sexta-feira, agosto 29, 2008

Vidinha de uma nota só

Os amigos podem discordar de mim, e talvez até com certa razão, mas depois de toda esta enxurrada de notícias sobre João Gilberto, Roberto Carlos, Caetano Veloso, a estréia do filme Os Desafinados (que eu não vi e não gostei), depois de toda as manifestações de amor e ódio que estes artistas, sozinhos ou em parceira, provocaram no último mês, eu, de bom grado, digo aqui que passaria os próximos cinqüenta anos sem ouvir falar em bossa nova. O que era um movimento musical, e dos bons, cansou mais do que qualquer dança da boquinha da garrafa. A cada vez que abro os jornais e leio, de novo, uma linha que seja sobre Caetano, Roberto ou João Gilberto, juro que tenho vontade de colocar um CD do Guns, do Metallica ou do ACDC para tocar bem alto aqui em casa e desejar, do fundo do coração, que o banquinho quebre, que o violão desafine, que um arrastão leve até a calcinha da garota de Ipanema e que a tardinha vire uma tempestade de verão dessas de parar a cidade.

Há algumas semanas eu falei aqui sobre a atual falta de bom senso da imprensa, sobre a inacreditável ausência de sensibilidade dos editores e repórteres para perceber que determinado assunto cansou, sobre a mente provinciana e colonizada daqueles que ainda não perceberam (bateu saudade de Cazuza) que o tempo não pára e que o show de anteontem nada mais é do que o show de anteontem. A vida passa, a fila anda e, três semanas depois da apresentação de João Gilberto, não é mais relevante saber se sua chegada ao Ibirapuera com quase duas horas de atraso se deu porque ele estava jantando um bifinho ou uma saladinha, se ele comeu devagarzinho ou se engoliu rapidinho, se resolveu escovar o dentinho antes de sair do hotelzinho agora decrépito ou se pegou um transitinho no caminho, se estava bravinho ou de bom humorzinho.... Caralho, até quando?

Sabe o que parece, de verdade? Que somos um bando de alienados e desocupados que vivem numa corte de um país periférico, onde a nossa única diversão é passar o ano inteiro à espera de algum detalhe da vida de algum rei, seja ele da bossa nova, do pop ou do futebol. Ó, o rei está chegando! Caiamos todos de joelho, então. Ó, o rei não gosta de barulho! Interrompamos nossa respiração, então. Ó, o rei não gostou de ler que seu show foi criticado por dois jornalistas traidores do movimento de adoração incondicional à pessoa real! Ó, enviemos os dois jornalistas à guilhotina, então. O rei, afinal, tem de se sentir feliz ao ler os jornais matutinos, ainda que os mesmos jornais espalhem merda e tristeza sobre o resto da corte. Mas o rei, ao contrário de nós, o rei tem o rei na barriga e só consegue se alimentar de elogios. Conta outra.

Talvez eu esteja parecendo irritado aqui, mas juro que não é só aparência, não. Desta vez é irritação em estado bruto mesmo. Outro exemplo? Madonna! A diva do pop vai se apresentar em São Paulo no dia 18 de dezembro, ou seja daqui a três meses. Pergunto: quem aqui ainda agüenta ouvir falar neste show de Madonna? E tem mais: a sandice ainda nem começou. Vocês vão ver o noticiário sobre a venda dos ingressos, que começa semana que vem. Daqui até dezembro os cadernos culturais não terão outro assunto, querem apostar? Já sabemos tudo que ela vai cantar, todos os seus movimentos foram cientificamente cronometrados, sabemos a ordem das canções, em que momento ela vai trocar de roupa, sabemos quem são os músicos que a acompanham, sabemos quanto custa o ingresso em cada parada de sua turnê mundial e iremos ser informados, até o dia do show, provavelmente sobre a grife da calcinha que ela vai usar. Nada mais de surpresa, nada mais de novidade, nada mais de excitação, nada mais de descoberta, nada mais de sair de casa sem saber o que nos aguarda. O mundo decretou a morte do imprevisto e do sobressalto. Já sabemos, em agosto, o que iremos ganhar de natal, quanto custou, onde foi comprado, em quantas vezes nosso presente foi parcelado e até a cor do papel em que ele virá embalado. Então eu pergunto de novo: que graça tem ganhar presente assim tão mastigado?

