sábado, dezembro 22, 2007

Uma historinha do Carandiru

Ninguém relatou as histórias do Carandiru com tanta autoridade e competência como o médico Dráuzio Varella. Mas hoje, revirando aqui as minhas memórias, me lembrei de um fato ocorrido no presídio e testemunhado por uma velha amiga, experiente repórter policial que escreveu belíssimas matérias para o Jornal da Tarde - se é que se pode chamar de belíssima uma reportagem policial. Mas é que a repórter em questão, Marinês Campos, era tão elegante e observadora que em suas mãos mesmo a mais chocante das chacinas ganhava um quê de delicadeza para afugentar um pouco do horror.

Pois estava Marinês Campos a acompanhar um delegado que, certa tarde, reuniu dezenas de presos para falar sobre a importância da doação de sangue e órgãos. O delegado, antes de entrar no mérito de que as doações poderiam representar uma significativa diminuição nas sentenças, procurava alertar os presos sobre a nobreza e a solidariedade que acompanhavam a decisão de doar algum órgão. O tal delegado, já ao final de sua explanação, decidiu usar como exemplo a doação de rins. Disse que se algum dos presentes se mostrasse disposto a doar um rim, por exemplo, tal gesto poderia salvar uma vida e ainda coroar de humanidade o gesto do doador. Então, um preso que estava lá no fundo da sala, quieto até aquele momento, levantou a mão e indagou ao delegado:

- Doutor, isso que o senhor está dizendo é muito interessante. Mas eu só não entendi uma coisa: esse rim que a gente vai doar tem que ser o nosso?

Surpreso, o delegado disse que não havia entendido a pergunta. O preso, ainda de pé, tornou um pouco mais claro o que já havia provocado uma onda de riso entre seus companheiros. "É que se o senhor me der uma ou duas horas, eu volto aqui com um rim pro senhor. Isso vai diminuir a minha pena?"

A palestra foi encerrada às pressas e Marinês Campos voltou para a redação com outra bela história que nos fazia rir sem saber direito o porquê.

terça-feira, dezembro 18, 2007

Urubus da sociedade

Sempre fiz um esforço descomunal para tentar entender como os advogados lidam com seus dilemas éticos e suas crises de consciência. Sim, porque acredito que eles devam ter várias ao longo de sua vida profissional. Que todo mundo tem direito à defesa, de Hitler a Idi Amim, de Paulo Maluf a George Bush, é um fato aceito por qualquer sociedade civilizada. Mas me pergunto onde um advogado consegue buscar convicção para defender alguém que é reconhecidamente culpado? Acredito que não seja só uma questão de honorários, embora a conta corrente pareça ser o ponto mais flexível da coluna vertebral deles. Quando o assunto são grandes corporações, grandes homens e seus grandes pecados envolvidos, eu até compreendo o desempenho dos advogados. Nestas questões em que há milhões de dólares envolvidos, parece haver pouco espaço mesmo para os dilemas pessoais. É sempre um jogo de tubarões e, por maior que seja a mordida do adversário, a história comprova que tudo costuma acabar bem para os grandes. Eles podem até sangrar um pouco, mas não conhecem as hemorragias que vitimam os pobres.

Mas não é deles, dos grandes, que eu quero falar, não. Leio na Folha de S. Paulo desta terça-feira que um garoto de 15 anos morreu vítima de torturas e choques elétricos na cidade de Bauru. Suspeito de ter roubado uma motocicleta, o jovem CArlos Rodrigues Júnior foi preso por seis policiais militares. Algum tempo depois, já estava morto, com escoriações pelo corpo e queimaduras provocadas por choques elétricos. O fio desencapado, provavelmente utilizado para torturar o garoto, foi encontrado em poder de um dos policiais envolvidos na operação. Um laudo do Instituto Médico Legal da cidade comprova que o coração do jovem não resistiu a uma descarga elétrica e parou.

E então surgem os advogados dos policiais dizendo que seus clientes são inocentes. Eles, os advogados, alegam que o garoto, jovem e de saúde perfeita, teve um mal súbito ao ser preso e morreu. Simples assim: um garoto de 15 anos é algemado e morre. E, inexplicavelmente, seu corpo apresenta sinais de tortura e queimadura. Nossa tendência primeira é deixar um pouco a civilização de lado e jogar os seis policiais na cadeia, para que literalmente apodreçam ali. Mas não somos bárbaros: eles também têm direito à defesa. E então eu me pergunto como fica a cabeça deste advogado chamado a fazer o serviço imundo. Parece não haver a mais remota dúvida de que o garoto morreu nas mãos dos soldados. Por onde, então, começar a tese de defesa? Onde buscar concentração, paz de espírito, consciência tranquila e estômago para ir à imprensa e aos juízes e dizer que os soldados seus clientes são inocentes? De onde forjar a cara-de-pau para ir a público dizer que o menino morreu mesmo ao ser algemado? É tão grotesco que chega a dar ânsia. Você tem um garoto jovem e saudável que morre em algumas horas, você tem um corpo cheio de hematomas e queimaduras, você tem o fio desencapado usado para dar choques. E, de posse de tudo isso, um advogado aceita dizer que o garoto morreu de mal súbito e que seus clientes são inocentes. Os advogados que me desculpem, mas não consigo enxergar, nestas horas, profissão mais degradante.

Que ideal pode haver em defender culpados? Que nobreza pode haver em você lutar pela liberdade de alguém que deveria estar na cadeia? Que satisfação pode existir em mentir intencionalmente? Suponhamos que este advogado consiga fazer com que prevaleça sua tese absurda de que o garoto morreu de um mal-estar. Não é uma hipótese a ser descartada, ainda mais neste país de vale-tudo. E neste dia, então, ao sair vitorioso do tribunal, o que o nobre advogado faria? Iria levar a mulher para jantar fora e depois dançar? Iria anotar em seu currículo mais uma vitória profissional? iria colocar sua cabeça cheia de artimanhas num travesseiro de espuma, dar um longo e sonoro suspiro de dever cumprido? Realmente não consigo entender o ofício deles. Ao encarar a mãe deste menino, por exemplo, o advogado seria capaz de sustentar o olhar e dizer que seu rebento de 15 anos morreu porque era alérgico ao material das algemas? São tantas perguntas que eu gostaria que um advogado me esclarecesse tudo isso algum dia. Quem sabe assim eu teria um pouco menos de nojo do que eles são obrigados a fazer.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

A temporada termina. Mas a emoção permanece.


O crítico de teatro do Caderno 2 e agora também responsável pelo Núcleo de Dramaturgia da Tevê Cultura, Jefferson Del Rios, esteve domingo no teatro Renaissance, para ver a última apresentação da peça Andaime, texto de minha autoria com direção do Elias Andreato. Ter um crítico na platéia, ainda que ele não tenha construído sua reputação em cima de polêmicas infundadas e falsas bravatas, como é o caso do Jefferson, nunca chega a ser confortável para o autor. E imagino que também não o seja para os atores, diretores, técnicos, bilheteiros, ninguém. Afinal, o crítico, por mais que seja um entusiasta do exercício teatral, representa, depois do fracasso de bilheteria, o maior medo de quem faz teatro.

Pois o Jefferson foi e sentou-se ao meu lado. Na minha frente, um amigo querido, autor, tradutor e diretor de reconhecido talento, o Aimar Labaki, alguém que também exerceu brilhantemente a crítica por um bom tempo e talvez entenda com propriedade o que estou dizendo agora. Bom, Jefferson do lado, Aimar na frente, o estupendo Paschoal da Conceição na segunda fila e, não bastasse tudo isso, a emoção do último dia. Confesso que pensei em não ver o espetáculo. Fiquei, e com justo motivo, com medo dos três. Talvez não fosse medo, quem sabe aquele desejo, resquício da infância, de tentar agradar aqueles a quem respeitamos. Mas vi a peça, ri novamente com o talento invejável dos atores Claudinho Fontana e Cássio Scapin e, ao final, ouvi palavras de carinho e extrema generosidade vindas tanto do Paschoal, quanto do Aimar e do Jefferson - uma espécie de presente de Natal antecipado.

E hoje, segunda-feira à tarde, recebo um e-mail do Jefferson Del Rios que tomo a liberdade de reproduzir abaixo. Queria guardá-lo na minha pastinha de itens importantes, mas como ele foi escrito para ser postado neste espaço, como atesta o pedido que o Jefferson faz à jornalista Fernandinha Teixeira, resolvi acatar. Até porque o Jefferson faz comentários sobre as pessoas tão queridas que dividiram comigo todo o prazer que esta peça me deu.

Meu muito obrigado ao Jefferson, ao Aimar e ao Paschoal, que transformaram em alegria e emoção o medo e o susto de ter na platéia, num mesmo dia, este trio de pesos pesados.

Fernanda.
Escrevi o texto abaixo no blog do Sérgio Roveri, mas não sei se remeti corretamente. Peço-lhe, então, a gentileza de repassar a todos.
beijo natalino
Jefferson



Sérgio:
Voce me comoveu com sua peça Andaime, tão diferente da também muito boa O Encontro das Águas. Conseguiu inovar o humor trazendo para ele o traço do real da metrópole, saindo da alcova óbvia dos adultérios para a selva das cidades, para o cotidiano das vidas ásperas. Seu teatro tem ritmo para o humor e nele cabe um tom reflexivo hoje escasso na dramaturgia ("pobre abaixa a cabeça mesmo quando está em cima...")O elenco é um fino dueto de talentos complementares. Um dos atores recentemente disse ao "Estado" - numa bravata impensada - "quem se importa com a critica?".Não sei quem se importa. Aliás,o ùnico que teve peito de não se importar - na prática - foi Sartre, que recusou o Nobel, o maior prêmio do Ocidente e que inclui uma fortuna em dinheiro. Sartre, apesar de famoso não era rico.Mas eu, o desimportante critico, eu me importei com o trabalho deste ator que não gosta de nós. Parabéns, cara. Você é bom e tem um colega ao seu nível. Enfim, Cássio Scapin, Cláudio Fontana, Elias Andreato (direçao),Gabriel Vilella (cenário), e você - Sérgio Roveri (autor), vocês me fazem inventar frase original: terminam o ano comn "chave de ouro".
Jefferson Del Rios

domingo, dezembro 16, 2007

Eu só quero chocolate


Desde que eu soube que abriram em São Paulo uma doçaria (eu ainda prefiro falar doceira, mas os dicionários não permitem) chamada O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo que eu não consegui mais pensar em outra coisa. Já é difícil imaginar um bolo de chocolate que não seja bom, e então aparece um que é apontado como o melhor do mundo. Este nome chega a ser uma covardia - ele extrapola o nosso paladar para agir até nas nossas melhores lembranças. Seria melhor que aquele bolo de chocolate que as mães costumam fazer nos aniversários quando a gente ainda é criança? Melhor que aqueles bolos de chocolate vendidos em pedaços grandes pelas ruas de Paraty, em carrinhos de vidro que ocupam praticamente todas as esquinas da cidade? Melhor que os bolos de chocolate cobertos com brigadeiro que às vezes alguém cisma de levar em algum jantar?

Passei dias imaginando o bolo. De que tamanho seria? Qual sua consistência? Derreteria na boca ou seria crocante? A fatia seria firme e geométrica ou ela chegaria à mesa molhada e disforme? O sujeito que inventou este nome representa um atentado à nossa imaginação. Ele elevou à superpotência algo que já é um ícone do bem-estar. Bolos de chocolate são o avô do Prozac - dizem que eles operam milagres nas mulheres com TPM, nos solitários das noites de domingo, nos deprimidos leves, em quem acaba de levar um pé na bunda, em quem acaba de dar um pé na bunda, em quem amanheceu com vontade de chorar, em quem tem um nó na garganta que não deixa passar nada, a não ser o próprio bolo de chocolate, e em quem, livre de tudo isso, é apenas guloso e está em paz com a vida e a cintura.

No sábado passado, finalmente, encontrei quatro amigos tão seduzidos como eu pela propaganda do tal bolo a ponto de decidirmos enfrentar o trânsito da Oscar Freire, às vésperas do Natal, apenas para chegar à tal doçaria, acanhada e com mesinhas na calçada. Esperamos pelo bolo feito crianças que esperam por um feriado prolongado e com sol. E então ele veio, em fatias durinhas e cortadas no formato de um triângulo. Cada um muniu-se de um garfo e, silenciosa e rapidamente, abriu os trabalhos de um ritual tão aguardado. Depois do segundo pedaço, vimos que havia pouco a comemorar.

