sexta-feira, novembro 28, 2008

Dá-lhe, Estradinha!

Há algum tempo um jovem ator me procurou em busca de um texto inédito para que ele pudesse estrear na direção. Eu já o conhecia por intermédio de amigos, embora nunca o tivesse visto em cena – até hoje ainda não vi. Logo após nosso primeiro contato, feito por e-mail, ele foi chamado a trabalhar em uma novela da Globo em um papel que, se me recordo bem, cresceu à medida que a trama avançou, a ponto de ele passar a ser reconhecido em filas, cinemas, essas coisas todas. Achei que nossa provável parceria, depois da entrada da televisão na história, tinha morrido ainda no berço. Eu me enganara. Assim que a novela terminou, ele voltou a morar em São Paulo e me procurou na semana seguinte.

Ele estava interessado em um texto inédito meu, para três personagens. No nosso primeiro encontro, ao vivo, ele já surgiu com uma série de propostas de direção – a utilização de projeções, sons externos, imagens gravadas, toda uma parafernália que talvez aproximasse um pouco o teatro do cinema. Eu achei a proposta curiosa, mas não batemos o martelo neste primeiro encontro. Até porque havia um grupo do Rio de Janeiro interessado no mesmo texto. E eu disse que queria ouvir as duas propostas antes de me decidir.

Algum tempo depois, fizemos um segundo encontro. E foi quando ele me falou do Estradinha. Estradinha é um gato macho, que a mulher dele encontrou abandonado à beira de uma estrada ainda filhote (não fiz a pergunta óbvia por acreditar que foi em função do local do encontro que o bicho recebeu este nome). A mulher dele recolheu o gato, o trouxe para casa e, no dia seguinte, seguiram os três para o veterinário: o filhote, o ator e sua mulher. A idéia do casal era deixar o gato para adoção. Depois de examiná-lo, a veterinária informou que ele estava com a espinha quebrada – uma lesão irreversível, talvez provocada por um atropelamento na estrada. Estradinha não recuperaria o movimento das patinhas traseiras, não controlaria o fluxo das fezes e, o que é pior, só seria capaz de urinar se alguém pressionasse sua barriga. “Ninguém vai adotar um gato nestas condições”, disse a veterinária. “Ou vocês ficam com ele ou ele já é um filhote fadado ao sacrifício”.

Eles levaram Estradinha para casa e, segundo o ator, o casal não se lembra de ter tomado uma atitude que lhes trouxe tanta felicidade na vida. Estradinha pula e corre usando só as patinhas da frente e, se não fosse por um requebro engraçado, passaria por um gato normal. Três vezes por dia eles massageiam a barriga do gatinho para que ele consiga urinar. E, para usar as próprias palavras do ator, Estradinha só fica “constrangido” quando faz coco na frente de estranhos. A exemplo de todos os outros gatos do mundo, ele se apressa em esconder as fezes. E utiliza para isso o que estiver à mão: uma camiseta, uma folha de jornal, um tapete, um pano de prato. Eles compraram um banheirinho de areia para Estradinha, mas como ele defeca involuntariamente, nunca dá tempo de chegar lá.

Desde a noite em que foi encontrado na estrada, Estradinha nunca mais passou um dia sequer longe do casal. Eles só viajam para lugares em que o gato pode ser levado, pois a tal massagem na barriga tem de ser feita a intervalos regulares, ou o gatinho sentirá dores horríveis em sua bexiga cheia.

Talvez algumas pessoas achem isso um absurdo, é bem provável. Tanto carinho e tanto trabalho com um simples gato. Mas, quando o ator acabou de me contar esta história, assim do nada, eu lhe disse: o texto é seu, pode montar. Eu nem quis ouvir a proposta dos cariocas. Se alguém cuida tão bem assim de um gatinho paralítico, com certeza vai cuidar do meu texto com muito carinho também. Valeu, Estradinha!

domingo, novembro 23, 2008

Um brinde ao silêncio

Não me lembro de outra época recente, como esta, em que eu tenha ido tão pouco ao cinema. Pela primeira vez em muitos anos, a Mostra de Cinema começou e terminou sem que eu tivesse dado muita importância – vi apenas cinco filmes, dos quais somente um valeu o ingresso. Os outros quatro eu não recomendaria nem aos inimigos. Talvez algumas pessoas até acreditem que cinco filmes representem uma boa média, mas para quem estava acostumado a ver algo em torno de 30, este ano foi realmente atípico. Então, no feriado da quinta-feira, decido parar mais cedo com o trabalho e me permitir alguns sustos com o filme Estranhos, que vi em uma sala do Shopping Frei Caneca. O filme foi incensado por parte da crítica e destruído por outra – sinto que houve exagero dos dois lados. Me pareceu um filme eficiente naquilo que se pretende – manter a platéia em um surpreendente estado de tensão, à espera do próximo calafrio – e que desaba apenas no final. Mas não é sobre o filme que queria falar aqui, e sim sobre o comportamento do público.

