quarta-feira, dezembro 24, 2008

Pianinho

Amigos, para não ser diferente dos jornais, das revistas, da televisão e da própria época do ano, este blog não trará nada de novo pelos próximos 15 dias. No início de janeiro a gente promete voltar. Não sei se trazendo alguma coisa nova, mas que a gente volta, isso volta.
Beijão a todos e até o início de janeiro!!

segunda-feira, dezembro 22, 2008

Desejos

Nunca gostei muito de usar esta época do ano para fazer planos e balanços, embora tudo pareça nos conduzir a isso. Sou um pouco avesso aos planos porque, por mais que eles se mostrem sólidos, a vida é insubordinada demais para respeitar nossos acertos prévios – um ventinho de nada já basta para desestabilizar a bússola do nosso destino. Quanto aos balanços, ainda que esta idéia se revele uma ode ao conformismo, eu prefiro pensar que fiz o que foi possível fazer dentro das condições que eu encontrei. Tento não imaginar como seriam as coisas se eu tivesse tomado algumas decisões diferentes daquelas que tomei – de todos os sofrimentos inúteis, este parece ser, de longe, também o mais desprezível. As coisas foram como foram e ponto final - e o fato indiscutível de que sobrevivemos a todas elas talvez indique algumas vitórias pelo caminho. Muitos arranhões também, mas acredito que ninguém conheça a vida a não ser desta maneira.

Se eu tivesse, como numa espécie de jogo, de abrir uma exceção e revelar um projeto para 2009 e todos os anos que se seguirão a ele, na esperança de que estaremos aqui para acompanhá-los, eu diria que gostaria de fugir da sedução fácil – daquilo que se mostra prazeroso embora saibamos, desde o princípio, que é ali que mora o perigo. Se eu fosse fumante, poderia dizer, por exemplo, que este vilão travestido de mocinho era o cigarro. Seria até mais fácil. Como não fumo e não me drogo, meu veneno é outro. E acredito que todos saibam do que estou falando, porque cada um de nós cultiva com carinho e apego o seu próprio veneno, sabe onde guardá-lo e como consumi-lo de forma a se embriagar sem necessariamente morrer – ao menos a morte literal. E sabe, também, que nome dar a ele, ao seu veneno particular.

Talvez este fosse o meu desejo para 2009: na impossibilidade de evitar o veneno, que eu aprendesse ao menos a conviver ou controlar a ressaca que ele produz. Ou, num plano um pouco mais modesto – e conseqüentemente mais humano – que eu jamais me esquecesse de que viver é sempre brincar com fogo. Em outras palavras ainda: de que a cada manhã, antes de qualquer outra coisa, nós acordamos para dar bom dia à ilusão.

Então, para mim mesmo e para todos aqueles que acompanharam meus devaneios ao longo deste ano, encontrei um verdadeiro e real desejo para 2009: que a ilusão nos dê um bom dia como resposta.

Feliz 2009 para todo mundo!

quarta-feira, dezembro 17, 2008

A estrela que bate ponto

Apesar da generosa oferta de ingressos – somente nesta última semana recebi três e-mails de amigos interessados em vender seus bilhetes – é muito provável que eu não vá assistir ao show da Madonna. Continuo gostando muito dela, bem menos do que nos anos 90, é verdade, mas já não é uma admiração que me estimule a enfrentar a espera e o provável caos em frente aos portões do Morumbi. Tenho um amigo que vem do Recife apenas para ver o show, outros me avisam que estão vindo do interior do Estado com a mesma e única finalidade. Penso neles e me pergunto em que momento minha preguiça se tornou maior que meu entusiasmo. Só de imaginar o trânsito a caminho do estádio e as horas que terei de ficar em pé no gramado até que a cantora surja majestosa em seu trono, já me dá uma vontade louca de me jogar no sofá e ver quem a Flora vai matar no capítulo de hoje de A Favorita. Eu sei que talvez eu tenha ficado um pouco velho e careta. Mas, ao ler tudo que está saindo na mídia sobre Madonna, me conformo em saber que ela, a tal rainha do pop, também anda careta e muito mais metódica do que eu.