Se o bolo era realmente o melhor do mundo, eu não sei. Só sei que ele não teve culpa de não atender a nenhuma das minhas expectativas. Ele não me transportou a nenhum lugar para onde eu já não tivesse ido, não me trouxe nenhuma memória feliz, nenhuma epifania, nadinha. Era só um inocente bolo de chocolate em cima do qual eu tinha jogado muito mais expectativas do que uma confeitaria inteira seria capaz de suportar. Terminamos de comer o bolo em silêncio e cada um foi para o seu lado. Um foi andar no Ibirapuera, dois foram ao show do Arnaldo Antunes e eu fui ver uma peça no Aliança Francesa. Não sei quanto a eles, mas decidi nunca mais acreditar em nada que me seja vendido como a melhor coisa do mundo. Nestes dias, quando a gente já perdeu a fé no papai noel e nas suas simpáticas reninhas, a propaganda não deveria brincar com os nossos sentimentos desta maneira! Todo mundo anda doido para acreditar em alguma coisa que seja a melhor do mundo. Coitado do bolo, ele até que tentou. Mas é sonho demais para caber num pratinho de porcelana.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

Conta outra que esta eu já conheço

Sempre ouvi, desde menino, que a profissão de ator apresentava uma grande vantagem em relação a todas as outras: a ausência de rotina. Em um mês nós somos reis, eu ouvia os atores dizendo. No mês seguinte seremos ladrões, depois médicos, depois vilões e assim iremos, ao longo da nossa carreira, experimentando tudo de novo e ousado que a experiência humana pode oferecer. E eu, na minha vidinha pacata em Jundiaí, em que um dia parecia ser a xerox colorida do dia anterior, me contorcia de inveja de tantas aventuras permitidas e bem-pagas a que só os atores tinham direito. Eu me lembro de uma entrevista da Tônia Carrero, muitos anos atrás, em que ela dizia que o cabide representava a melhor definição de sua vida: ela era a roupa que estava pendurada ali naquele momento.

De uns tempos para cá, virei noveleiro. Na verdade, sempre gostei de novelas. Mas é que desde que comecei a trabalhar em casa, aprendi a dar uma paradinha entre sete e nove da noite para saber que reis, vilões, médicos e ladrões os nossos queridos atores estão sendo no momento. E a cada dia me sinto mais triste ao perceber que hoje não há nada mais furado do que esta idéia de que os atores não convivem com a rotina. Vejo grandes atores fazendo agora o que eles já faziam há 30 anos, aprimorando-se cada dia mais na arte da repetição, lustrando as máscaras que criaram 20 novelas atrás e que continuam a usar tão bem quanto qualquer funcionário de repartição pública que tenha aprendido a manejar com maestria e velocidade seus carimbos e fotocopiadoras.

Há, neste momento, um exemplo clássico e dolorido para ilustrar esta historinha. Ele é dado, noite após noite, pela atriz Claudia Jimenez, que vive uma anja (?!) na novela Sete Pecados. Há pelo menos uns dois meses que, em todos os capítulos, ela tenta ver uma tatuagem nas partes baixas de um ator jovem cujo nome eu desconheço. Imagino Claudia Jimenez, grande comediante, atriz inteligente e rápida, saindo de sua casa todas as manhãs, pegando o trânsito do Rio de Janeiro, indo até o Projac, se maquiando, vestindo sua minissaia branca de anjo, entrando no estúdio para repetir o que ela vem dizendo desde setembro: fulano, me deixa ver sua tatuagem. E o fulano não deixa. No outro dia, o fulano deixa, mas daí é ela que não quer ver. No terceiro dia, outra grande e apaixonante atriz, Ana Lúcia Torre, vem sabe-se lá de que parte do céu, porque ela é uma supervisora de anjos, também para tentar ver a tatuagem do rapaz. E assim, ao longo de três meses, os três atores não falam de outra coisa na vida a não ser desta bendida tatuagem. O público sofre com isso, é claro. Mas tenho certeza de que os atores sofrem muito mais. A gente pode desligar a televisão, sair e bater perna na rua que ainda está claro a esta hora, e voltar pra casa mais feliz. Quanto a eles, nada mais a fazer senão esperar que o dia seguinte enfim traga-lhes a tal tatuagem, como Estragon e Wladimir esperam há décadas que o dia seguinte lhes traga Godot.
Não tenho mais inveja da profssão deles, não. Credo, rotina por rotina, pelo menos no nosso mundo real todas as tatuagens estão aí à mostra e a gente pode se preocupar com outras coisas. Tudo bem que podemos ganhar menos e não sair em revistas. Não faz mal: este mundo está tão de ponta-cabeça, mas tão de ponta-cabeça, que a realidade tem conseguido ser muito mais interessante, inovadora e mágica que a ficção. Que chato para os atores.

domingo, dezembro 09, 2007

Por hoje é só isso

"Só os amadores ficam à espera da inspiração.
Os profissionais arregaçam as mangas e começam a trabalhar"

Do escritor americano Philip Roth, em uma das últimas páginas de seu mais recente livro, Homem Comum, um dilacerante ritual de despedida...

sábado, dezembro 08, 2007

Cocoricó

É uma historinha simples e verdadeira. E, por ser verdadeira, ela é estranhamente deliciosa. Almocei dia desses com um amigo psiquiatra, jovem profisssional muito talentoso que me exige um certo cuidado para não deixar que nossa amizade se transforme em terapia. O risco é grande. Ele me contou que, assim que terminou a residência médica, começou a dar plantão num manicômio na zona sul da cidade. Entre o grupo de internos sob sua responsabilidade, havia quatro que juravam ser Jesus Cristo. Eu sempre achei que Napoleão Bonaparte continuasse liderando este tipo de fantasia, mas ele me garantiu que não, o primeiro da lista, disparado, é Jesus Cristo.

Um dia apareceu um interno novo, que se recusava a falar e mantinha os braços dobrados e colados ao corpo, como se fossem duas asas. A família decidiu interná-lo porque fazia muito tempo que ele acreditava ser um galo. Repito, é uma história real. Fiel ao personagem que adotara, ele não abriu o bico durante a primeira consulta. Meu amigo médico, então, o encaminhou para o mesmo pavilhão onde viviam os quatro Jesus.

No final do dia, um dos Jesus o procurou em seu consultório, para reclamar do morador recém-chegado. "Eu vim falar em meu nome e em nome dos outros Jesus", disse o paciente. "Nós não queremos aquele galo no nosso pavilhão. Amanhã ele vai começar a cantar logo cedo e vai atrapalhar o nosso sono. O senhor por favor tire ele de lá".

Por falta de mais acomodações no manicômio, os quatro Jesus foram obrigados a aprender a conviver com o galo. E, ao que parece, foram felizes.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Sabe que o show de todo artista....

O amigo Gustavo Fioratti, repórter da Revista da Folha, me liga na noite de domingo para contar, extasiado, que conseguiu comprar ingresso para ver o show da banda Radiohead. Antes que eu dissesse que nem sabia que o Radiohead ia se apresentar em São Paulo, ele já explicou: as entradas eram para o show que a banda fará em julho de 2008, em Milão, na Itália. Ele havia pago algo em torno de R$ 150 pelo ingresso, "já incluída a taxa de entrega". Perguntei como ele faria para ir a Milão. "Isso é o de menos", ele respondeu. "Muito mais difícil é conseguir ingressos, eles costumam acabar no mesmo dia. Passagens e estadia eu vejo depois".

Depois que desliguei o telefone, me bateu um misto de inveja e melancolia. Fiquei pensando se haveria, hoje, um artista, uma banda ou qualquer outra figura do show biz que me despertasse um entusiasmo tão gigantesco. E vi que não. Isso é um pouco triste, de verdade. Porque, acredito eu, os grandes ídolos fazem parte daquele nosso terreno da ilusão. Quando não estamos mais dispostos aos grandes sacrifícios para ver um ídolo, é porque nos cansamos de alguma coisa, é porque deixamos de acreditar em um certo tipo de magia e hipnose que só o palco consegue transmitir - seja ele o de um pequeno teatro ou o de um grande show de rock. Talvez seja uma atitude libertadora também, esta de achar que os ídolos não têm tanta coisa importante assim para nos dizer, que podemos passar muito bem longe deles. Mas confesso que eu gostava mais de mim na época em que me dispunha a passar quatro horas numa fila, em frente ao estádio do Morumbi, para ver o Nirvana ou a Madonna. Hoje eu sei que não faria mais isso. Mudaram os artistas ou mudei eu?

No final da adolescência, quando eu ainda vivia em Jundiaí, apareceu na cidade um produtor chamado Leopoldo Berger. Falador, cabelos longos e negros e um jeitão meio saído de Woodstock, ele prometia transformar a quadra de um tradicional clube local, a Associação Atlética Esportiva, em um grande palco para show de música brasileira. A primeira a acreditar nele foi Elis Regina, que no auge do sucesso aceitou cantar na quadra de basquete da ESportiva numa noite de domingo. Ninguém na cidade acreditava que ela iria, mas foi. Elis abriu o caminho para que outros grandes artistas também acreditassem no empenho de Leopoldo Berger. Assim, a cidade receberia Gal Costa, Moraes Moreira, Raul Seixas, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Alceu Valença e, claro, para não menosprezar uma certa breguice interiorana, até mesmo Ray Coniff apareceu por lá. Eu me lembro que nunca os ingressos foram tão caros. E nunca o ginásio ficou tão abarrotado. Ver Ray Coniff, no fim dos anos 70, devia ser muito chique.

Aqueles shows, sempre nas noites de domingo, faziam a nossa semana passar mais rápido. Sabíamos que já nas filas, que começavam no meio da tarde, encontraríamos quase todos os amigos - e que dividiríamos, lá dentro, grandes copos de papel cheios de cerveja quente. Me lembro que Gilberto Gil cantou por mais de três horas, que Raul Seixas precisou ser amparado várias vezes (pouco tempo depois ele morreira), que acabou a força na hora exata em que Elis pisou no palco, que pulamos feito uns alucinados na noite dos Titãs... O grande barato, na segunda-feira, era comentar o que havíamos feito na noite anterior e tentar descobrir quem seria a atração do domingo seguinte. Este agito todo durou uns dois anos. Não sei se Leopoldo Berger desistiu de ser produtor ou se um dia foi embora da cidade, levando com ele a alegria das nossas noites de domingo.

Acho que por isso eu fiquei tão melancólico com o telefonema do Gustavo. Talvez eu quisesse sentir, novamente, este grande prazer que é a espera pelo show de um artista querido. Hoje, sem sacanagem, só de pensar em sair de casa para ir até o Morumbi, por exemplo, pegar trânsito, filas quilométricas para entrar, aguentar a gritaria dos cambistas, os banheiros entupidos, a exploração dos flanelinhas e as horas em pé no gramado eu já começo a bocejar e decido que é muito mais fácil colocar um CD para tocar. É, talvez eu tenha mudado mesmo... Se um dia eu for a Milão, com certeza não será para ver o Radiohead. Embore eu goste muito deles... no rádio do carro, bem entendido!

domingo, novembro 25, 2007

Um best seller para o Natal

Leio, como milhares de pessoas acredito eu, os trechos do livro em que a jornalista Mônica Veloso promete discorrer sobre os bastidores do poder em Brasília. A coluna da Mônica Bérgamo, na Ilustrada deste domingo, publicou alguns destes trechos. A primeira impressão é a de que Mônica vai falar pouco da Brasília capital mundial dos conchavos e da corrupção e muito da Brasília que serviu de cenário para seu romance com o senador Renan Calheiros. Um romance que teve como trilha sonora a música do filme Lisbela e o Prisioneiro executada a três vozes: na emocionante de Caetano Veloso e nas, penso eu, provavelmente desafinadas de Renan e da própria Mônica. O amor, está provado, realmente é lindo.

O livro de Mônica Veloso, escrito em tempo recorde como ensinam as leis do marketing, é a prova definitiva daquilo que todos já intuíam: todo mundo nesta história teve direito a um final feliz. Renan Calheiros, como anunciou a revista Veja desta semana, deve ser absolvido de todas as inúmeras acusações que pesavam contra ele, em troca da aprovação da CPMF. Soubemos que ele teve suas contas pessoais pagas por uma lobista, vendeu gado superfaturado para empresas fantasmas, usou laranjas para adquirir empresas de comunicação em sua Alagoas natal e tudo vai para o arquivo, do Senado e da nossa memória, porque uma oportuna conjunção de fatores políticos o transformou em peça-chave para a continuidade do imposto que pagamos a cada vez que movimentamos nosso suado dinheirinho no banco.

No caso de Mônica, o destino se mostrou ainda mais benevolente: além de ter faturado uma nota posando nua para a Playboy, o que é um direito indiscutível dela, provavelmente vai ganhar mais uns belos trocados com suas confissões de mulherzinha romântica que, vejam como a sorte é ingrata, foi cair de amores justamente por um dos homens mais poderosos da República...Mônica e Renan terão um lindo Natal e nós, se quisermos comprar uma sidrae um panetone com cheque, pagaremos alguns centavinhos para o governo federal por conta desta CPMF prorrogada.

