A atual polêmica sobre a
contratação de médicos para trabalhar em áreas remotas do País me fez lembrar
da experiência de um jovem amigo que, logo após se formar em medicina aos 23
anos, aceitou, por vontade própria e sem nenhum incentivo governamental, o
convite para clinicar em uma cidadezinha do Ceará onde, vencida uma série de perrengues
iniciais, ele passaria a ser tratado como rei. O primeiro contratempo – haveria
dezenas de outros na sequência -, se deu logo após sua chegada à minúscula
rodoviária local. Carregando duas malas nas mãos, ele passou, sem saber que
isso era uma ofensa grave na região, no meio de um casal de namorados. O homem
entendeu aquilo como uma afronta e meteu-lhe um soco na cara que o fez beijar o
chão tal qual o papa faz quando desembarca em um país novo. Ao se apresentar ao
prefeito que o havia contratado, com um olho roxo e um hematoma que ocupava
metade do rosto, agradeceu pelo comitê de boas-vindas e perguntou o que mais
ele não deveria fazer para preservar a outra metade do rosto que ainda estava
intacta.
Ao chegar ao hotel, percebeu
que não havia chuveiro. No banheiro, apenas um cano enferrujado que saía da
parede e terminava em uma ponta serrada por onde um filete de água não parava
de escorrer. O dono do hotel explicou que ninguém ali precisava de chuveiro –
nunca fazia menos de 30 graus. De tanto que ele insistiu, o dono concordou em
parafusar um chuveiro velho na ponta do cano – o chuveiro, que nunca foi ligado
à eletricidade, transmitia ao menos uma remota sensação de banho. Após mais
algumas súplicas no balcãozinho que servia de recepção do hotel, conseguiu que
viesse, de uma cidade vizinha, um aparelho de ar-condicionado barulhento como
um helicóptero, mas que mandou bem por todas as noites dos seis meses que ele
passaria na cidade.
Um dos primeiros pacientes
que ele atendeu na manhã seguinte à sua chegada apresentava um quadro de
faringite. Ele prescreveu duas cartelas de antibiótico, suficientes para uma
semana de tratamento – e explicou que os comprimidos deveriam ser tomados de
oito em oito hora. Pediu para que o homem voltasse dali a sete dias. Dois dias
depois, o homem estava de volta. Como ele não tinha relógio, achou complicado aquele
esquema de oito em oito horas. Tomou a primeira cartela em um dia e a segunda, no
outro. Veio em busca de mais cinco cartelas para preencher uma semana de
tratamento.
Com o tempo, ele fez amizade
com o dono do mercadinho, que traficava para ele alguns vidros de azeitona – a única
iguaria de um cardápio local composto, em todas as refeições, por arroz e
frango com batatas. Minto: às vezes sem batatas. Não demorou muito para que os
moradores locais, que até então tinham vivido sem médico, enxergassem nele uma
espécie de autoridade, um jovem pajé, um forasteiro de pele muito clara que
nada ficava a dever ao prefeito e ao padre. E então começaram os convites para
os almoços dominicais. Que não podiam, de maneira alguma, ser recusados. Se ele
dizia que era longe, vinham buscá-lo de carroça, se dizia que estava cansado,
instalavam outra rede na varanda. O que ele esperava, na verdade, é que alguém
lhe preparasse qualquer coisa que não fosse frango. Mas isso ele nunca
conseguiu – o lugar era seco, paupérrimo, sem nenhum tipo de plantio. Os
franguinhos que ciscavam na frente das casas de manhã já estariam na panela na
hora do almoço.
Apesar do calor e do terreno poeirento,
ele costumava correr um pouco no fim do expediente. E a cidade, quieta,
observava aquela cena com um estranhamento que não diminuiu em nada ao longo
dos meses. Uma garota da redondeza, de 19 anos e cabelos negros, caiu de amores
por ele e chorou muito quando ele voltou à rodoviária em que havia apanhado
seis meses atrás para pegar o ônibus com destino a Fortaleza – e de lá um avião
para São Paulo.
Na noite em que me contou
esta história, ele mostrou um álbum que a garota lhe dera de presente de
despedida. Em uma série de folhas de papel sulfite, a jovem colou imagens de
casais se beijando – na maioria, fotos de famosos que ela recortou das
revistas. Angelina Jolie e Brad Pitt apareceram duas vezes em poses
apaixonadas. Ao redor de cada foto, ela rabiscou um coração vermelho e, na
última página, escreveu a mais original das dedicatórias que já li na vida: “O
meu amor por você é igual a caatinga. Só aumenta”.
Ele nunca me disse se chegou
a ficar com ela. Mas, por muitos anos, guardou o álbum com carinho em uma pasta
preta, ao lado do passaporte, do título de eleitor e de algumas outras coisas
muito, mas muito importantes mesmo.