Para finalizar: alguém precisa dar um toque para o Caetano Veloso que um artista que chegou aonde ele chegou, que canta como ele canta e que, acima de tudo, que compõe tantas obras primas em escala quase industrial, não precisa, mesmo, perder suas preciosas horas de sono para responder críticas de jornalistas. Até artista em início de carreira já aprendeu a evitar estas armadilhas. E, ainda que as queira responder, o que não deixa de ser um direito seu, chamar jornalistas de bocó, burro, bobo e feio, realmente não condiz com a elegância de sua obra. Tão genial... e tão tolinho! Chega a dar pena. Perguntem se Roberto Carlos deu bola para o que escreveram do show. Este rei, ao menos, sabe que a indiferença é a suprema prova da realeza.

quarta-feira, agosto 27, 2008

Com 200 pilas na bolso, mas entubado

O telefone toca por volta das quatro da tarde. Dou uma olhadinha naquele aparelhinho milagroso chamado ‘detecta” e não reconheço o número. Aquela série de “zeros” no final indicava que não era nenhum amigo ligando: devia ser do banco, da seguradora, algo do tipo. Atendi. Era um rapaz chamado James, que me chamou pelo nome completo. Pensei: roubada na certa.
Ele era da administradora do meu cartão de crédito e, logo após se apresentar, disse que estava ligando, em primeiro lugar, para me cumprimentar “pelo histórico de ótimo relacionamento que eu mantinha com a administradora do cartão”.

Eu disse que possuía aquele cartão há menos de dois meses, período em que paguei uma única fatura. Assim, minha ótima relação com o cartão de crédito estava ainda na fase do aperto de mão. Mas ele não se abalou. Como nenhum desses atendentes se abalam: você pode dizer que seu prédio está desabando, que você está com uma arma apontada para a cabeça ou que você nem é a pessoa que eles estão procurando pois nada disso faz diferença mesmo. A partir do momento em que eles ouvem “alô”, eles não conseguem parar até terminar tudo o que têm a dizer.

Pois bem, o James ligou para me oferecer uma espécie de seguro-saúde. Digo “uma espécie de” porque não era um seguro-saúde convencional, ele me explicou. Vou tentar reproduzir o diálogo.

- Senhor, o nosso cartão se associou a um grande banco nacional e agora está oferecendo ao senhor uma espécie de seguro-saúde que entra em vigor a partir da meia-noite de hoje...
- James, eu tento dizer, muito obrigado, mas eu já possuo seguro-saúde.
- Mas este é diferente, senhor – ele me explica. – Este começa a vigorar a partir da meia-noite de hoje. Se o senhor for internado, a cada dia no hospital o senhor irá receber cem reais, depositados em sua conta.
- Olha, James, não estou mesmo interessado.
James, é claro, não olha e nem ouve.
- No entanto, senhor, esta quantia de cem reais diários pode dobrar, isso mesmo, pode chegar a duzentos reais se a internação for na UTI.
- James, eu digo agora mais impaciente, é que eu não vejo o que fazer com duzentos reais por dia se eu estiver internado numa UTI. Acho que uma UTI é o último lugar em que eu vou poder gastar seus duzentos reais.
- O senhor costuma viajar para o Exterior?, ele me perguntou.
- Muito menos do que eu gostaria, eu disse.
- Porque este convênio também cobre viagens ao Exterior. Se o senhor precisar de internação lá fora, até o limite de....
Tentei, mais uma vez, argumentar que eu não queria mesmo dispor daquele serviço...
- Mas o senhor está recusando mesmo antes de saber o quanto custa, ele falou. Custa apenas 26 reais por mês e a partir da meia-noite de hoje, se o senhor for internado, vai receber cem reais por dia de internação, até o limite de....
- James, muito obrigado e tenha uma boa tarde.
- Duzentos reais em caso de UTI, senhor, a partir da meia-noite...
Desliguei o telefone e tudo me leva a crer que James demorou um tempão para perceber isso também.

terça-feira, agosto 26, 2008

Todos os santos do seu Armando

Seu Armando usava sempre camisa xadrez de mangas compridas, calça de tergal, óculos de armação marrom e sandálias de couro com meias pretas. Era um figurino que o deixava eternamente velho, a ponto de eu acreditar que seu Armando talvez já tivesse nascido velho. Uma idéia parecida com aquela que fazemos dos nossos pais quando somos crianças: eles também sempre foram velhos. Eu via seu Armando nas manhãs de domingo, nas aulas de catecismo. Talvez eu o visse outras vezes também, já que ele morava a duas quadras da igreja e era provável que circulasse muito pelo bairro. Mas, na minha memória, seu Armando aparece apenas ao pé do altar, rodeado de imagens de santos e de velas acesas.