Mas eu acho que merecemos tudo isso, e mais todo o resto previsto para cair nas nossas cabeças. Penso como seria fácil mostrar a nossa indignação diante de tudo isso: era só cruzar os braços e, por exemplo, não comprar a Playboy que trouxe Mônica na capa. Os franceses, os argentinos, os americanos e tantos outros povos mais maduros que nós, saem às ruas, com ou sem razão, sempre que alguém pisa em seus calos. Aqui, ninguém precisava bater panelas nas esquinas. Bastava não comprar a Playboy com Mônica na capa e, me desculpem pela falta de elegância, continuar batendo punheta com a revista do mês anterior. Este encalhe da Playboy seria uma maneira muito mais gostosa de gozar na cara desta situação toda. Mas o que foi feito? Todos corremos às bancas para ver as curvas e a borboletinha tatuada na bunda da mulher que o senador tinha papado. Bem feito pra gente. Teremos, agora, uma segunda chance de realizar o protesto que não foi feito há dois meses: cruzar os braços e não comprar o livro de Mônica...

Claro que é uma ilusão idiota. Em poucas semanas, o livro estará na lista dos mais vendidos e será, seguramente, o presente mais requisitado nas festas de amigo secreto. E não duvido que, em questão de dias, surja um cineasta que de tão comovido com o relato pungente de Mônica, mostre-se disposto a transformar em filme suas confissões tão oportunas.

Na mesma Folha em que lemos sobre o livro de Mônica e na mesma revista Veja que anuncia a absolvição de Renan, vemos também a tragédia da adolescente de 15 anos que foi estuprada seguidas vezes durante os dias que passou presa numa cela só com homens, no Pará. A jovem teve os pés queimado com cigarros, seu cabelo cortado com facão e era estuprada em troca de comida. Por que colocá-las no mesmo saco, alguém poderia perguntar. Simples. Porque, cada uma a seu modo, Mônica e esta pobre adolescente estão aí para esfregar na nossa cara dois lados de um Brasil hipócrita, perverso, selvagem e hediondo.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Se o mundo acabar em rede...

Aprendi muitas coisas depois que comecei a me envolver mais diretamente com o teatro e suas diversas tribos. Entre todos os conceitos que eu fui tentando assimilar, existe um que até hoje me provoca estranhamento. É o da tal da inveja branca. Inveja a gente sempre conheceu, desde a infância - seja como autores dela ou, quem sabe, como objeto de seu desejo nem sempre salutar. E então os atores apareceram na minha vida para me ensinar que inveja branca é legal. Na primeira vez em que ouvi o termo, fiquei com vergonha de perguntar o que ele significava. Na verdade, até hoje ninguém me ensinou, mas acho que aprendi sozinho com o tempo e com as sucessivas repetições. Acho que inveja branca é quando você quer muito alguma coisa, mas aceita olimpicamente o fato de que esta coisa esteja melhor nas mãos de outras pessoas - e não sofre por causa disso. Mas não é para sofrer mesmo, ou a inveja vai se tornando bege, creme, palha, palha queimada, cinza claro, cinza escuro, chumbo e finalmente negra, como é aquela outra inveja da qual a gente não consegue se libertar, mesmo colocando uma imagem do Buda em cada cômodo da casa.

Pois então eu cheguei à conclusão de que sinto inveja branca do Duilio Ferronato, do Ivam Cabral, do Alberto Guzik, do Caetano Vilela, do Márcio Gaspar e de todos os outros amigos que conseguem atualizar seus blogs todos os dias - às vezes, mais de uma vez por dia, o que torna a minha inveja parecida com uma geleira, de tão alva e límpida. Eu gosto de escrever neste blog, é claro. Mas sempre parece haver algo mais urgente a ser feito. E, mesmo quando não há, ainda pesa aquela sensação de que tudo que eu possa vir a dizer não será capaz de despertar o interesse de quem quer que seja. Daí para a desistência, é um passo. Ainda mais no meu caso, um expert eme abandonar hoje o que até ontem era a razão da minha vida.

Eu desisto de quase tudo que começo. Entro numa escola de inglês, por exemplo, e saio dizendo que finalmente vou ter a fluência de um Paul Auster no idioma do Shakespeare. Três meses depois, emperrado diante das preposições e dos diversos tempos verbais que eles têm para indicar ações passadas, eu pulo fora. E encontro ótimas desculpas para a desistência. A melhor delas é sempre esta: eu passei para um estágio avançado, mas tão avançado, que só tem aulas às sete da manhã...muito cedo pra mim!

Depois, descubro a iôga e acredito que, novamente em três meses, eu vou ser aceito como contorcionista no Cirque du Soleil, desbancando aquelas chinesinhas que cabem dentro de uma caixa de bombom Garoto. Quando descubro que o máximo da minha flexibilidade permite apenas que eu apanhe uma moeda no chão sem ter de colocar as mãos nos quadris, paro com tudo de novo. E foi assim com a bicicleta Caloi 10, que eu comprei e só usei três vezes, com a grelha George Foreman, que em três anos de vida só viu dos hambúrgueres, com o aparelho de fazer abdominal, que se revelou, já na segunda semana, o melhor lugar da casa para secar as toalhas de banho, com a batedeira de bolo, cujos garfos são ótimos para coçar as costas e assim com tantas outras coisas cujos poderes miraculosos desapareceram assim que cruzaram os batentes da minha casa.

Usei todos estes exemplos para demonstrar que faço um esforço supremo para manter este espaço mais ou menos atualizado - e por isso a tal inveja branca dos amigos que vêem em seus blogs uns adoráveis tamagochis que precisam ser alimentados religiosamente todos os dias. Mas eu não sou preguiçoso, não mesmo. Os que me conhecem sabem o quanto me dedico ao trabalho, aos amigos, aos compromissos... eu só não tenho muita disciplina, o resto eu tiro de letra. E como prova de que eu consigo levar adiante algumas coisas, informo aqui que estou entrando no quarto mês da academia de ginástica. E acabo de ser convidado para correr dez quilômetros ao lado dos alunos mais assíduos. Só não aceitei porque me conheço bem: além da falta de condicionamento, sei que depois de correr dois ou três quilômetros, eu ia começar a prestar atenção nos anúncios das escolas de inglês, nas vitrines com bicicletas e grelhas em ofertas, e pararia de correr para ir, feliz da vida e extremamente confiante, atrás de tudo aquilo que me promete a felicidade com pouco esforço...

quinta-feira, novembro 15, 2007

Por um mundo sem palitos

Este ano eu endossei muitas campanhas que me chegaram pela Internet, todas com um inegável objetivo (ou apelo) social, humanitário ou ambiental. Bom, em primeiro lugar, esta divisão já me parece ilógica: nos dias que correm, estas três coisas não devem ser mais vistas de forma isolada. Botei meu nome na campanha contra a prorrogação da CPMF, contra a continuidade da exploração irracional da Amazônia, contra a lei que previa cortes nos recursos destinados ao Sesc, Sesi e Senac, contra a morte cruel dos animais nos centros de zoonose, contra a utilização dos burrinhos que puxam carroças em pleno ano de 2007 no centro de Porto Alegre, contra a permanência de Renan Calheiros na presidência do Senado e outras tantas que, nesta sexta-feira de chuva e frio, me fogem à lembrança.

Talvez por ter sido tão entusiasta destas campanhas virtuais, me reservo o direito, agora, de lançar minha própria campanha, de caráter muito mais restrito, de alcance pouco nobre, de simpatia duvidosa e, acima de tudo, de interesse próximo do zero. Mesmo assim, vou lançá-la: dou início hoje, como um Don Quixote dos bons modos, a uma campanha contra as pessoas que palitam os dentes em público! Elas não só existem, como estão se multiplicando de modo assustador. Estes gremlins, que representam um ataque diário à boa educação à mesa, estão escapando dos restaurantes por quilos (dos quais sou frequentador diário) para atacar também naqueles ambientes um pouco mais chiques e caros, onde a gente só vai quando é convidado ou quando a situação exige toalha de linho branco sob nossos pratos - sem couvert e sem sobremesa, por favor, que a situação tá brava.

Uma vez um leitor perguntou para a Danuza Leão se existia alguma ocasião em que era possível palitar os dentes. Ela respondeu que só se a pessoa estivesse trancada no banheiro, com a luz apagada e de costas para o espelho, pois a situação é tão desagradável que não merece ser testemunhada nem pelo próprio autor. Fecho questão com a Danuza. Palitar os dentes em público é abominável. Passar cotonete nos ouvidos ainda é prazeroso: faz uma coceguinha, lembra um carinho e remete à uma ternura materna de infância. Mas que prazer existe em palitar os dentes? Alguém se lembra de algum dia a mãe ter nos procurado com um palito afiado na mão e mandado a gente abrir a boca para ela cavoucar no esconderijo dos nossos molares? Nunca, não é! É um raciocínio simples, confesso: mas se nunca nos ensinaram, nem na escola e nem na nossa casa, que os dentes devem ser palitados, por que raios as pessoas continuam fazendo isso uma na cara das outras?

Uma noite dessas entrei no restaurante Piolim, ali na Rua Augusta. Numa mesa de canto estava, vestida toda de preto, uma das melhores atrizes da nova geração, num papo animado com um rapaz que eu não conhecia. Terminado o jantar, com a graça de uma Julieta, ela começou a palitar todos os seus muitos dentes. Pronto, na hora ela se transformou, para mim, na noiva do Shrek. É implicância minha? Claro que é. Podem dizer que é viadagem, mas uma estrela não palita os dentes em público. Aliás, não palita os dentes, e ponto final. Alguém é capaz de imaginar Audrey Hepburn com um palito nas mãos? É capaz de ver Nicole Kidman tirando um fiapinho de salmão que entalou entre seu canino e o primeiro molar? Já imaginou um palito interferindo na simetria perfeita e carnuda dos lábios de uma Marilyn Monroe? Quer tirar totalmente o glamour, a compostura e a elegância de uma pessoa? Dê-lhe um palito de dentes. Não há nada que resista a eles.

Pronto, lancei as bases e os argumentos da minha campanha. SEi que ela não terá alcance nenhum e que, já no almoço de amanhã, vou vê-la naufragar na mesa ao lado da minha. Tem gente que sonha com um mundo mais justo, um mundo sem criminalidade, um mundo em que as crianças tenham um futuro garantido, um mundo verde em que o meio ambiente e os animais sejam respeitados, um mundo mais compreensivo e seguro. Eu sonho e luto por tudo isso também. Mas confesso que vou ficar muito mais feliz se neste mundo ideal não houver mais lugar para os palitos!

quarta-feira, novembro 14, 2007

Um grande mistério da infância

Quase ninguém ainda se conhecia pelo nome. Éramos trinta e poucas crianças, assustadas em nossos sete anos, diante daquela professora que, embora bondosa, nos obrigava a passar quatro horas fazendo exercícios de caligrafia para que nossos punhos e dedos selvagens se habituassem com os mistérios da escrita nos quais dávamos os primeiros passos. Os uniformes ainda não estavam prontos, nem os cadernos haviam sido encapados. A espera pela chegada da primeira cartilha, a famosa Caminho Suave, foi quebrada por um baque seco no fundo daquela classe do primeiro ano primário: um dos nossos, um aluninho de cabelo preto cortado escovinha, caiu desmaiado no meio da aula.

Acho que nenhum de nós tinha presenciado antes um desmaio ao vivo. A professora o socorreu imediatamente e logo vieram em seu auxílio a diretora e uma velha zeladora da escola. Naquele dia, ele não voltou às aulas. Quando cheguei em casa, contei a aventura para minha mãe, que não teve dúvidas quanto ao diagnóstico: o menino desmaiara de fome. No dia seguinte, eu voltei para a escola levando dois lanches. Sinceramente não me lembro do que era o meu lanche, mas ainda consigo enxergar o dele: um imenso sanduíche de pão com mortadela. Assim que eu o vi - todos o viram muito bem no dia seguinte - caminhei em direção a ele, como um escoteiro, levando minha oferenda na mão. "Toma aqui, minha mãe mandou te dar. Ela falou que você desmaiou de fome". O menino não pegou.

Inconformado com esta recusa, procurei a professora para dizer que eu havia trazido um lanche para o menino do desmaio. Ela também tentou convencê-lo, sem sucesso, a aceitar minha gentileza. O lanche ficou na mesa da professora e não me lembro se algum outro aluno o pegou ou se ele foi mesmo parar no lixo.

