sexta-feira, junho 26, 2009

Morreu a coca cola

Meu avô tinha um toca-discos que mais parecia uma escrivaninha. Era um móvel robusto, de madeira clara que, à falta de um piano, fazia as vezes de peça de decoração. Talvez por isso ocupasse um lugar de destaque na sala pequena, pesadamente apoiado sobre um tapete grosso. Foi ali que eu ouvi pela primeira vez um disquinho azul, de plástico, com a triste história do garoto Mogli. Eu devia ter entre seis e sete anos e aquele foi meu único disco por um longo período. Eu não devia gostar muito de música. Eu deixava o tal disquinho junto com uma coleção de LPs de Nelson Gonçalves, que eu nunca soube se pertencia ao meu avô ou a um tio solteiro.

Quando meu avô morreu, por algum motivo resolveram vender o toca-discos junto com a coleção do Nelson Gonçalves. Eu andava muito preocupado com as brincadeiras de rua, as bolinhas de gude e os balões para protestar contra o sumiço do toca-discos. E provavelmente já estava enjoado de ouvir a historinha do Mogli. Naquele dia, a música deve ter saído da minha vida sem grandes traumas.

Mas este jejum sonoro duraria pouco. Algum tempo depois, pedi a meu pai que me desse dinheiro para comprar um disco. De início ele recusou, indagando o que eu faria com um disco quando não tínhamos mais onde ouvi-lo. Primeiro a gente compra um disco, eu me lembro perfeitamente de ter dito. Depois o senhor compra um outro toca-discos para mim. Ele ignorou o pedido por vários dias, até perceber que eu não desistiria.

E então, num sábado de manhã, com o dinheiro exato para a compra de um disco no bolso, eu tomei um ônibus em direção ao centro da cidade de Jundiaí, onde havia apenas duas lojas de discos naquela época: a Casa Carlos Gomes, com um repertório um pouco mais refinado, e o Credi Curadinho, que vendia temas de novelas e álbuns de artistas nacionais bem mais populares. Entrei orgulhoso na Casa Carlos Gomes e, minutos depois, saí de lá com um disco embrulhado em um plástico branco, com o logotipo da loja.

Voltei de ônibus com a altivez de quem carregava uma joia debaixo do braço. Uma jóia e também uma missão espinhosa: convencer meu pai a cumprir a segunda parte do meu pedido e comprar um toca-discos novo – na época chamávamos de sonata. Levou um certo tempo, mas ele cedeu. Naquelas semanas em que eu não tinha como ouvir o disco, eu me contentava em olhar para a capa e ficar o dia todo pendurado no rádio, na esperança de ouvir ali a música que eu carregava nas mãos.

O disco, o primeiro disco que comprei na vida, menino ainda, era One Day in Your Life, de Michael Jackson, cuja letra eu sabia de cor sem conhecer uma palavra de inglês. Nas semanas que passei à espera do toca-discos, eu embalava aquele disco como as meninas embalavam suas bonecas. E quando a sonata finalmente chegou, também num sábado, Michael Jackson, acho que recém-saído do Jackson Five, fez a primeira trilha sonora da minha vida.

Ao ler incrédulo a notícia da morte de Michael Jackson, na tarde triste e chuvosa de quinta-feira, toda esta história voltou com um frescor inimaginável. Se eu fosse apegado a clichês, diria que me lembrei de tudo como se fosse ontem. E por muitos minutos não acreditei na notícia. Como é possível morrer quando se é Michael Jackson? Mais que um nome, mais que um artista – uma marca que nos acompanhou durante toda a vida. É como se alguém dissesse que morreu a Coca Cola.

E, depois da lembrança do primeiro disco, foram voltando as outras: as festinhas ao som de Off the Wall e Thriller, as intermináveis noites tentando imitar sua dança genial em uma discoteca perdida do interior, os meninos fazendo cara de vilão ao som de Bad, a espera pelo tão anunciado retorno do Jackson Five, a vinda dele ao Brasil... E então, de repente, Michael Jackson vai embora e deixa na gente aquela triste sensação de que a festa acabou. O DJ desliga o som, as luzes vão se acendendo, a cerveja terminou faz tempo e tudo que nossos olhos enxergam quando passeiam pelo salão é uma tristeza quase palpável e um ou outro bêbado esquecido pelos cantos.

