sábado, dezembro 22, 2007

Uma historinha do Carandiru

Ninguém relatou as histórias do Carandiru com tanta autoridade e competência como o médico Dráuzio Varella. Mas hoje, revirando aqui as minhas memórias, me lembrei de um fato ocorrido no presídio e testemunhado por uma velha amiga, experiente repórter policial que escreveu belíssimas matérias para o Jornal da Tarde - se é que se pode chamar de belíssima uma reportagem policial. Mas é que a repórter em questão, Marinês Campos, era tão elegante e observadora que em suas mãos mesmo a mais chocante das chacinas ganhava um quê de delicadeza para afugentar um pouco do horror.

Pois estava Marinês Campos a acompanhar um delegado que, certa tarde, reuniu dezenas de presos para falar sobre a importância da doação de sangue e órgãos. O delegado, antes de entrar no mérito de que as doações poderiam representar uma significativa diminuição nas sentenças, procurava alertar os presos sobre a nobreza e a solidariedade que acompanhavam a decisão de doar algum órgão. O tal delegado, já ao final de sua explanação, decidiu usar como exemplo a doação de rins. Disse que se algum dos presentes se mostrasse disposto a doar um rim, por exemplo, tal gesto poderia salvar uma vida e ainda coroar de humanidade o gesto do doador. Então, um preso que estava lá no fundo da sala, quieto até aquele momento, levantou a mão e indagou ao delegado:

- Doutor, isso que o senhor está dizendo é muito interessante. Mas eu só não entendi uma coisa: esse rim que a gente vai doar tem que ser o nosso?

Surpreso, o delegado disse que não havia entendido a pergunta. O preso, ainda de pé, tornou um pouco mais claro o que já havia provocado uma onda de riso entre seus companheiros. "É que se o senhor me der uma ou duas horas, eu volto aqui com um rim pro senhor. Isso vai diminuir a minha pena?"

A palestra foi encerrada às pressas e Marinês Campos voltou para a redação com outra bela história que nos fazia rir sem saber direito o porquê.

terça-feira, dezembro 18, 2007

Urubus da sociedade

Sempre fiz um esforço descomunal para tentar entender como os advogados lidam com seus dilemas éticos e suas crises de consciência. Sim, porque acredito que eles devam ter várias ao longo de sua vida profissional. Que todo mundo tem direito à defesa, de Hitler a Idi Amim, de Paulo Maluf a George Bush, é um fato aceito por qualquer sociedade civilizada. Mas me pergunto onde um advogado consegue buscar convicção para defender alguém que é reconhecidamente culpado? Acredito que não seja só uma questão de honorários, embora a conta corrente pareça ser o ponto mais flexível da coluna vertebral deles. Quando o assunto são grandes corporações, grandes homens e seus grandes pecados envolvidos, eu até compreendo o desempenho dos advogados. Nestas questões em que há milhões de dólares envolvidos, parece haver pouco espaço mesmo para os dilemas pessoais. É sempre um jogo de tubarões e, por maior que seja a mordida do adversário, a história comprova que tudo costuma acabar bem para os grandes. Eles podem até sangrar um pouco, mas não conhecem as hemorragias que vitimam os pobres.

Mas não é deles, dos grandes, que eu quero falar, não. Leio na Folha de S. Paulo desta terça-feira que um garoto de 15 anos morreu vítima de torturas e choques elétricos na cidade de Bauru. Suspeito de ter roubado uma motocicleta, o jovem CArlos Rodrigues Júnior foi preso por seis policiais militares. Algum tempo depois, já estava morto, com escoriações pelo corpo e queimaduras provocadas por choques elétricos. O fio desencapado, provavelmente utilizado para torturar o garoto, foi encontrado em poder de um dos policiais envolvidos na operação. Um laudo do Instituto Médico Legal da cidade comprova que o coração do jovem não resistiu a uma descarga elétrica e parou.