Seu Armando representava para aquele bando de garotos conduzidos à força aos mistérios da religião o que talvez os computadores e os games representam para a garotada de hoje: ele era o nosso portal para um mundo antigo, habitado por santos crucificados de cabeça para baixo, por mulheres queimadas, por mártires conduzidos à eternidade nas pontas das lanças ou em tonéis de óleo fervente. Por fiéis que foram mutilados, decapitados, cegados e apartados de sua família só porque defendiam aquela mesma fé à qual estávamos sendo apresentados naquelas manhãs de domingo. Passávamos duas horas extasiados diante de seu Armando, o nosso cicerone por aquela Viagem ao Centro da Terra dos Católicos.

Ninguém sabia descrever os milagres dos santos com tanta devoção quanto seu Armando. Como ele já parecia mesmo muito velho, talvez eu acreditasse que ele tivesse sido testemunha ocular daqueles dias em que leprosos levantavam de suas tumbas, em que peixes punham a cabeça para fora dos lagos para ouvir as pregações, dias em que a água virava vinho e os pães se multiplicavam. Nada nos impressionava mais do que saber que todos aqueles santos, cujos corpos haviam sofrido as maiores barbáries em vida, se mostravam impressionantemente intactos quando desenterrados. Este era, aliás, o maior gozo de seu Armando: ver em nossos rostos de moleques a certeza de que a carne sobreviveria ao tempo. Ao menos no caso dos santos – nós, pecadores em potencial, aguardaríamos a eternidade espremidos e misturados em um ossário qualquer.

À medida que se aproximava o dia de nossa primeira comunhão, seu Armando ia também, aos poucos, nos conduzindo às trevas do pecado. Não havia mais lugar para episódios bíblicos e nem para santos aventureiros. Todos nós éramos convidados a pensar no que havíamos feito de errado em nossa até então curta passagem sobre a Terra. O momento da nossa confissão se aproximava e tínhamos cada vez menos dias para nos arrepender. Quando, enfim, chegamos a um consenso sobre o que era o pecado, nossa missão era descobrir de que maneira ele se imiscuía em nossa vida diária.

Faltando dois dias para a confissão, eu andava desesperado. Não conseguia pensar em algo absolutamente abjeto para dizer ao padre quando a cortininha do confessionário se abrisse. Diante de todos aqueles sanguinários que seu Armando havia nos apresentado, gente que mandava matar legiões de crianças e crucificar os eleitos, nada do que fazíamos parecia ser suficientemente hediondo. Cansado de procurar por grandes maldades em mim, perguntei a minha mãe o que eu devia confessar no dia seguinte. Ela pensou um bocado e, talvez para se livrar de mim naquela hora, mandou eu dizer ao padre que eu deixava restos de comida no prato, jogava café com leite na pia quando não queria mais e deixava a tevê muito tempo ligada, mesmo quando não tinha ninguém na sala.

Achei a lista muito oportuna e foi o que eu disse ao padre em minha primeira confissão. Ele ouviu atentamente, pediu para que eu nunca mais fizesse aquilo e que rezasse três pai-nosso e três ave Maria que Deus me perdoaria. Descobri, depois, que todos os alunos do catecismo tinham recebido a mesmíssima penitência. E fiquei feliz ao sentir que todos nós éramos pecadores do mesmo nível.

Hoje eu perdôo o seu Armando por ter colocado em tantas cabecinhas aquela baboseira toda a respeito do pecado. No fundo, como disse o profeta que ele adorou fervorosamente pela vida inteira, ele também não sabia o que estava fazendo.

quarta-feira, agosto 20, 2008

A minha muralha da China

Como não tenho visto quase nada das Olimpíadas, confesso que ando meio sem assunto nos últimos dias. Chego à academia de ginástica por volta das dez da manhã e todo mundo está comentando o resultado de alguma competição que eu nem sabia que tinha sido disputada. Os instrutores dão um jeitinho, a cada dois minutos, de correr até o computador instalado no escritório para acompanhar os tempos, os fracassos e as glórias de uma porção de atletas que eu, humildemente, assumo que nunca ouvi falar. E eu fico lá, feliz da vida esquecido num canto, olhando para a esteira, os pedais da bicicleta e um ou outro halteres sem a mínima intenção de superar ninguém no que quer que seja.