Algumas semanas depois, todos os alunos foram submetidos a alguns exames médicos que diziam ser rotineiros. Primeiro, o exame de vista; depois o de fezes. Em um dia, recebíamos as latinhas de alumínio para colhermos as fezes. No dia seguinte, deveríamos trazê-las cheinhas, devidamente embrulhadas e com nosso nome completo escrito numa tira de esparadrapo. O resultado ficou pronto duas semanas depois, e causou uma surpresa geral. A classe todinha, incluindo as meninas, tinham oxíuros, aqueles bichinhos brancos que costumam provocar uma insuportável coceirinha no fiofó. Só um único aluno estava livre dos tais oxíuros: o menino que havia desmaiado. Neste dia aprendemos o nome dele: Mauro. Primeiro pelo desmaio e depois por seu cocozinho imaculado, Mauro se tornou o aluno mais famoso da turma. O único que, segundo a professora, nunca andava descalço e por isso não tinha vermes. Mais uma lição pra gente aprender.

À medida que os dias iam correndo e as crianças iam se conhecendo melhor, ficamos sabendo que Mauro também era o aluno mais rico da classe. O pai dele era dono de uma grande transportadora e de escritórios de contabilidade, instalados na rua mais movimentada do bairro, a primeira a ser pavimentada em toda sua extensão. Nunca soubemos por que Mauro desmaiou naquele dia, mas seguramente não tinha sido de fome. Quando contei para minha mãe a que família Mauro pertencia, ela demorou a se dar por vencida. "Esses ricos, grande coisa, nem sabem cuidar das crianças..."

domingo, novembro 11, 2007

Romeu, Julieta e algumas pulgas.

Até aquele dia, todos os nossos cachorros haviam sido vira-latas. Uns bichinhos amorosos, que se serviam dos restos das nossas refeições e eram chamados de nomes banais como Bob, Duque e Sultão. Nunca nenhum deles soube o que era um consultório de veterinário. Viveram muitos anos e só ficaram doentes uma vez na vida - para morrer. E então meu irmão apareceu em casa com um filhote diferente, uma robusta e legítima fêmea de pastor alemão. Junto com ela, um saco de ração para cachorros, pois ela devia ser nobre demais para comer arroz, feijão e algum pedaço de carne acomodados em uma latinha de goiabada. Demos a ela o nome de Dione, mas ninguém a chamava em voz alta no quintal porque, soubemos logo depois, Dione era também o nome de uma enfermeira que se mudara três casas depois da nossa. E, para aumentar o constrangimento, Dione, a enfermeira, começou a tratar de um tio que morava na rua ao lado. Em nome da boa vizinhança e da saúde do meu tio, chamávamos a cachorra bem baixinho e ainda assim só quando não havia ninguém por perto.

Dione cresceu muito e depressa. Não sei se pela genética de sua raça ou pelo amor incondicional que nutria por cada um de nós, ela se tornou um excepcional cão de guarda. Ninguém se aventurava pelo nosso quintal se ela estivesse solta. Mesmo tocar a campainha da casa tornou-se um gesto arriscado para os vizinhos. Ela vigiava a casa, a calçada e o pedaço de rua que conseguia ver através do muro. Me lembro de uma noite em que, ao voltar da faculdade, o guarda do quarteirão deu um tapinha em minhas costas em sinal de camaradagem. Nunca mais ele conseguiu trabalhar sossegado. Se pudesse, acho que ela avançaria até sobre sua sombra.

Quando ela entrou no segundo cio, meu irmão julgou prudente preservar aquela linhagem tão forte e altiva. Foi buscar, num sítio próximo, um macho da mesma raça, tão imponente quanto ela, ainda maior e mais forte. Diziam, e não sei se isso tem algum fundamento, que as cachorras sentem-se mais à vontade para o galanteio na própria casa: os machos é que devem vir até elas. Quando soltaram o macho no nosso quintal, ela revelou seu lado mais bestial: seus pêlos de um marrom escuro eriçaram-se, os caninos escaparam dos limites da boca e seu latido se transformou num rosnado ameaçador. E foi assim, vestida para matar, que ela avançou sobre o macho invasor. Depois de dez minutos, ele era levado de volta ao sítio, com o nariz sangrando e todo seu tesão canino reprimido. Achamos que Dione não estava pronta para uma noite de núpcias, ou talvez não tivesse aprovado o noivo escolhido pela família.

Dois dias depois, quando meu irmão levantou-se cedo para ao trabalho, Dione dormia feliz na área de serviço, ao lado de um cachorrinho vagabundo, sem lenço e sem documento, sem pedigree e de procedência desconhecida. E, ainda por cima, com apenas a metade do tamanho dela. Não pode ter acontecido, praguejou meu irmão, enquanto mostrava o caminho da rua para o invasor. Mas aconteceu. Algumas semanas depois, suas tetinhas já estavam inchadas, sua barriga havia se transformado numa bola e seu latido era um canto de felicidade. Meu irmão passou alguns dias andando pelo bairro, atrás daquele cachorro. SEria ele saudável, estava vacinado, tinha ao menosr um dono ou um pedaço de tapete surrado sobre o qual dormir? Nunca mais o cão foi visto, ninguém soube de onde ele vaio e para onde ele foi.

Dois meses depois de sua lua-de-mel subversiva, Dione voltou à area de serviço onde havia perdido a virgindade tão bem guardada pela família. Com seus dentes afiados, tosou uma quantidade imensa dos seus próprios pêlos para fazer uma espécie de caminha para os oito filhotes que nasceriam a seguir. Todos com a cara dela, todos com o tamanho dele. O primeiro filhote nasceu às 11 da noite, o último, quase às quatro da manhã. A cada filhote que vinha ao mundo, ela cortava a placenta com os dentes, deitava-se e, carinhosamente, mostrava-lhe o caminho de uma de suas tetas. Ficamos todos, eu, meu pai, minha mãe e meu irmão ali, ao lado dela, acompanhando emocionados aquele longo trabalho de parto. E, do lado de fora da casa, como o mais zeloso dos pais, o cachorrinho vira-lata assistia a tudo através das grades do portão. Durante os dois meses da gravidez, nunca mais ninguém o vira no bairro. Mas, no dia do parto, ele voltou, exatamente na hora em que o primeiro cachorrinho nasceu. E se foi, sabe-se lá para onde, assim que o último cachorrinho aninhou-se nas tetas generosas da mãe. Talvez tenha ido prestar o mesmo tipo de assistência para alguma outra cachorra a quem ele seduziu durante suas andanças noturnas. Quem sabe foi embora porque, instintivamente, soubesse que Dione e seus oito filhos seriam muito bem tratados e que sua presença era mais necessária em outro lugar.

Faz tanto tempo que tudo isso aconteceu. Dione morreu aos onze anos, de câncer, e seu enterro teve todas as lágrimas que normalmente são guardadas para os humanos. Seus filhotes, a esta altura, estão todos mortos também, bem como o vira-latinha que apareceu em nossas vidas em apenas duas noites. Mas de quem eu nunca me esqueço. Pela sua dedicação e por sua ingênua capacidade de nos mostrar que, quando se está realmente disposto, não há grades, portões altos, pedigrees e famílias bravas a nos separar da nossa felicidade.

segunda-feira, novembro 05, 2007

Um Itaú de vantagens

Sou cliente do Unibanco. Não que isso signifique grande coisa. Mas como temos de ser clientes de algum banco nesta vida, optei por um que me dá direito a meia-entrada nos cinemas Arteplex e Unibanco e que eliminou, pelo menos nas duas agências que costumo frequentar, aquelas pavorosas portas giratórias que parecem satisfeitas somente diante da nossa nudez. Assim, no Unibanco, entro e saio feliz da vida (como se isso fosse possível em se tratando de um banco) com minhas moedinhas no bolso, a chave da minha casa e meu celular sem que um guarda precise me resgatar daquela prisão de vidro que me separa dos caixas.

Mas, nesta segunda-feira de chuva, percebi que não havia pago em dia meu condomínio. Como nenhum banco recebe contas vencidas de seus concorrentes, fui obrigado a ir até o Unibanco sacar dinheiro vivo para só depois me dirigir ao Itaú e pagar o condomínio atrasado. Claro que as coisas não começaram bem. Quem pode ser feliz se tem de sair de casa numa manhã de segunda-feira chuvosa para enfrentar dois bancos? No Unibanco deu tudo certo - havia apenas uma pessoa na minha frente. Saquei a grana e fui até o Itaú, ao lado do metrô Vila Madalena.

Primeiro passo: colocar celular, chave e as moedinhas na porta giratória. Tentei entrar. Não consegui. A porta acusou a presença do meu guarda-chuva comprado por dez reais num camelô da Rebouças. Penduro o guarda-chuva desajeitadamente na porta e tento entrar de novo. Em vão. Lá vem o guarda para me salvar. "O senhor tem de colocar o guarda-chuva e dar um passo atrás daquela linha amarela. E daí tenta de novo". Obedeci o guarda e consegui entrar. Tudo bem que o atrás da linha amarela já era quase fora da agência - e estava chovendo. Consegui entrar. Bufando, mas entrei.

Segundo passo: havia 23 pessoas na fila. E como era uma fila única, que serpenteava três vezes pelo interior do banco antes de chegar aos três caixas, isso equivale dizer que havia 23 pessoas na minha frente. Um dos caixas era, compreensivelmente, destinado às pessoas idosas que, sem maldade alguma, precisam de muito mais tempo para ser atendidas. Ou por alguma limitação no entendimento ou porque aproveitam este momento diante do caixa para contar como foram os últimos 55 anos de suas vidas.

Neste caixa preferencial, uma senhora idosa, de blusa de tricô azul, tentava pagar quatro carnês. O diálogo que se seguiu entre ela e o caixa, juro, foi mais ou menos assim:
Caixa: A senhora pode digitar a senha?
Idosa: O quê?
Caixa: A senha. A senhora digita a senha?
Idosa: Senha?
Caixa: Isso, sua senha.
Idosa: Minha senha?
Caixa: Isso, senhora. Sua senha, neste teclado aí na sua frente.
Idosa: Aqui?
Caixa: Isso, por favor.
idosa: Minha senha aqui?
Caixa: Senhora, por favor, se a senhora não digitar a senha não tenho como fazer o pagamento.
Idosa: Ah, a senha...Eu digito. Aqui?
Caixa: isso, aí...

Os diálogos pareciam saídos de uma peça teatral de algum escritor noruguês contemporâneo. Pouco antes de chegar minha vez de ser atendido, uma das caixas abandonou o posto. Voltou alguns segundos, com um copo de água na mão. Vi que seu volume de trabalho era tão elevado, que ela nem conseguia tomar uma água sossegada, lá na cozinha. Fiquei pensando em quantas vezes eu li, só neste ano, que bancos como Itaú, Bradesco e Banco do Brasil tiveram recordes históricos em seus balancetes. Claro que é fácil ficar rico desta maneira: você coloca só três caixas trabalhando feito loucas para atender um batalhão de 20 pessoas, provavelmente paga mal a elas e a todos os outros funcionários, cobra taxas exorbitantes dos correntistas e deixa os clientes um tempo imenso na fila...pô, assim até eu, que não entendo absolutamente nada de negócios, conseguiria ficar milionário. Como devem ser felizes neste governo as famílias Setúbal, Moreira Sales, Brandão e tantas outras que vêem as curvas dos seus balancetes ultrapassando o teto dos arranha-céus em que elas costumam despachar. E como, para elas, poderia ser agradável um terceiro mandato do Lula... Quem sabe elas não topariam até financiar mais este desvario....Enquanto nós continuaremos lá, onde sempre estivemos: quietinhos e obedientes nas filas.

domingo, novembro 04, 2007

Arte ou sacrifício?

São duas da tarde do feriado de dois de novembro, uma sexta-feira de tempo insuportavelmente abafado. Chego à bilheteria do Cine Bombril, no Conjunto Nacional, para comprar dois ingressos para a tal repescagem da Mostra de Cinema - na verdade um minifestival, logo após o período oficial da Mostra, em que são exibidos alguns títulos que o público escolheu ou, o que parece mais evidente, cópias cujas distribuidoras permitiram que ficassem no Brasil por mais alguns dias. Encontro uma fila de umas 15 pessoas à minha frente, uma fila que caminha muito devagar, o que só faz ressaltar o calor absurdo que fazia ali no Conjunto Nacional. E naquela hora, como em poucas vezes nos últimos tempos, eu me senti um completo idiota. Me perguntei o que eu estava fazendo ali, naquela fila lenta e enervante, se poderia estar fazendo qualquer coisa mais agradável ao ar livre, talvez almoçando na companhia de amigos, tomando chope em algum boteco com mesinhas na calçada, andando em algum parque ou simplesmente lendo em casa, de cueca, camiseta surrada e janelas abertas. Será que são realmente válidos os sacrifícios que fazemos sempre que queremos consumir algum tipo de arte?