E então surgem os advogados dos policiais dizendo que seus clientes são inocentes. Eles, os advogados, alegam que o garoto, jovem e de saúde perfeita, teve um mal súbito ao ser preso e morreu. Simples assim: um garoto de 15 anos é algemado e morre. E, inexplicavelmente, seu corpo apresenta sinais de tortura e queimadura. Nossa tendência primeira é deixar um pouco a civilização de lado e jogar os seis policiais na cadeia, para que literalmente apodreçam ali. Mas não somos bárbaros: eles também têm direito à defesa. E então eu me pergunto como fica a cabeça deste advogado chamado a fazer o serviço imundo. Parece não haver a mais remota dúvida de que o garoto morreu nas mãos dos soldados. Por onde, então, começar a tese de defesa? Onde buscar concentração, paz de espírito, consciência tranquila e estômago para ir à imprensa e aos juízes e dizer que os soldados seus clientes são inocentes? De onde forjar a cara-de-pau para ir a público dizer que o menino morreu mesmo ao ser algemado? É tão grotesco que chega a dar ânsia. Você tem um garoto jovem e saudável que morre em algumas horas, você tem um corpo cheio de hematomas e queimaduras, você tem o fio desencapado usado para dar choques. E, de posse de tudo isso, um advogado aceita dizer que o garoto morreu de mal súbito e que seus clientes são inocentes. Os advogados que me desculpem, mas não consigo enxergar, nestas horas, profissão mais degradante.

Que ideal pode haver em defender culpados? Que nobreza pode haver em você lutar pela liberdade de alguém que deveria estar na cadeia? Que satisfação pode existir em mentir intencionalmente? Suponhamos que este advogado consiga fazer com que prevaleça sua tese absurda de que o garoto morreu de um mal-estar. Não é uma hipótese a ser descartada, ainda mais neste país de vale-tudo. E neste dia, então, ao sair vitorioso do tribunal, o que o nobre advogado faria? Iria levar a mulher para jantar fora e depois dançar? Iria anotar em seu currículo mais uma vitória profissional? iria colocar sua cabeça cheia de artimanhas num travesseiro de espuma, dar um longo e sonoro suspiro de dever cumprido? Realmente não consigo entender o ofício deles. Ao encarar a mãe deste menino, por exemplo, o advogado seria capaz de sustentar o olhar e dizer que seu rebento de 15 anos morreu porque era alérgico ao material das algemas? São tantas perguntas que eu gostaria que um advogado me esclarecesse tudo isso algum dia. Quem sabe assim eu teria um pouco menos de nojo do que eles são obrigados a fazer.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

A temporada termina. Mas a emoção permanece.


O crítico de teatro do Caderno 2 e agora também responsável pelo Núcleo de Dramaturgia da Tevê Cultura, Jefferson Del Rios, esteve domingo no teatro Renaissance, para ver a última apresentação da peça Andaime, texto de minha autoria com direção do Elias Andreato. Ter um crítico na platéia, ainda que ele não tenha construído sua reputação em cima de polêmicas infundadas e falsas bravatas, como é o caso do Jefferson, nunca chega a ser confortável para o autor. E imagino que também não o seja para os atores, diretores, técnicos, bilheteiros, ninguém. Afinal, o crítico, por mais que seja um entusiasta do exercício teatral, representa, depois do fracasso de bilheteria, o maior medo de quem faz teatro.

Pois o Jefferson foi e sentou-se ao meu lado. Na minha frente, um amigo querido, autor, tradutor e diretor de reconhecido talento, o Aimar Labaki, alguém que também exerceu brilhantemente a crítica por um bom tempo e talvez entenda com propriedade o que estou dizendo agora. Bom, Jefferson do lado, Aimar na frente, o estupendo Paschoal da Conceição na segunda fila e, não bastasse tudo isso, a emoção do último dia. Confesso que pensei em não ver o espetáculo. Fiquei, e com justo motivo, com medo dos três. Talvez não fosse medo, quem sabe aquele desejo, resquício da infância, de tentar agradar aqueles a quem respeitamos. Mas vi a peça, ri novamente com o talento invejável dos atores Claudinho Fontana e Cássio Scapin e, ao final, ouvi palavras de carinho e extrema generosidade vindas tanto do Paschoal, quanto do Aimar e do Jefferson - uma espécie de presente de Natal antecipado.

