Tenho medo da passagem dos anos, desta irritante mania que os dias e as semanas têm de terminarem antes que a gente consiga fazer algo de produtivo. Este medo, às vezes, ganha contornos de pavor, quando acordo assustado com a minha própria idade, com a incapacidade de me lembrar do que fiz em determinadas épocas, dos lugares em que eu estive ou deveria ter estado e de ter cada vez mais a certeza de que esta contabilidade da vida, em que colocamos de um lado os anos vividos e do outro os feitos e as aspirações, nunca vai resultar em uma conta fechada. Tenho um amigo que, sempre que eu falo sobre estas inquietações, ele me recomenda calma, alegando que este poço sem fundo que é o nosso desejo um dia vai ser preenchido sim: preenchido com a última pá de terra sobre o nosso caixão. Enquanto houver vida, ele me diz, é bom que você se acostume com este buraco para sempre incompleto. E na ânsia para preencher o “impreenchível”, penso que a gente gostaria de ser mais jovem, ou ao menos ter mais tempo, sem necessariamente ser mais jovem. Ou seja: outra equação de difícil solução.
Nas últimas semanas, no entanto, tive a chance de ouvir as sábias palavras de duas mulheres excepcionais. A primeira foi Lygia Fagundes Telles, sobre quem já falei aqui há alguns dias. A outra foi Fernanda Montenegro, com quem conversei por quarenta minutos na noite de terça-feira. Ao falar sobre literatura, a primeira, e sobre teatro e cinema, a segunda, as duas discorreram basicamente sobre a vida, a vida de homens e mulheres, a vida dos jovens, a vida dos que já não estão mais vivos e, quando voltaram o assunto para si próprias, a vida de quem está na casa dos 80 anos ou ainda um pouco além.
Não sei se Lygia e Fernanda podem servir de exemplo do que significa chegar bem aos 80 anos. As duas tiveram seus talentos reconhecidos desde muito cedo, tornaram-se mestres em suas artes, colecionaram prêmios aqui e lá fora, vivem do seu trabalho e parecem nunca ter tido sua vocação questionada. É como se tivessem nascido para ser duas gatas alisadas pelas mãos carinhosas do destino. Mas este destino, com certeza, não as poupou dos dissabores e das tristezas reservados a cada um de nós: do jeito delas, é muito provável que sofreram também, que choraram suas perdas, que em algum momento tenham-se sentido derrotadas e inúteis e que, numa noite fria de São Paulo ou sob o sol de Ipanema tenham-se perguntado se afinal valia a pena continuar.
E então, durante a palestra que assisti com Lygia Fagundes Telles no Sesc Vila Mariana e a entrevista com Fernanda Montenegro num hotel no Alto de Pinheiros, vejo duas mulheres acima de tudo íntegras, fortes, sedentas por mais tempo, mais vida e mais trabalho, doidas por um pouco mais de serenidade e vigor físico, apaixonadas pelo novo e pelos jovens, seguras da honestidade de seus trabalhos, pacificadas enfim. Passei alguns dias pensando que devia haver outra coisa a ligar estas duas mulheres além de tudo isso que acabo de citar, um denominador que imprimisse no rosto das duas, além das rugas expostas com orgulho e coragem, uma certa quietude. E, dentro do meu raciocínio psicanalítico mais raso que um cálice de vinho do Porto, acredito que o que as unia era, principalmente, a ausência de mágoa. Os dois rostos, mapeados por tantas histórias e tantas vivências, pareciam não reservar lugar para as mágoas – de alguma maneira, é como se tudo ali tivesse sido resolvido. E, mais que isso, como se tudo tivesse sido compreendido e perdoado. Talvez até mais perdoado do que compreendido – mas esta equação sim estava resolvida no semblante das duas grandes damas.
Estes dois encontros me mostraram que envelhecer pode ser ótimo. Desde que, na impossibilidade da compreensão, a gente saiba ao menos lidar bem com o perdão.
sexta-feira, maio 22, 2009
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3 comentários:
Recentemente, num artigo sobre os 80 anos da Hebe, Gilberto Dimenstein detectou o que lhe pareceu ajudar a explicar a energia dessas mulheres: a curiosidade pela vida. Faz sentido. Pensando em Lygia e Fernanda: quando conversamos com elas, quando lemos ou as assistimos, sentimos que somos ouvidos, também. Que importamos. Elas se importam com o que acontece ao Outro, uma lição que muita gente que conhecemos deveria tentar praticar. Mais uma vez, lindo texto, Serginho!
Pode crer, meu querido. Você tem total razão. Brigadão pela visita.
Lindo texto. E parece que elas deixam que a vida lhes deem vida. Ou elas abrem fendas, e a vida assim as atravessa. Eu adoro ler as entrevistas delas; é sempre cativante, e sempre saio com uma sensação de qeu eu posso querer e criar mais. É como se elas nos dissessem: vem também!
Bjim,
Valéria
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