Creio que ninguém simbolize melhor a nossa época, uma época de riscos calculados e transgressões com hora marcada, do que Madonna. Ninguém como ela sabe se expor tanto e, ao mesmo tempo, se manter tão segura e protegida. Madonna é aquela criança que só aceita descer pelo escorregador se os pais estiverem ali embaixo para ampará-la na queda. Ela jamais vai se esfolar à toa. Leio nos jornais que ela não gosta de surpresas, que nada foge ao seu controle, que ninguém pode se aproximar dela sem sua autorização mais do que prévia, que ninguém pode cumprimentá-la antes que ela o faça, que ninguém a toca, que ninguém a vê, que ninguém a saúda com um tipicamente brasileiro tapinha nas costas. Vocês se lembram de um filme em que John Travolta interpretava um menino que vivia dentro de uma bolha? Pois então: o menino cresceu, aprendeu a cantar (nem tão bem quanto Amy Winehouse, esta sim uma louca das boas), pintou o cabelo, virou mulher e deu à luz Madonna. Mais que uma cantora e uma performer genial, Madonna é a executiva bem-sucedida que todos nós invejamos.

O palco, para ela, deve ser o terreno da catarse de uma vida extremamente regrada. Ali, naquelas duas horas e debaixo de todos os holofotes, ela faz tudo o que não se permite fazer à luz do dia. O controle rígido e absoluto sobre sua carreira e seus passos foi a fórmula que ela encontrou para sobreviver ao mito que ela própria criou: Billie Holiday, Janis Joplin, Maria Callas, Elis Regina, Marilyn Monroe e Piaf, só para ficar nos nomes que me vêm de pronto à mente, sucumbiram por muito menos que ela. Sábia e astuta, Madonna se fortalece justamente com aquilo que as outras pareciam ter de mais frágil – a imagem da mulher solitária e de infância pobre que, graças a uma combinação extraordinária de talento e carisma, de repente se viu no centro do mundo. E não teve força de peitar a imagem que o espelho lhe devolveu. Madonna, ao contrário, coloriu de vermelho-vivo os lábios desta imagem e, orgulhosa, exibiu o espelho para todo o planeta, dizendo em cada uma de suas músicas: vejam como eu sou bonita, gostosa e desejada. E, por ser tão convincente neste papel, há vinte anos estamos acreditando nela. Um gênio da raça!

Ficamos sabendo que a atual turnê de Madonna emprega três aviões – um para a equipe e os outros dois para cenários, figurinos e toda parafernália à disposição da diva. São mais de 200 pessoas envolvidas na produção – mas ela só fala com dez, desde sempre as mesmas dez. E, no palco, tem repetido os mesmíssimos movimentos e as mesmíssimas canções desde o primeiro show de Sticky & Sweet. Se está dando certo, é proibido mudar ou tocar. Madonna é a nossa Mona Lisa que vive protegida por um vidro à prova de balas. Este deve ser o preço de ser Madonna. Um preço que ela paga com a disciplina dos economistas e dos auxiliares de contabilidade. Apesar de toda fama, de toda fortuna e de todo sucesso, Madonna leva uma vida muito mais regrada e rotineira que a minha e a sua. O resto é pose.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

É Natal. Paciência!