E hoje, segunda-feira à tarde, recebo um e-mail do Jefferson Del Rios que tomo a liberdade de reproduzir abaixo. Queria guardá-lo na minha pastinha de itens importantes, mas como ele foi escrito para ser postado neste espaço, como atesta o pedido que o Jefferson faz à jornalista Fernandinha Teixeira, resolvi acatar. Até porque o Jefferson faz comentários sobre as pessoas tão queridas que dividiram comigo todo o prazer que esta peça me deu.

Meu muito obrigado ao Jefferson, ao Aimar e ao Paschoal, que transformaram em alegria e emoção o medo e o susto de ter na platéia, num mesmo dia, este trio de pesos pesados.

Fernanda.
Escrevi o texto abaixo no blog do Sérgio Roveri, mas não sei se remeti corretamente. Peço-lhe, então, a gentileza de repassar a todos.
beijo natalino
Jefferson



Sérgio:
Voce me comoveu com sua peça Andaime, tão diferente da também muito boa O Encontro das Águas. Conseguiu inovar o humor trazendo para ele o traço do real da metrópole, saindo da alcova óbvia dos adultérios para a selva das cidades, para o cotidiano das vidas ásperas. Seu teatro tem ritmo para o humor e nele cabe um tom reflexivo hoje escasso na dramaturgia ("pobre abaixa a cabeça mesmo quando está em cima...")O elenco é um fino dueto de talentos complementares. Um dos atores recentemente disse ao "Estado" - numa bravata impensada - "quem se importa com a critica?".Não sei quem se importa. Aliás,o ùnico que teve peito de não se importar - na prática - foi Sartre, que recusou o Nobel, o maior prêmio do Ocidente e que inclui uma fortuna em dinheiro. Sartre, apesar de famoso não era rico.Mas eu, o desimportante critico, eu me importei com o trabalho deste ator que não gosta de nós. Parabéns, cara. Você é bom e tem um colega ao seu nível. Enfim, Cássio Scapin, Cláudio Fontana, Elias Andreato (direçao),Gabriel Vilella (cenário), e você - Sérgio Roveri (autor), vocês me fazem inventar frase original: terminam o ano comn "chave de ouro".
Jefferson Del Rios

domingo, dezembro 16, 2007

Eu só quero chocolate


Desde que eu soube que abriram em São Paulo uma doçaria (eu ainda prefiro falar doceira, mas os dicionários não permitem) chamada O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo que eu não consegui mais pensar em outra coisa. Já é difícil imaginar um bolo de chocolate que não seja bom, e então aparece um que é apontado como o melhor do mundo. Este nome chega a ser uma covardia - ele extrapola o nosso paladar para agir até nas nossas melhores lembranças. Seria melhor que aquele bolo de chocolate que as mães costumam fazer nos aniversários quando a gente ainda é criança? Melhor que aqueles bolos de chocolate vendidos em pedaços grandes pelas ruas de Paraty, em carrinhos de vidro que ocupam praticamente todas as esquinas da cidade? Melhor que os bolos de chocolate cobertos com brigadeiro que às vezes alguém cisma de levar em algum jantar?

Passei dias imaginando o bolo. De que tamanho seria? Qual sua consistência? Derreteria na boca ou seria crocante? A fatia seria firme e geométrica ou ela chegaria à mesa molhada e disforme? O sujeito que inventou este nome representa um atentado à nossa imaginação. Ele elevou à superpotência algo que já é um ícone do bem-estar. Bolos de chocolate são o avô do Prozac - dizem que eles operam milagres nas mulheres com TPM, nos solitários das noites de domingo, nos deprimidos leves, em quem acaba de levar um pé na bunda, em quem acaba de dar um pé na bunda, em quem amanheceu com vontade de chorar, em quem tem um nó na garganta que não deixa passar nada, a não ser o próprio bolo de chocolate, e em quem, livre de tudo isso, é apenas guloso e está em paz com a vida e a cintura.