E então a gente tem a certeza de que, naquele chão, grudento com os restos de bebida e bitucas de cigarro, nunca mais ninguém vai deslizar com tanta elegância.

quarta-feira, junho 24, 2009

A hora de parar

Alguns momentos em nossas vidas se assemelham àquela situação enfrentada por um motorista numa cidade estranha, tendo como referência apenas um mapa equilibrado no colo: por mais que esteja atrasado, ele sabe que, se quiser chegar ao destino, terá de parar o carro para saber onde realmente se encontra. Terá de olhar o mapa com vagar, conferir o trajeto percorrido, verificar se houve erros ou não e estipular que rumo tomar para chegar aonde pretende. Em movimento, ele sabe, é impossível fazer tudo isso sem correr riscos. A lógica e a prudência recomendam uma pausa para o ajuste das rotas.

A vida, penso eu, se mostra assim, às vezes. Temos de nos recolher em algum tipo de silêncio, em algum tipo de refúgio ainda que imaginário, para que o passo seguinte não seja aquele a nos precipitar para o abismo. Os abismos na vida são inevitáveis, cada um de nós sabe disso. Não apenas inevitáveis, eles são traiçoeiros e peritos em surgir no que julgávamos ser a planície dos nossos sonhos.

Com o tempo, a sucessão de quedas e uma dose de experiência que nunca se revelará suficiente, aprendemos a farejar a proximidade do abismo como os gatos percebem o pequeno inseto invisível aos nossos olhos. E então temos a chance de parar um pouco, de tentar conter a onda que se agiganta à nossa frente, ou ao nosso redor, e optar por uma segurança que talvez só a solidão e a quietude nos reservem. Ainda que uma falsa segurança, é provável.

Poderia ser tão bom, se parar não fosse muito mais difícil do que prosseguir, do que deixar-se arrastar pela ilusão de um vento suave, do que ceder a todos os apelos que nos chegam por cada um dos nossos sentidos. Parar um pouco não significa dizer não à vida, represar as marés, fazer calar todos os gritos altos e incômodos. Parar um pouco significa apenas isso mesmo: parar um pouco. Como o motorista que, em movimento, não consegue mais reconhecer o cenário daquela cidade estranha em que ele acabou de chegar.

No entanto, por mais que seja premente parar, ainda resta uma questão em aberto: o que fazer diante de todo este silêncio, de todo este dolorido e prolongado silêncio, que a pausa nos traz?

domingo, junho 21, 2009

A luz de Jesus

Lendo as notícias sobre os desfiles da São Paulo Fashion Week, vejo que o modelo Jesus Luz já se tornou mais inacessível que Gisele Bundchen. Fiquei com um pouco de pena dele, de verdade. Dele e de todas as pessoas que não se dão conta das armadilhas ocultas atrás da fama repentina, da notoriedade sem alicerce e sem trabalho. Pena das pessoas que acreditam que é possível se deitar como larva e acordar borboleta na manhã seguinte – sem entender que a noite da metamorfose é longa e suada.

A notícia me fez divagar sobre a segurança de ser e os riscos de estar. Gisele Bundchen é Gisele Bundchen nesta e em inúmeras outras temporadas vindouras porque rodou quilômetros de passarela para isso. Jesus Luz está Jesus Luz e não cabe a ele decidir por quanto tempo deve durar seu reinado de barro. Jesus Luz está Jesus Luz porque um dia Madonna decidiu desviar para ele algumas dezenas dos milhões de refletores que sempre estiveram voltados para ela. E então, por obra e graça de Madonna, Jesus encontrou um pouco da luz que até então só exibia no sobrenome. Mas é dela a mão que comanda o interruptor.

Um dia - e se levarmos em consideração o humor das grandes estrelas, este dia pode estar próximo -, Madonna irá chamá-lo para comunicar o seguinte: “Você já brincou demais de Jesus, mas o Deus aqui sou eu. A partir de hoje, você não se senta mais à minha direita e nem poderá mais caminhar à minha sombra”. Neste dia Jesus irá perceber o quanto doi ser um anjo caído e sem grife.

Se eu fosse Jesus Luz, eu aproveitaria meus segundos de fama para multiplicar não apenas pães e peixes, mas amigos e simpatias. Iria procurar me cercar de afetos, de algumas amizades sinceras, me tornaria acessível e simpático ainda que fosse por interesse, pois a estação de Madonna passa, mas Jesus deve se cuidar para estar sempre na moda. Se eu fosse Jesus, depois de fazer xixi no meu banheiro químico, eu abriria as portas do meu camarim e, com um imenso sorriso no rosto e as mãos estendidas, diria quase em tom de prece: vinde a mim os jornalistas, os fashionistas, os estilistas e os empresários, pois, ao menos nesta semana, é de vocês o reino dos céus! E tentaria distribuir minha graça entre os humildes que se acomodam da terceira fila em diante nos desfiles. Mas, acima de tudo, se eu fosse Jesus, eu tentaria aprender com Gisele Bundchen, uma das mais belas criações do Deus Pai, este sim todo poderoso. Todo o resto é pecado da carne.