E por falar em academia, aproveito para enviar um recado à legião de amigos que apostavam no meu sedentarismo eterno e irremediável: nesta quarta-feira, dia 20 de agosto, completei um ano de malhação quase diária. Não sei se alguma coisa em meu corpo melhorou, mas agora eu como meu brigadeiro e tomo meu potinho da Häagen Dasz sem aquela sensação de que estou transportando cocaína da Colômbia: as gordurinhas talvez não tenham ido todas embora, mas a culpa já foi. E isso foi a melhor coisa que a academia me trouxe. Se ainda não fiquei leve na cintura, minha cabeça anda que é uma pluma.

O que me irrita um pouco nestas Olimpíadas não é tanto o excesso de notícias sobre o evento, mas o tom ufanista com que a imprensa tenta nos convencer de que algo um pouco mais sério do que alguns milésimos de segundo está em jogo. Dorival Caymmi morreu no fim de semana e alguns sites da Internet insistiam em trazer como manchete o fato de uma atleta ter perdido a vara. Na minha cabeça, o país tinha perdido um dos seus compositores mais importantes, um homem que passou a vida a nos ensinar que o mar do Brasil não era apenas o mar do Leblon e que por trás de toda beleza do vaivém das ondas escondia-se uma melancolia sem fim. Havíamos perdido um homem que nos ensinou como podia ser elegante sentir alguma angústia num país tropical e chorar por algum amor perdido enquanto o barquinho vai e a tardinha cai. Mas, na cabeça de parte da imprensa, naquele dia havíamos perdido apenas uma vara.

Agora, insuportável mesmo é a quantidade de matérias, ao menos duas por dia em cada jornal grande, sobre o boom arquitetônico da China. Talvez eu esteja prestes a dizer uma grande besteira aqui, mas eu esperava um pouco mais de criatividade de uma civilização de cinco mil anos que, de repente, amanheceu endinheirada. Vejo todas as fotos daqueles edifícios novos e, se a legenda não me alertasse que se tratava de Pequim, eu facilmente diria que é Miami, Nova York, Tóquio ou qualquer outra metrópole do mundo. A impressão que tenho é de que a China está usando seus bilhões de dólares para se tornar parecida com alguma coisa que ela não é. O país está ficando com cara de alguma grande feira de arquitetura e hoje a vontade que eu tenho de conhecer a China é a mesma que tenho de passear pelo pavilhão de exposições do Anhembi: tudo me parece fake, repetitivo e com aquela sensação de que se a gente olhar por trás só vai encontrar etiqueta e uma indicação de “este lado para cima”.

A cobertura das Olimpíadas e do mega-crescimento chinês só reforça a minha tese pessoal de que o excesso mais afasta do que atrai. Houve uma época em que eu sentia uma vontade autêntica de conhecer a China – hoje o país ocupa, seguramente, um dos últimos postos na minha lista de lugares que ainda pretendo visitar. Quando me bater a vontade de alguma coisa daquele país, já decidi que vou almoçar num bufê por quilo de comida chinesa que fica ali na Rua Mourato Coelho: custa só 15 reais, a gente come à vontade, pode repetir a sobremesa e a dona ainda tenta falar português com um sotaque muito carregado. Sinto que é o mais perto que eu pretendo chegar da China nos próximos anos. Com a vantagem de ser muito mais barato também.

terça-feira, agosto 12, 2008

Passe adiante esta corrente

Sempre tive medo dessas correntes que chegam pela Internet. No início, elas até parecem simpáticas, mas invariavelmente terminam em tom de ameaça. Sinto que se eu não cumprir o que elas ordenam, como enviá-las para 12 amigos no prazo máximo de uma hora, alguma desgraça vai cair sobre a minha cabeça. Ainda assim, sempre poupei os amigos e nunca enviei corrente alguma.