Eu já tinha tido muito tempo para pensar nisso quando enfrentei uma inexplicável fila de quatro horas e meia para comprar minha credencial para a Mostra de Cinema. Alô, organizadores: até quando vai fazer parte do evento este ritual de sacrifício a que vocês submetem o público, hein? Na ocasião, disseram que o sistema caiu, os computadores ficaram fora do ar e, assim, as credenciais não podiam ser vendidas. OK, vamos acreditar nestas mazelas da informática e dar mais um crédito ao evento. Mas nesta sexta-feira de finados, depois de enfrentar dez dias de projeções, eu senti o quanto estava cansado de correr atrás dos filmes. E fiquei me perguntando se realmente valia a pena aquele sacrifício todo. Se eu havia me tornado uma pessoa melhor, um pouquinho mais culto e informado, de correr de uma sala para outra, às vezes comendo tranqueiras na rua para não perder os letreiros do filme seguinte... Claro que há algo de muito prazeroso em ir ao cinema - mas existe também uma fronteira muito nítida entre o prazer e o sacrifício em eventos como a Mostra de Cinema, o Tim Festival, a Flip e tantos outros que nos obrigam a comprar ingressos com semanas de antecedência, a enfrentar filas, a passar calor, a brigar por uma vaga no estacionamento, a ficar horas em pé, dormir mal, comer pouco... tudo isso em nome de quê, na verdade? Penso se fazemos tudo isso por que realmente saímos enriquecidos destas experiências ou, no fundo, estamos confundindo tudo isso com mais um tipo de consumo que nos escraviza? O que restou em mim dos poucos mais de 20 filmes que vi na Mostra? De quantos títulos eu ainda me lembro? Quantas histórias vão continuar na minha cabeça daqui a uma semana, um mês, um ano? E a mais triste das perguntas: quem me obrigou a isso?

Resolvi falar sobre este assunto com um amigo. Radical que é, ele não teve dúvidas ao me responder que toda esta correria não valia absolutamente de nada. A arte, disse ele, na maioria das vezes não faz outra coisa senão nos deprimir. Não acredito que seja exatamente assim. O que sei é que, naquela sexta-feira, eu vi apenas um dos dois filmes para os quais havia comprado ingressos. Quando acabou este primeiro filme, saí do cinema, caminhei pela Alameda SAntos até encontrar uma lixeira e ali, às nove da noite, rasguei e joguei fora o ingresso do segundo filme. Pode parecer cruel, mas poucas vezes eu fiz algo tão libertador. Graças a Deus, eu botei na cabeça que não precisava mais ver nada, graças a Deus eu tinha tirado dos meus ombros o peso de ver arte como se carrega pedra. E, acima de tudo, graças a Deus a próxima Mostra de Cinema é só daqui a um ano.

quarta-feira, outubro 31, 2007

Próxima pergunta, por favor!

Na semana passada participei de uma entrevista coletiva com uma das mais famosas atrizes da tevê brasileira. Houve um tempo em que eu gostava muito das coletivas. Hoje, na maioria das vezes, saio deprimido delas. Desconfio que eu já me tornei uma espécie de dinossauro do jornalismo - na maioria das coletivas, costumo estar entre os profissionais com mais tempo de carreira... e de idade. A maioria dos meus colegas ou já abandonou a profissão ou está ocupando cargos de chefia e por isso se afastaram da reportagem. Eu já ocupei cargos de chefia também, mas não sinto saudade destas épocas. A reportagem ainda é, na minha opinião, a faceta mais emocionante que o jornalismo pode oferecer a quem o pratica.

As coletivas sempre foram a grande oportunidade de trocar experiências e conhecimentos com os colegas que cobriam a mesma área e também com o entrevistado. Era o momento de aprender com perguntas inteligentes que sempre provocavam respostas idem. Infelizmente, isto acabou - ao menos para um determinado segmento do jornalismo cultural. Os jovens profissionais, talvez seduzidos pelas publicações que só enaltecem os famosos, não estão mais interessados em perguntar nada - eles querem apenas tornar públicos seus elogios. Aliás, me parece que fazer pergunta está fora de moda no jornalismo: boa parte dos repórteres está muito mais interessada em dar suas próprias opiniões ou exibir seus parcos conhecimentos sobre algum tema do que em indagar o entrevistado. Você participa durante uma hora de uma coletiva e volta para casa com as mesmas informações que já constavam do release.

Nesta coletiva da semana passada, um repórter, o primeiro a segurar o microfone, disse que mal via hora de o espetáculo estrear, porque tinha certeza de que seria emocionante. Onde estamos, eu pensei na hora. Em um evento profissional ou tomando um chá da tarde na casa da nossa avó? Que me interessa saber para quem ou o quê o repórter está torcendo? Se ele quer felicitar um artista pelo seu desempenho, que mande um e-mail, passe na papelaria e compre um cartão ou vá bater na porta do seu camarim. Entrevista coletiva existe para que perguntas sejam feitas e, neste caso, é muito mais produtivo para os leitores constatar que o artista foi colocado numa sinuca do que presenciar todos os galanteios feitos em público por profissionais que são pagos para questionar, e não para bajular.

Há algum tempo, uma jovem repórter perguntou em uma coletiva se a atriz Marisa Orth se lembrava que elas tinham compartilhado de um mesmo camarote em um carnaval de Salvador. Como a memória da atriz não colaborava, a repórter ajudou: eu estava com o cabelo diferente... lembrou agora? Tive vontade de me enfiar debaixo da mesa. Ou de apanhar o microfone para dizer que não, eu não fazia parte deste novo time. Espero não estar sendo presunçoso ao escrever tudo isso. É só o desabafo de alguém que tá velhinho pra sair de casa, pegar trânsito, pagar estacionamento e depois de tudo passar uma hora ouvindo elogios descabidos a trabalhos que ainda nem disseram a que vieram.

sábado, outubro 27, 2007

Corrida de bastão

A academia de ginástica que eu frequento ocupa um prédio envidraçado de dois andares no bairro do Sumaré. Do segundo andar, onde estão instalados os equipamentos de musculação, é possível ver as duas piscinas que ficam no térreo - a adulta, onde eu já presenciei alguns alunos fazendo até aulas de mergulho, e a infantil, de longe o lugar mais divertido de toda academia. Esta semana, enquanto tentava me adaptar à minha nova série de exercícios, fiquei emocionado com um tipo de treinamento que unia mães e seus bebês pequenos na piscina infantil.

O treinamento era simples. As mães, a maioria delas em elegantes trajes de natação, tinham de erguer seus bebês um pouco acima de suas próprias cabeças, e caminhar com eles de uma margem à outra da piscina. Talvez algumas pessoas se perguntem: mas o que há de emocionante nisso? Eu explico: a expressão de vitória estampada no rosto de cada uma delas. Naqueles breves minutos do exercício, era como se seus filhos não fossem apenas filhos, mas venerados troféus que elas exibiam aos professores, aos demais alunos e, salvo exagero de minha parte, também aos céus. Os bebês em suas touquinhas coloridas eram a prova inconsteste de que algo havia dado certo na vida delas, e por isso podiam ser exibidos acima de suas próprias cabeças. E lá iam as mães, em grupos, movendo-se contra a pressão da água, plenas de vida com suas crias perfeitas e belas.

Havia algo de ancestral naquela cena - fêmeas jovens orgulhosas de seus rebentos saudáveis. A emoção que me invadiu devia-se exatamente a isso: a certeza de que a natureza permitiu às mulheres serem divinamente mais animais do que nós os homens. Existe algo que demonstre mais o poder da natureza do que uma mulher grávida? Existe alguma imagem mais maravilhosamente eficaz do que a de uma mulher amamentando para nos lembrar de nossa condição de primatas evoluídos? Eu sempre pensei que está nelas, nas mulheres, esta ligação mais terna e profunda com algum lugar remoto de onde viemos. E não há excesso de romantismo nisso, não. O mesmo ser humano que chega à lua e é capaz de outras proezas tecnológicas, um dia procurou faminto o seio de sua mãe, como fazem os cães, os gatos e nossos irmãos chimpanzés. E são estes dois momentos, a gravidez e a amamentação, a principal peça de resistência de nossa sociedade. Enquanto nascermos delas e procurarmos seus seios para algum tipo de alimento que só se encontra ali, eu sinto que tudo ainda está em ordem. E a coroação disso tudo, para mim, foi ver aqueles bebezinhos como acessórios de uma comovente prova olímpica - eles eram, no fundo, o bastão que suas mães algum dia irão entregar para a grande atleta que está logo ali, correndo incansável na frente de todos nós: a vida.

Duas frases e um conselho

Talvez tenha sido a chuva que empurrou muita gente para os cinemas na tarde de quinta-feira. Tentei ver alguns dos filmes mais badalados da Mostra e não consegui: dei de cara com o aviso de ingressos esgotados em três vitrines de cinema. Faz parte da Mostra e de seu folclore. Inútil perder a paciência ou achar que o dia está jogado fora. É só abrir o guia e ver que, muito perto de você e dentro de no máximo meia hora, outro filme, talvez menos concorrido, está prestes a começar. E é sempre um convite para a aventura, para o desconhecido.

Foi assim que entrei na sessão de A Última Hora, documentário produzido e narrado por Leonardo DiCaprio sobre o aquecimento global e nossa permanência cada vez mais incerta neste planeta. Pensei duas vezes antes de entrar na sessão. Como eu já via visto Uma Verdade Inconveniente, documentário de Al Gore de tom apocalíptico, julguei que não precisava me deprimir de novo diante da idéia de que não haverá mais o Ártico dentro de alguns anos e que, também dentro de alguns anos, vai ser difícil apontar uma diferença entre a Amazônia e o Saara - será tudo um deserto só.

Mas entrei. E confesso que me surpreendi, pois A Última Hora é um documentário que está disposto a nos redimir. Em seus momentos finais, ao menos. Depois de passar três quartos do filme apontando a quantidade de besteiras que a humanidade já fez, alguns dos principais cientistas internacionais deram algumas receitas de como salvar o planeta enquanto ainda resta um pouquinho de tempo. Tudo, é claro, passa por uma decisão política: se realmente quisermos, haverá futuro e ele não será nada assustador.

Mas guardo duas frases que foram ditas no filme. Da primeira eu não me recordo o autor, mas ele diz mais ou menos assim: "Nunca teremos o bastante daquilo que não precisamos". E a segunda foi dita por Churchill: "Os americanos têm vocação para fazer a coisa certa. Depois, é claro, que eles já esgotaram todas as outras alternativas".

E aqui um conselho para os amigos atores, atrizes, diretores, escritores, gente de teatro, literatura, cinema e todas as demais pessoas bacanas e sensíveis: não percam, por nada neste mundo, o filme francês Atrizes, que está passando na Mostra. Juro que devolvo o dinheiro do ingresso se alguém não gostar.

quarta-feira, outubro 24, 2007

Uma praga cor de abóbora

Sempre fui da opinião de que todo trabalho, a princípio, é honesto... antes de surgirem os flanelinhas, é claro. Acho que poucas coisas, nos últimos tempos, se reproduziram de forma tão acelerada e sem controle quanto os flanelinhas. Sinto que eles estão, literalmente, cada vez mais perto de mim. Houve uma época em que eles eram vistos apenas próximos aos estádios de futebol, casas de show e alguns poucos teatros. Dentro de pouco tempo, eu tenho medo, eles estarão agindo dentro das nossas próprias garagens.

Não foi apenas na quantidade que esta categoria apresentou mudanças. A abordagem também ficou diferente. Até pouco tempo atrás, eles se contentavam com um real. Havia alguns, mais compreensíveis, que diziam assim: doutor, deixa aí quanto o senhor puder ou quiser. Tirando a parte do doutor, que realmente é chata, o resto do diálogo era até comovente. Agora, não. Eles estipulam o preço, que costuma variar de três a cinco reais, e adotam uma postura muito mais agressiva. EStamos nos tornando, aos poucos, reféns dos flanelinhas.