Uma cena impressionante deve ter chamado a atenção de quem passou (ou tentou passar) pela região da Avenida Paulista à meia-noite do último sábado: um congestionamento gigante, desses que a cidade registra somente em dias de tempestades ou acidentes sérios, se estendia da região do Shopping Paulista até o fim da Avenida Doutor Arnaldo. Eram quilômetros e quilômetros de carros parados num dia e num horário em que o trânsito naquela região deveria estar fluindo bem. Se fosse a chuva a causar tamanho transtorno, até que não seria assim tão ruim. Assim que as águas baixassem, a gente voltaria a circular normalmente pelas ruas. Mas a causa desta chatice toda deve durar muito mais que os dilúvios bíblicos – tudo estava parado em função daquela decoração natalina de gosto sempre duvidoso que atrai milhares de pessoas embevecidas diante de um repetitivo festival de acende-e-apaga e de imagens de papai Noel com a pança eternamente sacolejante.

Uma amiga me contou que, no mesmo sábado à noite, levou 45 minutos para cruzar a Paulista de ônibus, do prédio do Sesc até o Conjunto Nacional – um trajeto que não levaria mais de cinco minutos em uma noite normal. Segundo ela, depois de um tempão parado na esquina da Paulista com a Brigadeiro, o motorista do ônibus levou as duas mãos à cabeça e desabafou talvez para si próprio: “A gente não merece isso. Durante o dia, a gente até agüenta, mas à meia-noite não é justo”, disse ele. Hoje de manhã, na academia, ouço uma pediatra dizer que gastou uma hora e meia de Perdizes, bairro em que mora, até o Paraíso, onde um bebê estourando de febre esperava por uma consulta de emergência.

E então eu me pergunto: será que o tal espírito de Natal merece este sacrifício por parte de milhares de pessoas que pretendem simplesmente se locomover na cidade e não estão, naquele exato momento, preocupadas em ver fachadas de banco iluminadas? Tenho a impressão de que, quando se vive em uma cidade de mais de dez milhões de habitantes, qualquer iniciativa que venha a representar, por um longo período de tempo, um obstáculo à livre circulação dos moradores, deve ser examinada com muita cautela. Não estou defendendo que a cidade permaneça às escuras nesta época em que, acredito eu, todo mundo anda atrás de alguma luz –na impossibilidade de ser interna, que nos seja dada pelo Banco Santander pelo menos. O problema é que esta decoração, criada talvez para encher os olhos dos paulistanos de um deleite cafona, está enchendo muito mais, mas muito mais, o nosso saco. Vivemos em uma cidade em que já não se anda durante o dia – e agora somos impedidos de andar por um mês durante as noites também. Não há paciência natalina que resista a isso.

Eu ainda consigo evitar esta pentelhação: vou à Paulista de metrô ou simplesmente deixo de ir. Mas imagino a situação de quem tem na avenida o seu caminho de volta para casa, quem mora ali ou precisa ir, por exemplo, aos hospitais da região. Estas pessoas devem estar odiando esta época muito mais do que eu. Quando eu vejo este caos na Paulista e depois me recordo que os flanelinhas estão agindo impunemente na região central da cidade, cobrando quatro reais por hora dos motoristas que deixam o carro na rua, sob as barbas da Polícia, tenho de admitir que, infelizmente, para nós paulistanos, o Natal está se transformando numa festa de bárbaros.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Teste de paternidade

Eu tenho acompanhado com muita curiosidade, nos últimos dias, o animado debate entre criacionismo e teoria da evolução alimentado pelos leitores do jornal Folha de S. Paulo. Acredito que não exista em qualquer veículo de mídia impressa um espaço, como a seção de cartas, em que a gente possa ter uma noção precisa sobre como anda a cabeça das pessoas. Os editoriais representam a opinião dos patrões, os articulistas falam por si próprios; sobram, então, as cartas enviadas por leitores pacientes que nos ajudam a traduzir um pouco o mundo. E, há dez dias, leitores enfurecidos e irônicos estão subsidiando uma guerra santa entre aqueles que acreditam que o homem surgiu a partir do sopro divino em um molde de barro e os que acham que o topo da nossa árvore genealógica deve estar reservado para um sorridente macacão africano.