No sábado passado, finalmente, encontrei quatro amigos tão seduzidos como eu pela propaganda do tal bolo a ponto de decidirmos enfrentar o trânsito da Oscar Freire, às vésperas do Natal, apenas para chegar à tal doçaria, acanhada e com mesinhas na calçada. Esperamos pelo bolo feito crianças que esperam por um feriado prolongado e com sol. E então ele veio, em fatias durinhas e cortadas no formato de um triângulo. Cada um muniu-se de um garfo e, silenciosa e rapidamente, abriu os trabalhos de um ritual tão aguardado. Depois do segundo pedaço, vimos que havia pouco a comemorar.

Se o bolo era realmente o melhor do mundo, eu não sei. Só sei que ele não teve culpa de não atender a nenhuma das minhas expectativas. Ele não me transportou a nenhum lugar para onde eu já não tivesse ido, não me trouxe nenhuma memória feliz, nenhuma epifania, nadinha. Era só um inocente bolo de chocolate em cima do qual eu tinha jogado muito mais expectativas do que uma confeitaria inteira seria capaz de suportar. Terminamos de comer o bolo em silêncio e cada um foi para o seu lado. Um foi andar no Ibirapuera, dois foram ao show do Arnaldo Antunes e eu fui ver uma peça no Aliança Francesa. Não sei quanto a eles, mas decidi nunca mais acreditar em nada que me seja vendido como a melhor coisa do mundo. Nestes dias, quando a gente já perdeu a fé no papai noel e nas suas simpáticas reninhas, a propaganda não deveria brincar com os nossos sentimentos desta maneira! Todo mundo anda doido para acreditar em alguma coisa que seja a melhor do mundo. Coitado do bolo, ele até que tentou. Mas é sonho demais para caber num pratinho de porcelana.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

Conta outra que esta eu já conheço

Sempre ouvi, desde menino, que a profissão de ator apresentava uma grande vantagem em relação a todas as outras: a ausência de rotina. Em um mês nós somos reis, eu ouvia os atores dizendo. No mês seguinte seremos ladrões, depois médicos, depois vilões e assim iremos, ao longo da nossa carreira, experimentando tudo de novo e ousado que a experiência humana pode oferecer. E eu, na minha vidinha pacata em Jundiaí, em que um dia parecia ser a xerox colorida do dia anterior, me contorcia de inveja de tantas aventuras permitidas e bem-pagas a que só os atores tinham direito. Eu me lembro de uma entrevista da Tônia Carrero, muitos anos atrás, em que ela dizia que o cabide representava a melhor definição de sua vida: ela era a roupa que estava pendurada ali naquele momento.

De uns tempos para cá, virei noveleiro. Na verdade, sempre gostei de novelas. Mas é que desde que comecei a trabalhar em casa, aprendi a dar uma paradinha entre sete e nove da noite para saber que reis, vilões, médicos e ladrões os nossos queridos atores estão sendo no momento. E a cada dia me sinto mais triste ao perceber que hoje não há nada mais furado do que esta idéia de que os atores não convivem com a rotina. Vejo grandes atores fazendo agora o que eles já faziam há 30 anos, aprimorando-se cada dia mais na arte da repetição, lustrando as máscaras que criaram 20 novelas atrás e que continuam a usar tão bem quanto qualquer funcionário de repartição pública que tenha aprendido a manejar com maestria e velocidade seus carimbos e fotocopiadoras.