Houve uma época em que as correntes chegavam pelo correio – e eram muito mais assustadoras do que agora. Lembro que elas citavam todas as mazelas que tinham vitimado os pobres coitados que ousaram interromper seu famigerado ciclo. Um homem que decidiu jogar a corrente fora viu sua padaria arder em chamas na mesma tarde; um outro homem que deve ter achado tudo aquilo uma grande bobagem e rasgou o envelope, perdeu a filha atropelada na manhã seguinte. Embora eu nunca tenha tido uma padaria e nem uma filha, eu morria de medo destas maldições. Eu sempre achava que, na falta da padaria e da filha, as chamas iam consumir qualquer outra coisa que eu tivesse. Apesar do medo, eu amassava o papel e jogava fora também.

Agora eu recebo correntes por e-mail e pelo orkut. Elas não trazem qualquer referência a prejuízos incalculáveis ao meu patrimônio físico, mas parece que vêm acompanhada de uma voz fininha que diz que eu vou me ferrar se eu não fizer tudo o que elas pedem, como rezar alguma oração esquisita, repassá-las para vários amigos ou estar atento ao relógio, pois algo de muito estranho, ou miraculoso, vai ocorrer pontualmente às 23h15 daquela noite. Antes de deletar tudo, humildemente eu já peço perdão a Deus se estiver cometendo algum pecado. Mas sei como são meus amigos: se eu enviar correntes para eles, sinto que eles jamais me perdoarão. Assim, se eu já contar com o perdão divino por antecipação, estarei no lucro.

Mas confesso que uma dessas correntes chamou minha atenção. Ela ensinava a gente a descobrir qual era o nosso anjo da guarda e que horário ele dava plantão ao nosso lado. Respondi a algumas questões e vi que meu anjo tinha um nome estranho, tipo Ezebiel, Guagamel, Xerafunel, sei lá, algo terminado em “el”. Não era privilégio do meu anjo, todos os outros também tinham nome parecido. Fiquei triste, no entanto, ao saber que o turno dele ao meu lado se estendia das 5h15 da manhã até mais ou menos 06h45. Há alguns anos, quando eu era mais baladeiro, eu costumava estar acordado a esta hora e devia ser bom ter um anjo por perto quando a gente voltava bêbado para casa. Mas hoje é muito provável que eu esteja quietinho na cama a esta hora, mais seguro impossível. Assim, não devo dar muito trabalho ao meu anjo da guarda. Por via das dúvidas, passei a dormir com um travesseiro extra na cama. Se ele resolver tirar um cochilinho comigo, que seja bem-vindo. Mas já combinei com ele: nada de enfiar aquela asa cheia de pena no meu nariz. Tudo bem que eu não obedeço as correntes, mas também não preciso acordar espirrando por causa disso.

Se você resolver passar este post para dez amigos, fique de olho no relógio por volta das 23h30 de hoje: eu prometo que, se não houver atraso, neste horário deve começar o Jornal da Globo. É o máximo de milagre que eu consigo fazer.

terça-feira, agosto 05, 2008

O Encontro

Quando li as primeiras críticas do livro O Encontro, da irlandesa Anne Enright, pensei por um momento estar diante de uma nova versão de Reparação, clássico do inglês Ian McEwan. A princípio, as duas obras pareciam tratar de um tema semelhante: a culpa que se carrega por um erro cometido na infância, dentro do ambiente familiar. Ainda assim, comprei o livro e comecei a me entregar a ele nesta semana. Para minha felicidade, são histórias completamente diferentes, escritas por autores cujos estilos nem de longe se cumprimentam. McEwan é deliciosamente metódico e detalhista, enquanto que Enright parece escrever com certa pressa, quase uma blogueira a terminar seu artigo às pressas antes que caia a conexão. O que não tira a força de suas imagens e nem a melancolia das divagações de Veronica, a personagem principal que sofre de insônia e ronda pela casa como um fantasma domesticado. Aqui vai um exemplo da sua prosa, extraída da página 29 do livro:

"...E o que me deixa surpresa ao chegar à via expressa não é o fato de que todo mundo perde alguém, mas que todo mundo ama alguém. Parece uma perda tão maciça de energia; e nós todos fazemos isso, todas as pessoas rodando pelas faixas brancas, a se intercalar, convergir, ultrapassar. Cada um de nós ama alguém, mesmo sabendo que eles vão morrer. E continuamos amando, mesmo quando não estão mais lá prara a gente amar. E isso não tem nenhuma lógica, nenhuma utilidade, assim eu vejo".

