quinta-feira, janeiro 15, 2009

Pedalando, pedalando...

Acidentes de trânsito, mesmo os que produzem vítimas fatais, é aquele tipo de ocorrência que, de tão banalizada, já não nos choca mais. Se o assunto é acidente de trânsito, todos nós, famosos ou anônimos, estamos fadados a nos transformar em cifras. Prestamos um pouco de atenção neles somente após algum feriado prolongado, quando os jornais noticiam o número de mortos nas estradas do país – algo de causar inveja à truculência do exército israelense sobre a população de Gaza. Não temos mais nomes, não temos mais rostos, e toda nossa vida e nossa história passam a caber numa notinha de rodapé de algum jornal qualquer.

Esta semana, no entanto, a tragédia mostrou que consegue se aprimorar. A ciclista Márcia Regina de Andrade Prado, de 40 anos, foi atropelada e morta por um ônibus na Avenida Paulista. Chocante? Sim. E muito, ainda mais quando nos lembramos de que ela era uma ativista pelos direitos dos ciclistas. Porém, tão ou mais chocante que sua própria morte foi o descaso da Secretaria de Segurança, que levou quatro horas para recolher seu corpo, que permaneceu coberto por um plástico preto, a despertar a atenção e curiosidade de pedestres e motoristas. Não sei se por ironia ou um cuidado detalhado na qualidade de suas informações, os jornais informaram que o corpo da ciclista, exposto na avenida, provocou um congestionamento de quase dois quilômetros. “Morreu na contramão atrapalhando o trânsito”, já disse Chico Buarque há mais de 30 anos. Poucas vezes um detalhe me pareceu tão cruel no noticiário.

Não sei para onde são encaminhados os corpos das vítimas de acidentes de trânsito. Talvez para o Instituto Médico Legal, a algumas quadras da esquina em que a ciclista foi atropelada. Ainda que o resgate tivesse vindo a pé, não teria levado mais de meia hora para chegar, recolher o corpo e aplacar um pouco a dor e a indignação da família e dos amigos de Márcia. Há um ou dois anos, não me recordo, o corpo de um homem morto por traficantes e atirado ao mar, veio dar em uma praia do Rio de Janeiro. Para azar do coitado, era domingo, dia de sol e praia cheia – e ninguém, ainda mais um morto, tinha o direito de atrapalhar a rodada de caipirinhas e de futebol de areia. Solícitos, os cariocas encobriram o corpo do homem com um plástico também preto e voltaram para sua sessão de bronzeamento dominical. O corpo foi recolhido sete horas depois. No caso de Márcia, os paulistas mostraram que não é lenda: nosso serviço público é mesmo mais eficiente. Afinal, levamos “só” quatro horas para fazer o que os cariocas fizeram em sete ou oito.

Hoje à tarde, 24 horas após o acidente, a família de Márcia Regina mostrou que a dignidade é ainda muito mais poderosa que o descaso: eles resolveram doar o corpo da ciclista para uma faculdade de Medicina. Márcia, que passou os últimos anos de sua vida lutando pelo meio ambiente e pela proteção dos animais, vai continuar servindo à sociedade mesmo depois de morta. Ainda que esta sociedade não tenha feito jus à tanta elegância e comprometimento que ela demonstrou em vida. Eu não a conhecia, mas desejo, do fundo do coração e sem medo de ser piegas, que ela esteja agora pedalando entre as nuvens e rindo da nossa boçalidade.

5 comentários:

Fabrício Muriana disse...

Sem falar na boçalidade do motorista do ônibus que a atropelou. Das autoridades públicas que não se preocupam em conscientizar os motoristas sobre ciclistas. E, na média, dos próprios motoristas que consideram ciclistas como invasores, quando a lei diz que o dono do veículo maior tem que zelar pela vida do dono do menor.
Enfim, que sua vida tenha tido um sentido.

Só no blog disse...

Oi, Fabrício, muito obrigado pelo prestígio e pelos comentários. Grande abraço. Roveri

Iris disse...

Ah, pode ter certeza que ela está num lugar melhor =)

Que lugar pode ser pior que esse em que vivemos, onde somos tão anestesiados a ponto de a tragédia causar indiferença?

Abraço.

Anônimo disse...

Serginho! esse texto é lancinante. eu queria que muita gente lêsse essa sua reflexão. aliás, você deveria ser cronista da Folha, como eles ainda não se deram conta?
beijos, querido

Só no blog disse...

Cléo e Iris, minhas queridas. Muito obrigado pela visitinha por aqui. É que esta história é tão triste, né? Às vezes a gente fica muito tocado por algumas coisas desta cidade.
beijão pra vocês.