Ontem fui almoçar na Mercearia São Pedro, um dos cantinhos mais adoráveis e desorganizados da Vila Madalena, um misto de restaurante, locadora de vídeos, livraria e quitanda em que a quantidade de clientes bacanas só é menor que o mau humor dos donos. Moro a apenas duas quadras dali, mas como estava chovendo resolvi ir de carro. Quando estava estacionando o carro, na Rua Jericó, já apareceu um flanelinha para me ajudar na manobra. Isso é outra coisa que irrita: gente que tenta nos ajudar a estacionar o carro. Eu já sou péssimo nestas manobras sozinho. Quando surge alguém para gritar: isso, agora vira, vai um pouco pra frente, ôpa, foi muito, agora volta, não, não deste lado doutor, vira do outro... daí a coisa só piora. Parece que eu voltei para a auto-escola. Quando desci do carro, ele me pediu três reais. Caralho, eu falei. Eu moro ali. Tá vendo aquele prédio? É ali que eu moro. Eu tenho de pagar três reais para tirar o carro da garagem? AO MEIO DIA!!!!! Então eu percebi que os flanelinhas das matinês já tinham invadido também as ruas Harmonia, Girassol, Jericó, Rodésia e todos os outros cantinhos que ainda fazem a Vila Madalena ter cara de bairro do interior. A partir de agora, quando você quiser tomar um simples café na Vila, se prepare: você vai gastar mais com os flanelinhas do que com um bom expresso.

Mas existe um local da cidade em que eles adotaram um grau de profissionalismo que consegue ser ainda mais proibitivo: a região da Faap. Ali eles costumam chegar antes do início das aulas e ocupam as ruas com uma série de cones para guardar vagas para os alunos que vão chegar em pouco tempo. Tente encontrar uma vaga nas imediações da faculdade: quando você avistar, um pouco de longe, um espaço vago entre dois carros, nem adianta comemorar - ao chegar mais perto você vai ver um cone reservando o lugar para algum aluno que, no entender dos flanelinhas, tem mais direito à rua do que você, que não é estudante da Faap.

Daí eu me pergunto: ninguém vê isso além da gente? Não há polícia, fiscais de trânsito ou qualquer outra autoridade que nos garanta o direito de parar o carro na rua sem sermos chantageados? E que ninguém venha me dizer que isso é papo de burguês. Que ter carro é privilégio e que eles estão fazendo um trabalho honesto e que são frutos da injustiça social do país. Ter carro não é privilégio porra nenhuma. Se fosse, São Paulo não seria uma das cidades mais congestionadas do mundo. E o que eles fazem não é nem trabalho e muito menos honesto. É chantagem, é constrangimento, é exotrsão, é ameaça, é aporrinhação. Não é justo que o camarada tenha de pagar para deixar seu carro na rua, não é justo que eles risquem a pintura do carro ou murchem os pneus quando a gente não aceita pagar. E não é justo que a gente se sinta intimidado por não ter pago três reais para um sacana de colete cor de abóbora. O que eles fazem é roubo e, como tal, devia ser proibido.

Mas a Prefeitura e os órgãos de trânsito estão muito mais preocupados em revestir a cidade com câmeras bem equalizadas para nos multar em cada esquina, se por acaso avançarmos alguns centímetros o sinal, não por negligência ou imprudência - mas por medo de sermos assaltados, como eu já fui e muita gente também já foi, a cada vez que paramos num cruzamento da cidade. Tudo é orquestrado para nos roubar ainda mais, para nos extorquir a cada vez que saímos de casa. Os flanelinhas estão ali, visíveis como uma praga urbana, fantasiados de cor de abóbora como se fossem um bloco carnavalesco de desocupados e chantagistas. E ninguém os pune, ninguém os coíbe, ninguém os tira da rua. Eles foram incorporados por nossa paisagem urbana como os equilibristas dos faróis, as crianças desassistidas e os pedintes que caem pelas sarjetas. São tolerados pelo poder público. Quem sabe se até, no intervalo entre uma extorsão e outra, eles ainda não sorriem e fazem tchauzinho para as novas câmeras instaladas para nos multar.

sexta-feira, outubro 19, 2007

Dez coisas que poderiam ser proibidas

1. Os ingressos de cinema acabarem bem na nossa vez de comprar

2. Dar mais do que duas voltas num quarteirão para encontrar uma vaga de estacionamento

3. Peças de teatro que terminam com ária de ópera - só para avisar o público que aquilo realmente é o fim

4. A obrigação de aplaudir de pé todo e qualquer espetáculo que a gente veja - mesmo que seja ruim de doer

5. Acabar a bateria do celular no meio da tarde quando a gente só vai voltar pra casa à noite

6. Chuva na manhã de segunda-feira

7. Usar a camiseta da mostra de cinema com a cara do Hector Babenco estampada no peito

8. Não lembrar quem é aquela pessoa que nos chama pelo nome e sobrenome numa festa

9. A tia que a gente não vê há um tempão dizer que a gente engordou, mas que continua bonitinho

10. O cabelo crescer mais nos lados do que no alto da cabeça

quarta-feira, outubro 17, 2007

Calma, calma... era só brincadeirinha!!!!!

Passo em frente a uma banca de jornal e tomo o maior susto ao ver a capa da revista Flash. LUCIANO HUCK ASSASSINADO POR UM ROLEX. Este era o principal título da publicação, escrito assim, em letras enormes, ao lado de uma foto de Huck com sua mulher, a apresentadora Angélica. Na hora eu pensei: meu Deus, será que o incidente com o tal relógio, que Huck soube tão bem capitalizar a ponto de lhe render uma capa na revista Época e as páginas amarelas da Veja, tinha realmente se convertido numa tragédia? Chego mais perto da banca, já que ultimamente meus olhos, sem óculos, só me permitem ler mesmo as letras graúdas, e percebo que, de maneira muito mais discreta, havia um complemento logo abaixo da manchete: Isto poderia ter acontecido. Respirei aliviado. Luciano Huck não morreu. Quem morreu foi o jornalismo.

Fiquei alguns momentos ali, parado diante da banca, pensando até onde é capaz de ir a inconseqüência de um tipo de jornalismo que se pratica cada vez mais neste país - e, ao que tudo indica, no resto do mundo também. Eles estampam, em manchete, que uma figura pública como Huck é assassinada para esclarecer, logo abaixo, que isso poderia ter acontecido. Resolvi ampliar um pouco a brincadeira proposta pela revista Flash e fiquei imaginando qual seria a reação mundial se um dia lêssemos uma manchete assim: BIN LADEN LANÇA BOMBA ATÔMICA EM LOS ANGELES E MATA 700 MIL. Depois, em letras bem menores, viria o alívio: Isto poderia ter acontecido.

Claro que sim. Tantas coisas poderiam ter acontecido, ou não. Jesus Cristo poderia não ter sido crucificado, Hitler poderia não ter enviado milhões de judeus aos campos de concentração, Fernando Collor poderia não ter sido eleito, eu poderia ter ganho na mega-sena sozinho e agora estaria escrevendo este post de um cyber café no hotel Ritz de Paris... O mundo poderia ser um lugar muito mais divertido se o jornalismo passasse a se dedicar a esta prática alucinógena. Neste dia, não nos preocuparíamos mais com os fatos e sim com as suposições. O que aconteceu seria irrelevante; bom mesmo seria discutir o que poderia ter acontecido. Eu penso que assustadora é a palavra que melhor define este new-journalism que a Flash adotou esta semana. Huck, acredito eu, talvez tenha até ficado feliz em saber que seu Rolex foi capaz de distorcer ainda mais a visão que nós, brasileiros, estamos tendo da realidade. Quem sabe em 2008 a Cásper Líbero, a PUC, a USP e outras tradicionais escolas de jornalismo do país incluam em seu currículo uma disciplina chamada Jornalismo Adivinhatório. Seguramente, muitos profissionais atuantes no mercado dariam grandes mestres.

Se eu não aparecer por aqui nos próximos dias, é porque eu poderei ter decidido escalar o Himalaia - um lugarzinho gelado e inóspito que, até onde eu saiba, não dispõe de cyber café e nem de pivetes doidos para roubar um Rolex.

terça-feira, outubro 16, 2007

Chiquinha

Esta é uma fábula de final triste. Na cidade de São José do Rio Preto vivia uma família que tinha uma gata chamada Chiquinha. Um dia, a família precisou se mudar e, por algum motivo que ninguém conseguiu descobrir, decidiram não levar a gata junto. Um casal de vizinhos passou, então, a cuidar de Chiquinha. Mas, como todos sabem, os gatos são muito apegados à casa em que vivem - e aos donos também, embora insistam em pregar o contrário. Com Chiquinha não foi diferente: ela comia ao lado dos novos donos, mas passava o resto do tempo no portão da casa em que nasceu e viveu toda sua vida até ser deixada para trás.

Um dia chegaram os novos moradores para ocupar a velha casa de Chiquinha, entre eles um estudante de direito de 26 anos, dono de dois cães pitbull. Com medo dos cães e talvez por desconfiar que aquela casa já não era mesmo sua, Chiquinha nunca cruzou o partão: ficava o tempo todo na calçada, provavelmente ainda tentando compreender o abandono, coisa que nós humanos também não conseguimos aceitar direito. Chiquinha não fazia nada além de olhar, mas apenas isso irritou o estudante de direito.

Ao voltar da faculdade uma noite dessas e ver a gata novamente na calçada, o estudante não se conteve. Apanhou Chiquinha pelo rabo, a girou duas vezes em torno da cabeça e a arremessou contra um muro. Algumas pessoas que passavam pelo local interromperam a barbárie e denunciaram o estudante à polícia, no momento em que ele se preparava para pisotear a gata.

Chiquinha quebrou as duas patinhas dianteiras e, apesar de uma cirurgia que tentou reconstituir seus ossos com pinos de metal, ela ficou praticamente aleijada - consegue se locomover, mas manca muito.

A notícia só não dizia se Chiquinha ainda insiste em sentir saudades e a observar por longas horas a casa em que nasceu...

Em pouco tempo aquele estudante estará formado, apto a entrar com celular nos presídios de segurança máxima ou a colaborar com traficantes e sequestradores. E nós, como Chiquinha, continuaremos nossa marcha em direção a algum futuro incerto. Mancando cada vez mais.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Uma tarde para o resto da vida

Fiquei em dúvida entre escrever ou não alguma coisa sobre Paulo Autran. Eu sempre tive medo desta linha fina, muito fina, que separa a homenagem do oportunismo. Nestas horas, continuo achando que o silêncio, o respeito e a saudade sincera são os maiores tributos que podemos prestar a alguém que se vai, mesmo que este alguém tenha a dimensão gigantesca de um Paulo Autran. Tanto se falou sobre ele nestes dias, de sua colossal importância ao teatro brasileiro e de sua insubstituível presença nos palcos, que qualquer depoimento extra pode soar redudante. Mas há uma história, pequena na verdade, que eu gostaria de deixar registrada aqui, como prova da imensa generosidade deste ator que se recolheu naquela coxia misteriosa que um dia irá nos receber a todos.

Um dia, encontro Paulo Autran no saguão de um teatro - e qual seria o lugar mais provável para encontrá-lo? Ele veio me perguntar o que eu andava fazendo. Respondi que estava escrevendo para jornais e revistas. Ele disse que isso não tinha a menor importância para ele. "Eu quero saber de teatro. O que você anda escrevendo para o teatro, isso sim me interessa. O resto eu não ligo". Eu disse que tinha algumas coisas inéditas em casa, algumas peças, pequenas cenas, algumas idéias... "Imprima tudo e mande para mim. Eu quero ler".

Obedeci, é claro. Imprimi três peças, coloquei-as num envelope branco e deixei na portaria do prédio em que ele morava, numa rua dos Jardins. Duas ou três semanas depois, encontro um recado na secretária eletrônica. "Oi, Sérgio. Aqui é o Paulo. Liga para mim, preciso falar com você". Paulo Autran, ator consagrado, um dos poucos brasileiros acima do bem e do mal em seu ofício, isento de qualquer obrigação profissional com quem quer que fosse, havia lido minhas três peças e queria conversar sobre cada uma delas. Era uma sexta-feira à tarde e ficamos um bom tempo no telefone. Ele havia lido O Encontro das Águas, O Funil do Brasil e A Vida que eu Pedi, Adeus, estas duas últimas ainda inéditas. Falou com carinho sobre cada uma delas, elogiou o que considerava seus pontos altos, criticou o que julgava falho e me incentivou a continuar escrevendo.

Num desses rompantes de coragem que a gente tem algumas vezes na vida, eu disse que dali a dois dias, no domingo, os atores José Roberto Jardim e Pedro Henrique Moutinho iriam ler a peça num teatro, para tentar conseguir uma pauta. "Quem vai dirigir esta leitura?", ele perguntou. Eu disse que não havia pensado nisso ainda. "É uma peça cheia de pausas e silêncios. Estes atores precisam ser bem dirigidos", completou. Respirei fundo, tomei coragem e fiz o convite. Você não gostaria de dirigi-los, Paulo? Então ele me perguntou: quando mesmo será a leitura? Eu respondi que no domingo. "Então temos apenas um dia para ensaiar. Quero vocês amanhã aqui em casa, às três da tarde. Temos de caprichar, o tempo é curto".