Há, neste momento, um exemplo clássico e dolorido para ilustrar esta historinha. Ele é dado, noite após noite, pela atriz Claudia Jimenez, que vive uma anja (?!) na novela Sete Pecados. Há pelo menos uns dois meses que, em todos os capítulos, ela tenta ver uma tatuagem nas partes baixas de um ator jovem cujo nome eu desconheço. Imagino Claudia Jimenez, grande comediante, atriz inteligente e rápida, saindo de sua casa todas as manhãs, pegando o trânsito do Rio de Janeiro, indo até o Projac, se maquiando, vestindo sua minissaia branca de anjo, entrando no estúdio para repetir o que ela vem dizendo desde setembro: fulano, me deixa ver sua tatuagem. E o fulano não deixa. No outro dia, o fulano deixa, mas daí é ela que não quer ver. No terceiro dia, outra grande e apaixonante atriz, Ana Lúcia Torre, vem sabe-se lá de que parte do céu, porque ela é uma supervisora de anjos, também para tentar ver a tatuagem do rapaz. E assim, ao longo de três meses, os três atores não falam de outra coisa na vida a não ser desta bendida tatuagem. O público sofre com isso, é claro. Mas tenho certeza de que os atores sofrem muito mais. A gente pode desligar a televisão, sair e bater perna na rua que ainda está claro a esta hora, e voltar pra casa mais feliz. Quanto a eles, nada mais a fazer senão esperar que o dia seguinte enfim traga-lhes a tal tatuagem, como Estragon e Wladimir esperam há décadas que o dia seguinte lhes traga Godot.
Não tenho mais inveja da profssão deles, não. Credo, rotina por rotina, pelo menos no nosso mundo real todas as tatuagens estão aí à mostra e a gente pode se preocupar com outras coisas. Tudo bem que podemos ganhar menos e não sair em revistas. Não faz mal: este mundo está tão de ponta-cabeça, mas tão de ponta-cabeça, que a realidade tem conseguido ser muito mais interessante, inovadora e mágica que a ficção. Que chato para os atores.

domingo, dezembro 09, 2007

Por hoje é só isso

"Só os amadores ficam à espera da inspiração.
Os profissionais arregaçam as mangas e começam a trabalhar"

Do escritor americano Philip Roth, em uma das últimas páginas de seu mais recente livro, Homem Comum, um dilacerante ritual de despedida...

sábado, dezembro 08, 2007

Cocoricó

É uma historinha simples e verdadeira. E, por ser verdadeira, ela é estranhamente deliciosa. Almocei dia desses com um amigo psiquiatra, jovem profisssional muito talentoso que me exige um certo cuidado para não deixar que nossa amizade se transforme em terapia. O risco é grande. Ele me contou que, assim que terminou a residência médica, começou a dar plantão num manicômio na zona sul da cidade. Entre o grupo de internos sob sua responsabilidade, havia quatro que juravam ser Jesus Cristo. Eu sempre achei que Napoleão Bonaparte continuasse liderando este tipo de fantasia, mas ele me garantiu que não, o primeiro da lista, disparado, é Jesus Cristo.

Um dia apareceu um interno novo, que se recusava a falar e mantinha os braços dobrados e colados ao corpo, como se fossem duas asas. A família decidiu interná-lo porque fazia muito tempo que ele acreditava ser um galo. Repito, é uma história real. Fiel ao personagem que adotara, ele não abriu o bico durante a primeira consulta. Meu amigo médico, então, o encaminhou para o mesmo pavilhão onde viviam os quatro Jesus.

No final do dia, um dos Jesus o procurou em seu consultório, para reclamar do morador recém-chegado. "Eu vim falar em meu nome e em nome dos outros Jesus", disse o paciente. "Nós não queremos aquele galo no nosso pavilhão. Amanhã ele vai começar a cantar logo cedo e vai atrapalhar o nosso sono. O senhor por favor tire ele de lá".

Por falta de mais acomodações no manicômio, os quatro Jesus foram obrigados a aprender a conviver com o galo. E, ao que parece, foram felizes.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Sabe que o show de todo artista....

O amigo Gustavo Fioratti, repórter da Revista da Folha, me liga na noite de domingo para contar, extasiado, que conseguiu comprar ingresso para ver o show da banda Radiohead. Antes que eu dissesse que nem sabia que o Radiohead ia se apresentar em São Paulo, ele já explicou: as entradas eram para o show que a banda fará em julho de 2008, em Milão, na Itália. Ele havia pago algo em torno de R$ 150 pelo ingresso, "já incluída a taxa de entrega". Perguntei como ele faria para ir a Milão. "Isso é o de menos", ele respondeu. "Muito mais difícil é conseguir ingressos, eles costumam acabar no mesmo dia. Passagens e estadia eu vejo depois".