domingo, junho 14, 2009

Escova de dentes

Conheci uma jovem médica no feriado de Corpus Christi. Loira, bonita, sorriso fácil e dona de um humor difícil de ser decifrado à primeira vista, ela me foi apresentada por um amigo, também médico, na comemoração do seu aniversário em um bar da Vila Madalena. Ao ser informado de que ela fazia residência médica, automaticamente perguntei em qual especialidade. “Anatomia patológica”, ela me respondeu. “Lâminas, eu só quero lâminas na minha frente”, completou antes de dar mais um gole em seu copo de cerveja. Soube que medicina foi a terceira carreira universitária a que ela deu início – e a única que concluiu. Antes, havia estudado línguas e cinema.

Não conversei tanto assim com ela, até porque fiquei pouco no aniversário. Mas tive a chance de ouvir uma frase, uma frase longa, que agora está martelando na minha cabeça. Sem nenhum resquício de mágoa ou morbidez, ela me disse o seguinte: “Se soubéssemos como algumas coisas iriam terminar, nós não as teríamos começado”, disse antes de soltar um longo sorriso. “Se soubéssemos como algumas coisas iriam terminar, talvez não fizéssemos nada. Nem da higiene pessoal eu cuidaria, nem os dentes escovaria. Apenas ficaria quieta”.


Não é algo que se diz impunemente, pensei. E nem a qualquer um. Ela não se dirigia especificamente a mim. Jogou esta frase na mesa, em um momento oportuno, admito, mas não sei se alguém carregou a frase para casa como eu fiz. E agora não paro de pensar quais coisas eu não teria começado se eu soubesse, de antemão, como elas terminariam. Claro que neste pensamento cabem respostas radicais: a gente poderia se matar ainda no berçário alegando já saber que nosso fim é o túmulo. Mas eu prefiro uma interpretação mais sutil e mais carregada de possibilidades. Talvez o importante não seja saber como as coisas vão terminar, mas o que faremos com elas, ou o que elas farão com a gente, neste longo intervalo entre o início e o fim. Algo me diz que não são as extremidades que importam tanto neste caso, e sim o recheio. Como eu pretendo continuar escovando meus dentes, talvez seja melhor não saber como será o fim de algumas coisas nas quais me apego – ou não.


A frase me atormentou porque, de certo modo, me obrigou a uma revisão inesperada da minha vida. Algumas coisas muito boas que eu tive terminaram em dor: a dor da perda, da separação, da ausência, da incompatibilidade, do abandono, da saudade. A dor da solidão. A dor que é inerente às coisas que terminam e que foram um dia boas. E terminam porque tudo nesta vida tem de terminar – tenhamos ou não culpa ou responsabilidade pelo desfecho. Então eu me pergunto, caso fosse me dada a chance, se eu deixaria de ter vivido o que vivi em determinado momento para me safar de uma dor futura? Penso que a resposta é não. Eu não teria aberto mão dos momentos felizes que mais tarde, por um desvio qualquer que minha vida tomou, me deixaram com os olhos sem brilho. Me lembrei de um amigo que costumava dizer que não acreditava nos momentos felizes prometidos pelas drogas. “A gente tem de fazer por merecer a felicidade”, ele me dizia. “A felicidade, além de não nos chegar sem luta, custa muito mais caro do que um papelote de cocaína”, ele me ensinou.

Penso que as coisas boas são boas em sua essência, e não deixam de ser boas porque em algum momento não podemos mais contar com elas. Quem sabe este seja o princípio da saudade, não sei. Prefiro seguir sem saber o que me aguarda e mesmo hoje, especificamente hoje, quando estou sendo mais movido pela saudade que pelo prazer, quero continuar escovando meus dentes direitinho. Uma hora dessas, mais cedo do que a gente imagina, a gente volta a sorrir. A sorrir do inesperado, do imprevisto e do acaso. A sorrir justamente porque a gente não sabe como as coisas vão terminar.