domingo, agosto 03, 2008

As novas Giseles perderam seu arbusto

Há um quarteirão da rua Luminárias entre as ruas João Moura, onde eu moro, e a Heitor Penteado, que é praticamente minha ligação com o mundo: passo por ali todos os dias a pé para ir almoçar ou de carro para ir em qualquer canto da cidade, do banco à academia, do cinema ao supermercado. Neste quarteirão da Luminárias, que não chega a ter cem metros, fica a locadora onde eu alugo os filmes mais comerciais, já que cinema de arte não tem vez ali, e também uma oficina mecânica em que levei meu carro uma única vez. Nas últimas semanas, começou um movimento estranho neste quarteirão: um entra-e-sai de pedreiros encarregados, aparentemente, de produzir uma grande reforma num velho prédio pegado à oficina. Notei que eles não deviam estar fazendo nada convencional por ali quando começaram a instalar lâmpadas na calçada e dar um acabamento muito rústico ao prédio.

Depois começaram a surgir uns tipos que provocariam curiosidade em outros locais da cidade, mas não muito na Vila Madalena: gente de cabelo colorido e de cortes geométricos, roupas modernosas e cheias de atitude. Houve uma época em que atitude queria dizer iniciativa ou algum tipo de comportamento decisivo. Aprendi agora, lendo algumas matérias de moda e observando meus novos vizinhos, que atitude nada mais é do que acreditar que se está abafando dentro de roupas ridículas e se sentir desobrigado a dizer bom dia ou simplesmente um alô para qualquer um que cruze pelo caminho. É mirar um ponto em algum lugar do horizonte e caminhar em direção a ele como se não houvesse mais ninguém no mundo. E, quanto mais desengonçado for este caminhar, mais cheia de atitude será a pessoa em questão. À esta altura, vocês já devem ter imaginado que tipo de atividade resultou da reforma no velho prédio: uma agência de modelos.

Como ando muito a pé pelo bairro, sempre dou um jeitinho de entrar nos lugares novos. Às vezes, pergunto para os pedreiros no que eles estão trabalhando. Assim eu soube, por exemplo, que seria aberta uma cantina italiana na rua Original bem antes da inauguração, como também já descobri que de uma grande reforma em andamento na rua Jericó nascerá um novo bar. Mais um na Vila. Sempre senti vontade de conhecer uma agência de modelos, mas não tive coragem de bater na porta e pedir para visitar as instalações, algo me diz que eu não seria bem-vindo ali. A porta está sempre fechada e isso, no fundo, me alivia. A cada vez que ela se abre, sempre acho que vai sair dali um Willy Wonka ainda sujo de sua fantástica fábrica de chocolate.

Nos últimos dias, começaram a chegar as clientes da agência: meninas que mal chegaram aos 14 anos, trazidas por mães que devem ver nelas as substitutas de Gisele Bundchen, ainda que algumas tenham umas pernotas tão roliças que qualquer editora de moda jogaria seus books no lixo. Mas elas chegam, aos montes. Às vezes, retocam a maquiagem sempre carregada na calçada mesmo, antes de tocar a campainha; há casos em que as mães, sempre as mães, dão uma última ajeitada no cabelo e nos lábios de suas futuras tops. E então, invariavelmente, um fotógrafo sai da agência, as recepciona ali mesmo, na calçada, e já começa a disparar os clicks. Se eu fosse uma daquelas meninas, morreria de vergonha de ser fotografado na calçada. Todo mundo pára pra ver, dos motoboys aos passageiros do ônibus da linha Barra Funda que passa bem em frente. Mas as meninas ficam impávidas, como se soubessem, no seu íntimo, que atrair todos os olhares do mundo é a missão que o futuro lhes reserva.

Depois dos clicks na calçada, o fotógrafo costuma levá-las meia quadra adiante, quando a Rua Luminárias cruza a João Moura. Ali, na esquina, há um muro revestido de trepadeiras e um arbusto bem encorpado que deve fazer as vezes de floresta tropical para as garotas: elas se enroscam nos galhos e nas folhagens e são fotografadas como se estivessem em uma paisagem aventureira da Nova Zelândia. Todas as poses são exatamente iguais e o fotógrafo parece não se importar com o fato de estar produzindo books idênticos: meninas magras com o rosto semi-coberto por folhagens empoeiradas.