Havia poucas pessoas na sala sete, no piso superior. Sentei-me na penúltima fila, à frente de dois rapazes com seus infalíveis saquinhos de pipoca. Quando as luzes já estavam se apagando, entraram mais quatro caras. Dois sentaram-se na última fileira, atrás da minha poltrona, e os outros dois na fileira da frente. Vamos aos fatos, então: os dois rapazes que já estavam no cinema quando eu cheguei, conversaram do início ao fim do filme, perdidos em diálogos irritantes como: “olha, ela esqueceu o celular na mesa”, “nossa, o cara está saindo com o carro”, “meu Deus, estão batendo na porta”, “ai, eu vou fechar os olhos, depois você me conta”. Com suas vozes de pardais com sinusite, eles narravam o filme como se narra um jogo de futebol. Os outros dois, que também ocuparam a última fileira, deixaram o celular ligado e faziam algo como apagar ou enviar mensagens de texto, enquanto conversavam alegremente também. Até que, por não entenderem direito o que estavam fazendo ali, tiveram a decência de ir embora. E, por fim, dos dois que se sentaram à minha frente, um saiu da sala quatro vezes – não sei se por medo, para fazer xixi ou dar alguns telefonemas. Só sei que, a cada vez que voltava, informava ao companheiro como andava a vida fora do cinema.

Repito que Estranhos não passa de um filme mediano, mas me pergunto se eu conseguiria ter me concentrado mais ainda que estivesse diante de um Hitchcock inédito. Acredito que não. Eu realmente tenho uma curiosidade em saber o que determinadas pessoas vão fazer no cinema, já que não conseguem manter o celular desligado ou a boca fechada. Não seria mais simples, ou barato, se elas ficassem em casa, ou num barzinho ou andassem sem compromisso pelos corredores do shopping? O cinema, para quem não está interessado em ver o filme, não funciona como um ambiente que teoricamente cerceia outros tipos de manifestações, como telefonar ou falar alto? Então, por que entrar? Será que eles entram como uma forma pueril de transgredir alguma convenção social? Algo do tipo: vou deixar minha marca onde minha marca não é solicitada. Ou: vou me apoderar deste espaço público como me apodero da minha sala de estar, vou estender o meu domínio para além da região onde meu domínio realmente se instala. Ou, o que é ainda pior: vou deixar claro que a educação e a civilidade faliram e que os incomodados encontrem uma nova forma de submissão às exigências da arte. Porque o cinema agora é nosso, nós, os que estamos aqui para provar que as invasões bárbaras já não são mais apenas um título de filme, e sim o produto que temos a oferecer a vocês.

Na noite seguinte, sexta-feira, eu estava muito a fim de voltar ao cinema para ver A Duquesa. Então me lembrei de tudo que poderia estar à minha espera na sala, de todas as pipocas, os celulares e as conversas estúpidas durante o filme. Decidi, então, cruzar a rua de casa, entrar na locadora e alugar O Poderoso Chefão. Fiquei na frente da televisão até duas da manhã, me deliciando mais uma vez com aquele talento que parecia nem caber numa tela pequena. O telefone não tocou, não saí várias vezes para fazer xixi e, em um canto do sofá, o Pirulito e a Ritinha, os gatos que moram aqui em casa, dormiam tranqüilamente sem fazer qualquer ruído. Tive vontade de abrir um champanhe e fazer um brinde ao maravilhoso silêncio que, infelizmente, temos de ficar em casa para desfrutar. Tempos chatos, estes.

sexta-feira, novembro 14, 2008

Oinc-oinc-oinc

Hoje de manhã, quando me dirigia para uma reunião no Teatro dos Satyros, parei em um congestionamento na Avenida Doutor Arnaldo. Não haveria nenhuma novidade nisso se na minha frente estivesse um carro qualquer. Mas não. O obstáculo à frente era um caminhão com carroceria de madeira onde se lia: veículo usado para transporte de animais. Pelas fendas da carroceria pude ver que o caminhão transportava talvez uns 30 leitõezinhos que, me desculpem a vulgaridade da comparação, pareciam viajar tão felizes quanto crianças indo de excursão para o Playcenter. Um dos leitõezinhos se divertia (será que podemos empregar este verbo no caso de filhotes de porcos?) jogando feno para fora do caminhão e espreitando com seu focinho rosado o mar de carros à sua volta.