Às três em ponto do sábado estávamos lá, tocando a campainha de seu apartamento, com o texto impresso nas mãos. Sem muitas cerimônias, Paulo Autran nos conduziu até uma grande mesa de madeira, em sua sala de jantar. Pediu um cigarro para o Pedro Moutinho e então começou a pilotar os meninos. Como eles, eu também não acreditava no que estava acontecendo ali. Com paciência e um carinho indescritível, Paulo Autran ia mostrando aos atores a melhor maneira de pronunciar cada palavra, a pontuação mais precisa, a respiração mais exata, o tom mais confiável, a emoção mais apropriada. Disse a eles que, ao contrário do que os jogadores de futebol fazem com a bola, o ator não podia ter pressa em passar a palavra adiante. Cada palavra tinha de sair no seu tempo exato, acariciando a garganta do ator, pois só assim ela acariciaria o ouvido do público - se fosse o caso de acarinhar.

Passamos três horas na companhia de Paulo Autran. Em vários momentos, eu senti vontade de chorar. Ainda que O Encontro das Águas jamais viesse a ser encenada, ainda que nenhuma outra peça minha chegasse aos palcos, aquela tarde já seria, por si só, suficiente para dar sentido à minha breve carreira de autor. Quando saímos de lá, atordoados com o grau de entendimento de texto e a compreensão teatral de Paulo Autran, o Zé Roberto Jardim disse que naquela tarde ele havia aprendido tanto ou mais do que nos três anos que passara na Escola de Arte Dramática. Pedro Moutinho, o sacana mais adorável que eu conheço, completou com a seguinte frase: "Não sei o que eu ainda tenho pela frente, mas, não importa o que eu venha a fazer, esta tarde vai abrir a minha biografia".

Quando cheguei em casa, Paulo Autran ligou. "Esqueci da última recomendação. Caso vocês consigam a pauta no teatro, não quero que digam que eu ajudei na direção da leitura. O mérito é todo de vocês, vocês vão chegar lá sozinhos".

Conseguimos a pauta e Paulo Autran foi à estréia. Chegou sozinho, de táxi, dizendo que não perderia aquilo por nada. Esperou para cumprimentar os atores, elogiou muito a direção do Alberto Guzik, posou para as fotos e, antes de ir embora, chamou a gente num canto para dizer que ficava sempre muito feliz quando via um trabalho que o agradava. "Eu tenho a impressão de que o teatro vai ficar em boas mãos".

Tomara, grande mestre e amigo querido. Tomara mesmo.

quarta-feira, outubro 10, 2007

O menino


De repente esse menino começou a falar umas coisas esquisitas. Outro dia mesmo, na hora da janta, a gente com a cara quase enfiada no prato de sopa de feijão que a mãe dele tinha feito, ele deixou a fatia de pão de lado pra dizer, assim do nada, que era importante que cada um de nós tivesse um ideal nesta vida. Eu fiz de conta que não ouvi e continuei comendo, a mãe dele olhou pra mim, com a colher de sopa a um palmo da boca, e também não falou nada. Na hora de dormir, eu perguntei pra ela que história era aquela de ideal. Ela jurou que não sabia de nada, que nunca tinha ensinado o moleque a falar daquele jeito. Você tá de prova, ela continuou. Quando foi que a gente falou de ideal aqui dentro, quando? Na certa, eram as más companhias. Ele já tá meio crescido, ela falou, pára pouco em casa, sai por aí com um monte de moleque que a gente nem sabe direito de onde vem, na certa é com eles que o menino estava aprendendo essas coisas. Eu juro por nossa senhora, disse ela, que eu nunca ensinei essas coisas de ideal pro menino. Se ele anda aprendendo isso, é fora de casa.

Discussão na cama dura pouco. Quando a gente deita, é pra dormir mesmo. Teve época que a gente fazia umas outras coisas, mas agora isso diminuiu também. Eu continuo gostando, eu sei que ela gosta também. Mas nos últimos tempos ela deu de pedir pra gente fazer depressa, porque senão no outro dia ela fica muito cansada na hora de levantar. Depois que tiraram o ponto de ônibus daqui da frente, a gente precisa levantar meia hora mais cedo pra pegar a condução. E meia hora é muito pra quem já dorme tão pouco. Então, naquela noite, a gente nem falou do menino e nem fez aquilo que deixou de fazer faz tempo. Mas que aquela palavra não me saía da cabeça, ah, isso não saía mesmo. Ideal. Onde o menino anda aprendendo essas coisas?

No outro dia, eu chamei ele no canto. Você já tá ficando grande, menino. Logo vai ter de ajudar na casa. O que você acha que vai fazer da vida? Eu ainda não sei, falou o menino. Mas tem de saber, na sua idade eu nem só sabia, como já fazia, eu falei. Eu sei, ele respondeu, mas é que eu gostaria de fazer alguma coisa que me desse prazer. Eu quase perdi a cabeça. Você não responde desse jeito pro seu pai, eu falei. Você tá bem crescido mas ainda pode levar uma coça. Quem anda falando essas coisas pra você, me fala agora que eu vou lá tirar satisfação, eu falei. Ninguém anda me ensinando nada, pai. Como não anda? Claro que anda. Ontem você falou de ideal, agora você vem me falar de prazer. Na sua idade, se eu falasse umas coisas dessas pro meu pai, eu levava um tapa na boca que ia ficar três dias sem comer. Mas o que é que tem demais, o menino perguntou. Eu vou te ensinar o que é que tem demais, repete isso que eu te ensino, falei por último e mandei o menino direto pro quarto. Depois eu fui junto, eu e a mãe dele, porque é um quarto só na casa.

Naquela noite eu tive um pesadelo. Sonhei que caía uma chuva braba, dessas que alagam o bairro inteiro. E era cada trovão, mas cada trovão. Só que o trovão não fazia barulho de trovão, a cada vez que o céu ficava branco, o que eu ouvia vindo lá de cima, em vez do trum, trum, era ideal, prazer... Parecia que as nuvens ficavam gritando na minha cabeça, com voz de macho doente: ideal, trummmm, prazer, trummmmm. Acordei ensopado. Olhei pro lado e o menino já tinha levantado. Agora esse menino deu de me atormentar até de madrugada, eu ralhei. Fui pra cozinha e a mãe dele já tava coando o café. Cadê o seu filho, eu perguntei. Ele já foi. Ele disse que nem conseguiu dormir direito, de tanto que você roncava, se mexia e falava alto de noite, ela disse. Culpa dele, tudo culpa dele. Ele foi pra aonde, eu perguntei. Ele foi andar por aí, sem rumo. Ele tomou um gole de café e disse que ia andar, porque hoje.... ela parou no meio da fala. Por que hoje o quê, mulher? Você anda escondendo coisa de mim, eu gritei. Porque hoje ele me falou que tinha acordado feliz, ela falou. Feliz? Feliz aqui? Nesta casa? Eu não tô dizendo. Esse menino vai acabar dando trabalho pra gente. Escuta o que eu digo.

domingo, outubro 07, 2007

Falou alguma coisa? Hein? O quê? Talvez eu...Não sei...

Sempre evitei falar de teatro neste espaço por acreditar que talvez eu esteja envolvido demais neste meio, o que poderia, se não comprometer, no mínimo afetar a minha imparcialidade. Falar de teatro, aqui, seria o equivalente, em muitos casos, a falar de amigos ou no mínimo de pessoas conhecidas, o que, convenhamos, nunca é muito confortável e ainda menos prudente. Se eu fizesse elogios, poderia pairar sempre a idéia de algum nepotismo ou favorecimento no ar; se fizesse críticas, algumas vozes iriam se erguer para dizer que é tudo despeito. Então, prefiro passar longe do tema, embora a vontade de recorrer a ele sempre tenha sido muito grande.

Resolvi abrir uma exceção hoje porque, nos últimos tempos, tenho percebido o entusiasmo com que vem sendo saudado um tipo de dramaturgia que começou a proliferar nos nossos palcos. É um estilo de texto, a meu ver, não apenas vazio e entediante, mas acima de tudo frágil em relação a uma das principais regras do bom diálogo - aquela que ensina um personagem a não dizer aquilo que o outro já sabe. Pois bem, este novo estilo de texto parece querer sempre tratar como estranhos dois personagens que convivem há anos sob o mesmo teto. Está em cartaz em São Paulo, neste momento, uma montagem cool e luxuosa que leva este tipo de recurso à exaustão. É algo mais ou menos assim. Imaginemos um diálogo entre marido e mulher. Vou tentar imitar:

MARIDO: Nosso carro...
MULHER: Sim?
MARIDO: É vermelho.
MULHER: Sim, vermelho.
MARIDO: Nosso carro é vermelho.
MULHER: Vermelho
MARIDO: Havia outras cores
MULHER: Sim, outras cores
MARIDO: Mas nós compramos vermelho
MULHER: Sim, nós compramos um carro vermelho
MARIDO: Embora as outras cores...
MULHER: O vermelho, nós compramos vermelho
MARIDO: Sim, nosso carro é vermelho
MULHER: Nós compramos juntos
MARIDO: Nós compramos juntos um carro vermelho
MULHER: Você sabe, nós sempre gostamos de vermelho
MARIDO: Havia tantas outras cores
MULHER: Mas, você sabe, o carro que nós compramos é vermelho
MARIDO: Vermelho...
Silêncio
MULHER: Oi?
MARIDO: O quê?
MULHER: Você disse alguma coisa?
MARIDO: Eu...bem, eu...
MULHER: Sim?
MARIDO: Eu estava me referindo ao nosso carro
MULHER: Ah, sim, o nosso carro vermelho
MARIDO: Isso, a ele. Nós compramos um carro vermelho....
MULHER: Talvez nós devêssemos....
Silêncio.
MULHER: Talvez nós devêssemos...
MARIDO: Sim?
MULHER: Não, melhor não.
MARIDO: É, talvez seja melhor não.
MULHER: Eu preciso ir
MARIDO: Como?
MULHER: Eu disse que talvez eu precise ir...
MARIDO: Ir? Ah, é claro, ir...Você sempre costuma ir, não costuma?
MULHER: Sim...
MARIDO: Agora?
MULHER: Melhor sim... Você sabe, eu preciso ir...
MARIDO: Ok
MULHER (indecisa, olhando a porta): Bem, talvez eu...
MARIDO: Sim?
MULHER: É, você sabe, eu preciso ir...

Vai embora de uma vez e deixe a gente em paz, pelo amor de Deus. Não acho que o teatro tenha a obrigação de reproduzir a nossa fala cotidiana - uma de suas grandes dificuldades, aliás, é a de retratar com um mínimo de verossimilhança justamente a nossa incapacidade de comunicação. Mas, a continuar assim, em pouco tempo sairemos de casa para ver no palco algo como Mim Tarzan, You Jane. O mais engraçado é que, sobre esta peça que está em cartaz na cidade, há algo de bom nela: há tantas repetições que nos sobra tempo de contar quantas pessoas estão bocejando, quantas já caíram no sono, quantos estão olhando no relógio, quantas estão ligando o celular dentro das bolsas para ver se do lado de fora do teatro está chegando algo mais interessante do que aquilo que vem do palco. Depois, quando o espetáculo termina, todo mundo aplaude de pé, calorosamente. E sai falando sobre a tal da musicalidade do texto, das repetições precisas, da entrega dos atores a um diálogo tão seco e, como diria matreiro o meu amigo Ivam Cabral, do mergulho na verticalidade proposto pelo autor e cumprido com perfeição pelo elenco. Vixi Maria.

Há um livro chamado O Náufrago, do genial Thomas Bernhard, lançado pela Companhia das Letras. Ali eu aprendi, com admiração incondicional, como se dá a repetição de idéias, palavras e pensamentos no sentido de tratar o texto como se este fosse uma partitura musical. Praticamente toda a história de O Náufrago é contada durante os poucos minutos em que um personagem espera para ser atendido numa pousada européia. O Náufrago nos ensina, acima de tudo, a distinguir o abismo que existe entre uma verdadeira sinfonia e um disco furado. Infelizmente, todos os aplausos nos últimos tempos têm sido para os discos furados.

terça-feira, outubro 02, 2007

Um dedinho de prosa

Não sei se é impressão minha, mas acredito que as pessoas do interior, como eu, adoram dar explicações que vão muito além do necessário, ou do esperado. Na maioria das vezes, um sim, um não ou um muito obrigado já seriam suficientes para responder a quase todas as questões que nos apresentam. Mas nós, eternamente caipiras, nunca nos contentamos só com isso. Nenhuma dúvida parece estar suficientemente esclarecida até que revelemos parte de nossa intimidade ao mais completo estranho. Vejo isso em minha mãe. Se uma visita, por exemplo, elogiar o pedaço de bolo ou torta que ela oferecer, minha mãe jamais irá se satisfazer com um muito obrigado. Ela, seguramente, sairá com esta resposta: "Imagine, tão fácil de fazer. Olha só: vão três ovos, um copo de leite morno, a mesma medida de leite condensado, duas colheres de manteiga..." Pronto, o visitante, feliz ou não, irá embora levando de presente uma receita na cabeça.