segunda-feira, junho 08, 2009

A crise do macho

Tenho ouvido falar com muita frequência em uma tal crise do macho. Nas últimas semanas, li com interesse várias matérias publicadas sobre este assunto. Soube até, pelos jornais, que esta crise serviu de tema para um concorrido debate promovido por intelectuais de respeito. Talvez eu esteja com a sensibilidade um pouco atrofiada, mas confesso que, mesmo depois de tanta leitura, não consegui identificar crise alguma que não fosse a financeira. Em primeiro lugar, acho que o termo macho já soa defasado e até um pouco grosseiro. Quando inverto os padrões, percebo que nem meus amigos mais safados se referem à mulher como fêmea. Sendo assim, macho também não pega muito bem. Macho em crise, então, é algo que eu realmente não tenho visto.
Tenho muitos amigos com as mais variadas orientações sexuais: alguns são gays, outros héteros, outros se assumem bissexuais, há os casados, os solteiros, os que dão muita importância ao sexo, os que sublimam um pouco este tema, os que moram juntos e gostam, os que moram juntos e não gostam tanto, os que não querem morar junto de jeito nenhum – enfim, uma amostragem que faria a alegria de qualquer instituto de pesquisa. Pois bem, quando converso com eles, esta tal crise do macho nunca entrou no cardápio. Será que eles não sabem que a gente deveria estar em crise? E olha que a maioria deles é bem antenadinha, viu. Se a crise do macho estivesse na moda, garanto que pelo menos a metade deles já estaria surtando só para não perder este hype.

Leio nas matérias que o macho quer carinho. Mas só os machos? Que o macho quer ter os seus sonhos e desejos respeitados. Sim, eles e a torcida do Corinthians antes e depois da contratação do Ronaldo Fenômeno. Que o macho quer chegar em casa e encontrar alguém que lhe dê atenção. Que o macho sente-se frustrado por não conseguir atender suas demandas financeiras e daqueles que o cercam ou dele dependem. Que o macho isso, que o macho aquilo, que o macho não consegue ser o super homem que ele foi educado para ser.

Em primeiro lugar, é bom que se tenha em mente que o super homem da nossa geração, o belo e talentoso Christopher Reeve, caiu do cavalo e morreu. Nossa geração viu o nosso super homem definhar em uma cadeira de rodas. Se existe morte mais representativa de que é muito perigoso ser o super homem nos dias de hoje eu desconheço. Como também desconheço qualquer amigo, em qualquer fase da vida, que tenha me dito, com todas as letras, que foi criado para ser um super homem e fracassou. Eu e meus amigos podemos ser divididos em dois grandes grupos: os que foram criados para ser médicos, engenheiros, dentistas e advogados – e conseguiram; e os que foram criados para ser médicos, dentistas, engenheiros e advogados e não conseguiram. Não conheço ninguém que tenha sido criado para ser super homem. No máximo, astronauta. Ou seja, nenhum de nós, nos últimos 50 anos, acredito eu, fomos criados para voar sozinhos.

Estamos em crise, sim. Mas não esta crise do macho, que me parece tão preconceituosa e limitadora. Estamos em crise porque somos gente, e não por que percebemos, a contragosto, que nossas mulheres se viram obrigadas a trabalhar fora para ajudar no sustento da casa – coisa que nós, homens, não conseguimos fazer mais sozinhos. Quando meu irmão nasceu, e ele é mais velho que eu, minha mãe já trabalhava fora. E estamos falando da década de 60, antes do feminismo, de Sartre, de Simone de Beauvoir e de Woodstock. E não me lembro de ver meu pai entristecido pela casa ao ver sua querida esposa partir para o trabalho. Que macho é este que entraria em crise ao ver sua companheira levando adiante uma carreira? Que macho é este, só recentemente descoberto, que precisa de carinho e atenção? Eu acho que até mesmo o homem primitivo, quando arrastava sua parceira pelos cabelos para algum canto escuro das cavernas, devia-lhe dizer: pô, benzinho, acabei de enfrentar um mamute. Será que eu não mereço um beijinho, hein, hein???

Nossa carência é ancestral, nossa incapacidade de atender a todas as expectativas é atávica, nosso desejo não tem fim, em nossa ansiedade nem Lexotan dá jeito, nosso medo de morrer sem deixar uma marca de que um dia passamos por aqui é absoluto, nossa insegurança diante de qualquer decisão é constante, nossa busca por um amor que nos complete constitui um trabalho para uma vida inteira, e acima de tudo, nossa dúvida de que jamais chegaremos lá nunca vai nos abandonar. Que bom se tudo isso fosse somente a crise do macho. Eu iria para o Marrocos, cortaria o pingolim e voltaria como uma mulher feliz e realizada. Quem quer apostar que, ainda que a gente corte o pingolim, o buraco ainda vai continuar sendo mais embaixo?