Sabendo em que época do ano estamos, ninguém precisa ser muito esperto para adivinhar qual era o destino dos porquinhos. Acredito que, enquanto escrevo este post, toda aquela alegria já tenha sido esquartejada, carimbada e embalada para decorar a nossa ceia de Natal. Talvez este post seja a coisa mais hipócrita que já escrevi por aqui, mas não me lembro, nos últimos tempos, de ter ficado tão doído diante de uma visão como a dos porquinhos brincalhões. E a hipocrisia se revela no fato de eu saber que, quando chegar o Natal ou outra ocasião ainda mais próxima, eu cairei com um apetite ancestral sobre um pedaço de leitão à pururuca.

Mas ali, enquanto o trânsito não fluía e eu era obrigado a encarar aquele macabro tour suíno pela Doutor Arnaldo, fiquei pensando na questão cultural e nos hábitos alimentares que permitem a nós, humanos, abrir nossas casas e nossos corações para cães e gatos, enquanto abrimos, para os filhotes de outras espécies, nossas bocas e os fornos de nossas cozinhas. Naqueles minutos, que pareceram uma eternidade, pensei em me tornar vegetariano – e sei que agora o meu grau de hipocrisia está atingindo níveis alarmantes. Talvez se eu fosse vegetariano eu pudesse aplacar a minha culpa dizendo que aqueles porquinhos não seriam sacrificados em meu nome. Mas nem este álibi eu tenho.

Esta história, acredito eu, não tem final feliz para ninguém. Os porquinhos já repousam no freezer e eu vou continuar me perguntando até quando meu paladar será saciado com carne e sangue de filhotinhos a quem nunca chamaremos de totó e bichano. E a quem não daremos colo e nem um pedacinho de nossa cama.

Para que a hipocrisia agora escorra pela tela do computador: meu almoço, três horas após me despedir dos porquinhos, foi filé à parmegiana. É tanta contradição, mas tanta contradição, que nem sei por que estou escrevendo isso.

quinta-feira, novembro 13, 2008

Saudosa maloca

Eu sinto que esta crise econômica está subvertendo os tradicionais conceitos sobre ricos e pobres neste país. Só isso mesmo para explicar as correspondências estranhas que eu ando recebendo nas últimas semanas. A maioria delas diz respeito a lançamentos imobiliários de altíssimo padrão em bairros como Alto de Pinheiros, Vila Nova Conceição e Morumbi. Assim que o porteiro me entrega as cartinhas, eu já me pergunto onde raios eles conseguiram meu nome completo e endereço para tentar me vender apartamentos na faixa de um milhão de reais, no mínimo. Se eu estivesse vivendo uma fase mais desocupada, iria até tirar proveito deste boom imobiliário, porque algumas corretoras oferecem uma taça de prosecco para quem for visitar as obras. Pensei comigo: se eu visitar uns quatro lançamentos por dia, já volto para casa calibrado e feliz. Daí é só jantar e pegar no sono.

Mas nada se compara ao que me chegou ontem pelo correio: um canudo preto, de mais ou menos 60 centímetros de comprimento, como se embalasse um diploma gigante, em cuja superfície constava apenas isso: Poéme Cidade Jardim, em letras brancas bem bonitinhas. Abri. Dentro dele, um belíssimo anúncio feito em papel vegetal tentava me vender um apartamento nababesco neste exclusivo edifício Poéme Cidade Jardim. O anúncio era tão bonito que li até o final. Transcrevo aqui algumas informações na esperança de poder ajudar a corretora que tem me tratado tão bem: é apenas um apartamento por andar, com 410 metros quadrados, duas imensas varandas nas laterais do edifício e mais quatro varandas na fachada. Se existe alguma coisa na parte de trás eu não sei, porque o anúncio não mostra. São apenas oito unidades, anunciadas com o seguinte slogan que deve ter sido feito pelo Oswaldo Montenegro: “A inspiração é para poucos, porque poucos sabem apreciá-la. Aqui, apenas oito famílias terão o privilégio deste poema. Deixe uma nova métrica dar o ritmo dos seus dias, percorra os caminhos da inspiração. O mais belo poema já está pronto para se revelar a você. Basta descobri-lo”.