Pois bem: neste fim de semana um caminhão da prefeitura estacionou naquela esquina, arrancou a trepadeira dos muros e podou o arbusto, que agora se parece com duas perninhas de flamingo, secas e esqueléticas. Nesta segunda-feira, quando chegar para trabalhar, o fotógrafo vai levar um susto: seu cenário foi impiedosamente destruído. Nenhum rostinho angelical poderá ser mais misturado à trepadeira que avançava pelo muro com apetite descomunal. Nenhuma menina poderá, a partir de agora, esconder suas perninhas gordas atrás daquele arbusto tão simpático... Ah, esta prefeitura, sem saber, cortou pela raiz o sonho de muitas top models. Ô, judiação.

sexta-feira, agosto 01, 2008

Poço sem fundo

Há coisa de um mês mais ou menos, eu comentei com um amigo que não agüentava mais ler nenhuma notícia sobre os cem anos da imigração japonesa. Eu tinha me cansado de todos aqueles casos, ainda que muito interessantes e emocionados, de gente que tinha atravessado um oceano para construir a vida por aqui. O amigo concordou comigo. Algumas semanas depois, ele me disse que também não agüentava ler mais nada sobre a venda da Varig e a operação Satiagraha.

Confesso que fico um pouco preocupado com este cansaço tamanho que as notícias nos provocam. As Olimpíadas de Pequim ainda nem começaram e eu juro que não tenho mais paciência para ler uma linha sequer sobre os jogos: já estou exausto dos chineses, do seu aeroporto monumental, do tal estádio que lembra um ninho de pássaro, dos índices de poluição do país, dos hábitos e curiosidades daquela sociedade milenar. Por alguma estranha razão, tudo já chega com gosto de requentado, até mesmo as provas que nem foram realizadas ainda.

Lembro de ter lido, há pouco tempo, que graças à Internet, nos últimos cinco anos foi produzida a mesma quantidade de informação dos últimos 50 anos. Ou seja: de 2003 até agora já acumulamos praticamente a mesma quantidade de dados que se produziu desde o fim da Segunda Guerra. Talvez esta seja uma boa explicação para nos cansarmos de tantas notícias – como o bom Caetano Veloso já profetizou lá atrás.

Mas eu desconfio que não seja só isso, não. O que nos incomoda não é tanto a quantidade: nós ficamos viciados em novidades. Como o mundo está pródigo de assuntos, não há nada que consiga manter o nosso interesse verdadeiro por mais de três dias. Crianças podem ser atiradas pelas janelas, arrastadas por carros, policiais podem metralhar inocentes, figurões podem ser presos, nada disso serve para aplacar a estranha sede (ou apetite) que nós desenvolvemos. Vamos querer sempre mais, não mais do mesmo, e sim uma nova tragédia para que tenhamos assunto na hora do almoço.

Alugamos um filme na locadora e o exibimos em velocidade acelerada para chegar logo ao fim, não vamos mais ao teatro se a peça tem mais de uma hora e meia, trocamos o telefonema para o amigo por uma mensagem de texto, tudo tem de ser rápido para que a gente ganhe uma dose extra de tempo – e depois não sabemos o que fazer com este tempo que nos sobra, que às vezes chega a ser mais dolorido do que o próprio estresse.

Tenho medo de que um dia passemos a exigir dos nossos amigos e companheiros esta mesma compulsão por novidades que exigimos do mundo: uma amizade de três anos talvez já se mostre obsoleta, um relacionamento de cinco, então, já merece cadeira elétrica. Afinal, ninguém terá condições de se renovar com a mesma velocidade de uma página de rosto de um site qualquer. E tudo, então, nos terá gosto de velho.

Pensei nisso porque acabo de receber uma propaganda de uma empresa de eventos, alertando que ainda restam poucas datas para as comemorações de fim de ano em seu salão de festas. Estamos no dia primeiro de agosto e já senti a tristeza do Natal chegando. Olho ao meu redor e sinto falta de um freio de mão qualquer. Ainda que a freada seja busca e eu dê com a cara no vidro, sinto que vale a pena diminuir um pouco a velocidade. Mesmo que seja só para ver a paisagem que passa rápido ao meu redor, embaralhando minha vista e meus sentimentos.