagem à Patagônia e uma tragédia familiar que o mergulhou numa tristeza durante anos. Escrevi com detalhes a vida deste homem naquela reportagem. Lá se vão mais de dez anos, mas não me esqueço de nenhum episódio que ele relatou
Nos últimos tempos, voltei a me lembrar também de uma entrevista que fiz com a atriz Julia Lemmertz. Era uma tarde fria de domingo e a assessoria da atriz marcou o nosso encontro no café do Centro Cultural do Banco do Brasil, onde ela estrearia, nos próximos dias, a peça Molly Sweeney – Rastro de Luz. Ela chegou no horário combinado e, antes de eu começar as perguntas, perguntou se eu me importaria se ela tomasse um chimarrão durante o nosso papo. E no mesmo instante começou a preparar aquela mistura de erva com água fervente que eu nunca consegui fazer em casa. Ofereceu-me o chimarrão de sua própria cuia – o que, vim a saber depois, é prova de amizade e confiança entre os gaúchos. Pergunta vem, pergunta vai e ela sempre respondendo a todas com muita convicção e simpatia. Até que, assim do nada, ela me perguntou por que as pessoas insistiam nos erros. Devo ter ficado calado diante da súbita mudança nos papéis: de entrevistada, ela havia se transformado em entrevistadora. Vendo o meu silêncio, ela expôs seu raciocínio. No seu íntimo, ela me disse, as pessoas sabem quando estão errando. Sabem que aquilo que elas estão fazendo não está correto e não vai terminar bem. Elas sabem que estão construindo sua própria infelicidade. E, no entanto, não são capazes de parar. Continuam insistindo no erro até quebrar a cara e o coração de forma irreparável. E o mais estranho nisso, ela prosseguiu, é que elas sabiam desde o início que este seria o fim. Podiam ter interrompido este curso, podiam ter mudado esta rota, mas nada fizeram para evitar a tragédia. Ao contrário, elas provocaram a tragédia. Por que nós somos assim, ela voltou a me perguntar.
Dali a pouco a entrevista terminou e eu voltei para casa pensando se ela estaria se referindo à peça. Fui à estreia e vi que não. A peça era linda e Julia Lemmertz estava comovente no papel da mulher cega que um dia, ao recuperar a visão, perde o controle que tinha quando seu mundo era totalmente escuro. Acho que até hoje não sei direito ao que ela se referia – talvez eu devesse ter perguntado, mas senti que não era o momento de perguntar nada naquela hora.
Hoje eu acho que as pessoas falam daquilo que elas entendem e também daquilo que não entendem e gostariam de entender. E é nos momentos em que falamos com perplexidade daquilo que não entendemos, que nos tornamos mais compreendidos. Vai ver que é isso.

3 comentários:

Beta disse...

O final desse seu post me lembrou alguns versos de uma música do Moreno+2 (hoje Kassin). Diz "Todo mundo diz que sabe e quando diz que não sabe é porque é charmoso não saber algo que as pessoas já sabem como é. Todo mundo é original, é especial, é o que todos queriam ser. Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer (...)".
Você já ouviu? Chama-se "Eu sou melhor que você".
Você vai gostar.
beijo.

Anônimo disse...

você sabe que há uma peça ou um conto embutidos nesse post e principalmente na reflexão a que a lúcida e intuitiva júlia te levou? beijão. saudades, cara. guza

Só no blog disse...

Vou pensar nisso, querido. Saudades também. Meu Deus, o que deu na gente de trabalhar tanto neste ano, Guza? Tomara que os resultados sejam bons, né? beijão