Não é meigo? A única coisa que senti falta é que eles não oferecem prosecco para quem for visitar os apartamentos já prontos. Não entendo nada de mercado imobiliário, mas acredito que qualquer um que quiser comprar um apartamento deste vai morrer, no mínimo, com uns dois milhões de reais. E então eu pergunto de novo: quem foi que passou meu endereço para esses caras? Só pode ser trote. A maioria dos meus amigos também moram em edifícios que abrigam oito famílias, mas oito famílias por andar. E todas vivem se matando, o que não deixa de ser uma farra.

Mas pensei, pensei e decidi que não vou comprar um apartamento no Poème Cidade Jardim. Os corretores que me desculpem, mas a reunião de condomínio lá deve ser muito chata. Oito famílias é pouco demais para o pau quebrar. E em pouquíssimo tempo a gente já vai descobrir quem foi que andou espalhando pelo prédio que a mulher do 31 está saindo com o cara casado do 52.

segunda-feira, novembro 10, 2008

Entre a coroa e o buzão

Na semana passada eu entrevistei a atriz Isabel Teixeira para a matéria de estréia do espetáculo Rainhas, em cartaz no Sesc Paulista com ótima direção de Cibele Forjaz. Isabel, como Mary Stuart, a rainha católica da Escócia, divide o palco – ou talvez fosse melhor dizer a rinha – com Georgete Fadel, que dá vida a Elizabeth I, a rainha virgem e protestante que fez da sua Inglaterra a grande potência do século 16. Não se trata apenas do embate entre duas grandes monarcas separadas por ideologias políticas e crença religiosa. Acima de tudo, e para deleite do público momentaneamente convertido em súditos, o que está em questão é o duelo sem vencedora de duas estupendas atrizes, em uma encenação enérgica e visceral. Então hoje, segunda-feira, decido ligar para Isabel e cumprimentá-la pela sua performance magistral. “Por que você não me procurou no fim do espetáculo?”, ela me perguntou.

Respondi que depois de duas horas em cena, talvez elas não tivessem disposição para conversar com ninguém. Então ela me confessou que realmente sai acabada daquela arena e que precisa de muito tempo para conseguir relaxar. “Somente quando já estou voltando para casa, de ônibus, as coisas vão se assentando na minha cabeça”, ela acrescentou. E então eu pensei como o teatro é mesmo maravilhoso: depois de ser rainha por duas horas e disputar de maneira sangrenta a coroa da Inglaterra, França e Escócia, Mary Stuart volta para casa de ônibus. Em que outro lugar do mundo a monarquia é tão deliciosamente plebéia?

sexta-feira, novembro 07, 2008

Lágrimas com adoçante

Uma tarde desta semana eu fui sozinho tomar um café em uma padoca da Vila Madalena. Era uma dessas tardes em que a gente decide que não está com pressa e, por isso, não se irrita com a demora no atendimento. Duas mesas depois da minha estava sentado um cara barbudo, com camiseta de grupo de rock e sandálias de couro nos pés. Um tipo que lembrava muito o Marcelo Camelo, do Los Hermanos. A namorada dele chegou alguns minutos depois, já muito nervosa. Eu juro que não queria ouvir toda a briga que se seguiu, mas era impossível. Talvez a palavra correta, aqui, não seja briga, porque ele não abriu a boca um instante sequer. Tudo o que ouvi partiu dela – e eram queixas sobre abandono, a falta da presença dele em momentos importantes da vida dela e a injusta distribuição de tarefas entre o casal. Sobrou até para o telefone celular do rapaz que, segundo a garota, a esta altura já com lágrimas nos olhos, vivia desligado.

E então ela disse a frase mais triste que eu ouvi nos últimos tempos. E que foi esta:

“Eu sei que você não se interessa mais por mim. Mas pelo menos finja. Eu preciso tanto de você”.

Meu café chegou. E ele desceu raspando pela minha garganta fechada.

segunda-feira, novembro 03, 2008

Sonho de consumo

Juro que, quando eu crescer, eu gostaria de ser como a Luana Piovani, que migra dos tapas para os beijos em menos de uma semana. Antes que desapareçam os hematomas causados pela última relação, ela já refresca os lábios na saliva de um novo amor. Tudo tão simples, tudo tão moderno, tudo tão casual e fotogênico. Será que algum dia a gente aprende a ser assim? Será que, no fundo, algum dia a gente deseja ser assim? Eu desconfio que, ao menos para mim, nesta vida não dá mais tempo. Só me dá um pouco de pena da camareira dela, que não encontrará nenhum príncipe disposto a retirar a tipóia dos seus braços machucados. Mas na guerra é assim mesmo: uns sempre saem mais feridos do que os outros. E não há condecorações para todos os peitos. Que venha o próximo round.