Depois que desliguei o telefone, me bateu um misto de inveja e melancolia. Fiquei pensando se haveria, hoje, um artista, uma banda ou qualquer outra figura do show biz que me despertasse um entusiasmo tão gigantesco. E vi que não. Isso é um pouco triste, de verdade. Porque, acredito eu, os grandes ídolos fazem parte daquele nosso terreno da ilusão. Quando não estamos mais dispostos aos grandes sacrifícios para ver um ídolo, é porque nos cansamos de alguma coisa, é porque deixamos de acreditar em um certo tipo de magia e hipnose que só o palco consegue transmitir - seja ele o de um pequeno teatro ou o de um grande show de rock. Talvez seja uma atitude libertadora também, esta de achar que os ídolos não têm tanta coisa importante assim para nos dizer, que podemos passar muito bem longe deles. Mas confesso que eu gostava mais de mim na época em que me dispunha a passar quatro horas numa fila, em frente ao estádio do Morumbi, para ver o Nirvana ou a Madonna. Hoje eu sei que não faria mais isso. Mudaram os artistas ou mudei eu?

No final da adolescência, quando eu ainda vivia em Jundiaí, apareceu na cidade um produtor chamado Leopoldo Berger. Falador, cabelos longos e negros e um jeitão meio saído de Woodstock, ele prometia transformar a quadra de um tradicional clube local, a Associação Atlética Esportiva, em um grande palco para show de música brasileira. A primeira a acreditar nele foi Elis Regina, que no auge do sucesso aceitou cantar na quadra de basquete da ESportiva numa noite de domingo. Ninguém na cidade acreditava que ela iria, mas foi. Elis abriu o caminho para que outros grandes artistas também acreditassem no empenho de Leopoldo Berger. Assim, a cidade receberia Gal Costa, Moraes Moreira, Raul Seixas, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Alceu Valença e, claro, para não menosprezar uma certa breguice interiorana, até mesmo Ray Coniff apareceu por lá. Eu me lembro que nunca os ingressos foram tão caros. E nunca o ginásio ficou tão abarrotado. Ver Ray Coniff, no fim dos anos 70, devia ser muito chique.

Aqueles shows, sempre nas noites de domingo, faziam a nossa semana passar mais rápido. Sabíamos que já nas filas, que começavam no meio da tarde, encontraríamos quase todos os amigos - e que dividiríamos, lá dentro, grandes copos de papel cheios de cerveja quente. Me lembro que Gilberto Gil cantou por mais de três horas, que Raul Seixas precisou ser amparado várias vezes (pouco tempo depois ele morreira), que acabou a força na hora exata em que Elis pisou no palco, que pulamos feito uns alucinados na noite dos Titãs... O grande barato, na segunda-feira, era comentar o que havíamos feito na noite anterior e tentar descobrir quem seria a atração do domingo seguinte. Este agito todo durou uns dois anos. Não sei se Leopoldo Berger desistiu de ser produtor ou se um dia foi embora da cidade, levando com ele a alegria das nossas noites de domingo.

Acho que por isso eu fiquei tão melancólico com o telefonema do Gustavo. Talvez eu quisesse sentir, novamente, este grande prazer que é a espera pelo show de um artista querido. Hoje, sem sacanagem, só de pensar em sair de casa para ir até o Morumbi, por exemplo, pegar trânsito, filas quilométricas para entrar, aguentar a gritaria dos cambistas, os banheiros entupidos, a exploração dos flanelinhas e as horas em pé no gramado eu já começo a bocejar e decido que é muito mais fácil colocar um CD para tocar. É, talvez eu tenha mudado mesmo... Se um dia eu for a Milão, com certeza não será para ver o Radiohead. Embore eu goste muito deles... no rádio do carro, bem entendido!