Se você resolver elogiar a roupa de alguém do interior, é quase certo que também sairá da conversa com um guia de compras cheio de ótimas dicas. Tenho uma prima que é assim. Se alguém disser, "nossa, que blusa bonita", ela vai responder "ah, paguei só 35 reais naquela loja que fica perto do correio, sabe? Na verdade, custava 40 reais, mas como era a última peça deste número, a moça fez um desconto, até porque ficou um pouco justa e, está vendo este botãozinho aqui, então, ele veio meio solto e eu tive de dar um pontinho quando cheguei em casa. Mas olha, pra ficar em casa, está bom demais, não está?"

Eu não sei se rio ou choro diante destas situações, pois me pego fazendo a mesma coisa quase todos os dias. Quando eu tomo um táxi e o motorista me pergunta para onde eu quero ir, além de dar o endereço eu digo o que estou indo fazer lá, por que não fui de metrô, se é dia do meu rodízio, se estou a trabalho ou a passeio e, se não chegarmos logo, sou capaz de dizer qual o saldo da minha conta bancária. Outro dia estava tomando chope com um amigo do interior de Minas, bonitão, jovem e ator descolado. No fundo, tão bocó quanto eu. Quando o garçom perguntou se ele queria o terceiro chope, em vez de responder não, muito obrigado, ele saiu com exatamente isso: "Não vou querer, não. É que, saindo daqui, eu vou na casa de uma amiga que mora aqui perto e acho que lá só tem vinho, porque ela está de regime. E eu não quero misturar, porque amanhã é domingo e eu trabalho mais cedo". O garçom olhou para a cara dele, virou as costas e foi embora, equilibrando um copo de chope na bandeja e, provavelmente, sem dar a mínima bola para as combinações etílicas ou os compromissos dominicais do meu amigo.

Não sei se foram todas as cadeiras na calçada da nossa infância, todos os portões e janelas abertos, toda falta de cerimônia na hora de entrar na casa dos vizinhos, todas as brigas ouvidas através das paredes das casas geminadas, todas as rodinhas que se formavam na frente de qualquer boteco, todas as novenas, todas as procissões, todos os recados que levamos e trouxemos numa época em que telefone era coisa de rico, todas as festinhas em que entrava qualquer um, todas as quermesses em que dedicávamos músicas de amor nos alto-falantes, todas as festas juninas no terreno baldio, todo jogo de bola nas ruas sem carro, tudo isso e nossa eterna aversão interiorana ao isolamento nos deixaram assim: loucos para falar muito mais do que a prudência nos recomenda. Mas existe uma questão que para mim continua sem resposta: falamos tanto por sentir orgulho real dos nossos atos ou por que, na falta de atributo melhor, jogamos todas as fichas na nossa sincera ingenuidade?

Só existe uma coisa que nós, do interior, gostamos mais do que falar: é exibir as cicatrizes das nossas cirurgias e contar quantos pontos levamos... Mas isto é assunto para outro dia. Estou começando a desconfiar que por hoje já falei demais.

domingo, setembro 30, 2007

O estranho mundo de Nuno Cobra

Neste domingo eu assisti, pela primeira vez, a alguns trechos da programação da Record News, o novo canal de jornalismo da Rede Record, que, se não me engano, entrou no ar na terça-feira da semana passada. Depois de algumas imagens do arquivo da emissora, com destaque para os festivais de música e os programas de humor dos anos 60, entrou no ar uma longa entrevista com Nuno Cobra, famoso por ter sido o preparador físico de Ayrton Senna e ter escrito, logo após a morte do piloto, um best-seller com orientações sobre alguns cuidados que, na opinião dele, são imprescindíveis à saúde física e mental. Foi um depoimento interessantíssimo porque não suscitou aquela velha motivação de concordar ou não com o entrevistado. Ao contrário, a entrevista nos fez pensar em que mundo vive Nuno Cobra. Ou, melhor ainda, em que mundo vivemos nós.

Em primeiro lugar, ele disse que não acredita em doenças e, por isso mesmo, é avesso a qualquer tipo de medicação. Caso não tenhamos chegado ao mundo já portadores de alguma doença genética, nosso destino é ser irremediavelmente saudáveis. Segundo ele, nossa propensão à saúde é tão grande, mas tão grande, que precisamos de um esforço imenso, do nosso corpo e da nossa mente, para adoecer. O equivalente a dizer que cada uma de nossas doenças seria o resultado de algum tipo de armadilha que armamos para nós mesmos.

Em outro momento da entrevista, Cobra disse que nosso dia deveria terminar, no máximo, às 19h30. Qualquer atividade além deste horário seria uma temeridade. Temos de ir para a cama, de acordo com suas lições, assim que escurece. No inverno, o ideal seria que nos escondêssemos debaixo dos cobertores por volta das 18h30, logo após o jantar, que deveria ocorrer às 18h. "Se a família se reunisse às 18h para jantar, haveria tempo suficiente para a refeição e uma boa conversa até as 19h30, quando todos deveriam se recolher", disse ele. "Mas e todos os nossos compromissos, o nosso trabalho e o nosso lazer, que geralmente avançam até muito mais tarde?', perguntou a repórter. "Tudo o que fazemos depois das 19h é um desrespeito ao nosso corpo, é um desrespeito à nossa milenar herança genética, um desrespeito aos nossos antepassados, que se recolhiam quando o sol se punha. Nosso corpo está programado para se deitar quando escurece, ele pede isso".

Num outro trecho, ele disse que anseia pela chegada do dia em que um político em campanha vai prometer fechar paulatinamente os hospitais - porque a população, saudável, já não vai mais precisar deles. Neste momento, o nosso Ministério da Saúde deveria ser chamado de Ministério da Doença, já que ele parece apenas administrar epidemias, calamidades e morte. Quando ele fizer jus ao nome de Ministério da Saúde, hospitais e clínicas poderão ser fechados, pois seremos uma nação pronta para passar bem longe dos consultórios médicos.

Pensei muito na entrevista de Nuno Cobra e, com todo respeito à sua já comprovada experiência, eu acho que não gostaria de viver neste mundo que ele desenhou, não. Talvez seja legal realmente passar longe dos hospitais, não adoecer, comer bem e todas estas coisas. Mas, tirando aqueles longínquos anos da infância, eu sempre acho que o bom da vida - e juro que não há nenhuma conotação sexual nisso, embora não haveria problema algum se houvesse - se dá justamente depois, bem depois que o sol se põe... Nuno Cobra gosta das galinhas. Eu prefiro as corujas.

quinta-feira, setembro 27, 2007

Olha o passarinho!

Sei que há algum tempo eu já abordei este assunto por aqui, mas volto a ele porque é algo que realmente me intriga. A capa da revista IstoÉ Gente desta semana traz o ator Marcos Palmeira segurando nos braços sua filha recém-nascida, que já sabemos chamar-se Júlia. O ator está usando um avental verde claro e uma touca da mesma cor, o que nos leva a crer que tinha acabado de sair da sala de parto quando a foto foi feita. Assim, a pequena Júlia pode ter sido apresentada primeiro à lente dos fotógrafos e só depois ao seio materno. Como nunca trabalhei em revistas de celebridades, tenho curiosidade em saber como são feitas transações jornalísticas como esta da qual participou o galã global. É alguém da revista que liga para ele perguntando a que horas está marcado o parto? Ou seria ele próprio ou alguém de sua confiança a telefonar para as redações dizendo que encontra-se liberada a entrada no berçário para repórteres, fotógrafos e cinegrafistas? E a mais indelicada das questões: estas transações envolvem alguma remuneração ou é apenas a vaidade pessoal que está em jogo?

Faço estas perguntas porque realmente tenho curiosidade em saber por quais caminhos algumas das questões mais privadas das celebridades chegam ao conhecimento público. Como qualquer frequentador de consultórios médicos e dentários e de salões de cabeleireiros eu passeio curioso por estas publicações em que a notícia costuma ser a decoração da sala, o novo filtro da piscina, algum roteiro de viagem ou, acima de tudo, os descaminhos sentimentais dos famosos. De tudo que li a este respeito, três episódios insistem em permanecer na minha memória. O primeiro deles mostrava a mãe do cantor Herbert Vianna após o acidente em que morreu a mulher do líder dos Paralamas. A mãe foi flagrada deixando flores no túmulo da nora. Não consegui entender se a imagem foi fruto de alguma combinação com os editores da revista ou se era apenas obra de algum fotógrafo absolutamente inoportuno. O segundo flagrante mostrava a apresentadora e atriz Babi curtindo "sozinha" o fim de um namoro numa cabana em Campos do Jordão. Como em cada foto ela exibia uma roupa diferente, imagino que sua solidão foi aplacada por uma equipe de produtores, figurinistas, maquiadores e fotógrafos. E o terceiro revelava a apresentadora Ana Maria Braga de joelhos no santuário de Fátima, em Portugal, pagando uma promessa por ter vencido uma doença grave. São exemplos típicos de situações que parecem exigir recolhimento e respeito, devoção e silêncio, solidão e quietude. Mas nada disso integra mais o glossário de alguns famosos.

Os fatos, quaisquer que sejam eles, perderam a importância como fatos em si - eles só passam a ter sua existência justificada quando chegam às páginas de revistas. Acredito que não haja saudosismo algum, ou ingenuidade alguma, em acreditar que alguns episódios na vida de qualquer pessoa, independentemente do seu grau de exposição na sociedade, deveriam dizer respeito somente a ela, seus familiares e amigos mais próximos. Mas alguns artistas estão se tornando peritos em banalizar sua privacidade. Reclamam dos paparazzi apenas quando estes chegam em momentos inoportunos - como se restasse aos paparazzi alguma outra alternativa. Mas, na maioria das vezes, parecem enxergar neles um termômetro de sua própria popularidade e cotação no mercado. E assim, do berço ao túmulo, seguem acreditando que eles próprios são, no fundo, o mais interessante e irresistível personagem que poderiam vir a representar.

terça-feira, setembro 25, 2007

Dez mandamentos e uma conclusão

Faço aqui uma pequena compilação de alguns dos principais conselhos dados por uma série de especialistas que se dizem interessados na melhoria da nossa qualidade de vida. Pensei muito sobre eles nos últimos dias e cheguei a uma conclusão que vou divulgar no fim deste post. Espero que vocês tenham paciência para chegar até lá. São conselhos curtos e práticos, talvez valha mesmo a pena dar uma olhadinha:

1) Aprenda a se valorizar e comece a fazer apenas o que você realmente sente vontade de fazer;

2) Atenda apenas aos chamados que você julgar realmente interessantes e jamais saia do seu canto apenas para deixar alguém feliz;

3) Tenha plena consciência do seu território e dos seus domínios. Não aceite que invadam seu espaço e nem ceda para outra pessoa o lugar que você conquistou por merecimento;

4) Cultive e explore a sua vaidade sem culpa. Você tem de ser o primeiro a se achar belo e irresistível - se conseguir, os outros concordarão com você;

5) Encare o sexo sem culpa e o pratique todas as vezes em que sentir vontade. Não se intimide se o ruído de suas relações sexuais acordar os vizinhos. Afinal, gritar de prazer é muito melhor do que gritar de dor;

6) Jamais descuide de sua forma física. Faça alongamentos várias vezes por dia. Nunca se levante sem dar uma boa espreguiçada, boceje à vontade e cultive seu direito à preguiça;

7) Faça pequenas refeições várias vezes por dia. O seu metabolismo vai ficar mais rápido e as chances de engordar serão mínimas;

8) Procure cochilar sempre depois das refeições. Isso aumentará sua disposição e será essencial para a sua longevidade;

9) Redobre sua atenção durante a noite, que é quando os perigos são maiores;

10) Aprenda a se valorizar acima de tudo e de todos. Aceite, sem remorsos, o fato de que você é o ser mais importante do mundo.

Agora, minha conclusão: se você conseguir seguir à risca todos estes mandamentos, parabéns - você deixou de ser uma pessoa e se transformou num gato. Todos estes mandamentos, que podem ser encontrados de verdade em livros de auto-ajuda e revistas semanais, nada mais são do que o dia-a-dia do Pirulito e da Ritinha, meus dois gatinhos que, embora adorem dormir sobre jornais, revistas e o teclado do meu computador, continuam deliciosamente sábios e analfabetos. Exluindo o fato de que eles soltam muito mais pêlos que eu, no resto eles dão de dez a zero em mim. Miau pra todo mundo.