No sábado, um leitor provavelmente pouco apaixonado pelos estudos de Darwin disse que enquanto não nascer um pato a partir de um ovo de galinha ou uma macaquinha não parir um ser humano, ele vai continuar acreditando que foi feito por Deus, à sua imagem e semelhança. Da minha parte, se este for o preço para que ele se converta ao darwinismo, eu torço para que ele continue com sua fé divina – o mundo já está caduco demais sem que patinhos comecem a piar atrás de uma galinha confusa e de um galo com a pulga atrás da orelha. Até porque, pelo pouquíssimo que li a respeito de Darwin, ele diz que as espécies se aprimoram e a natureza se encarrega de fazer uma seleção natural, dando prioridade aos mais fortes e aptos, o que não quer dizer que galinhas se transmutem em patos e muito menos que crianças comecem a nascer nas selvas africanas paridas por macacas desorientadas. Isso soaria como uma hierarquia absurda.

Hoje um outro leitor, ao que me parece farto desta discussão, colocou no mesmo saco de suas queixas a quiromancia, anjos e homeopatia. Aposto que, a partir de amanhã e com razão, médicos e associações de homeopatas vão escrever protestando contra a carta deste leitor. É engraçado ver que uma discussão que começou lá atrás, com Adão e Eva de um lado e alguns macacos mais espertinhos do outro, tenha respingado na cabeça dos homeopatas, coitadinhos: eles fazem seis anos de medicina, mais dois de especialização para depois ver sua prática chamada nos jornais de “besteiras”. Ou seja: embora ninguém saiba de onde realmente tenha vindo, é bom não mexer com este lugar imaginário, que todo mundo fica puto. Parece um pouco brincadeira de criança: a minha mãe é santa, já a dos outros...

De minha parte, sem querer ofender ninguém, eu acho muito mais bacana acreditar que meu tatataravô tenha sido mesmo um macacão forte, exímio caçador e chefe de família exemplar, que cuidou bem da minha tatataravó grávida, protegeu-a do frio e da fome e tirou cuidadosamente os piolhinhos de todos aqueles macaquinhos que, milhares de anos e centenas de cruzamentos depois, deram origem a mim, que não sei caçar, mal consigo proteger a mim mesmo e, na hora da fome, visto um moletom e corro até a padaria da esquina para comer uma fatia de pizza de mussarela. Vendo a coisa por este lado, não sei se a espécie evoluiu muito, não.

Mas há algo que me agrada muito na teoria da evolução – é acreditar que nós estamos aqui por mérito. Que somos descendentes de uma linhagem de vitoriosos, antepassados hominídeos que seguramente enfrentaram desafios inimagináveis para perpetuar sua espécie no planeta. E, caso queiramos insistir na presença de Deus neste processo, melhor ainda: não parece haver nada mais divino do que amparar a nossa evolução, ser o grande arquiteto que aprimorou cada uma de suas pequenas criaturas, que permitiu que aquele primata que vivia em árvores e se equilibrava em cipós hoje domine a ciência, as artes e, ainda que se atrapalhe nas emoções, é a prova mais bem-acabada de que o tempo é um artesão insuperável. Deus, na minha modestíssima opinião, é isto. E não é pouco. E eu me orgulho muito mais de pertencer a esta família, numerosa, peluda e barulhenta, do que àquela outra, nascida de uma porção de barro e condenada a sofrer por toda eternidade porque um dia cedeu ao desejo e quis experimentar o proibido e o desconhecido.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Um vovô para toda a vida

As últimas frases do meu post anterior, sobre as dosagens de verdade e ilusão com as quais devemos administrar nossas vidas, me trouxeram à lembrança um fato ocorrido no ano de 2000, no município de Alcântara, que fica a uma hora de barco de São Luís, capital do Maranhão. Fui para lá em companhia do amigo Alberto Guzik, na época em que tínhamos tudo que hoje já nos parece pré-histórico: emprego fixo, carteira assinada, férias remuneradas, décimo-terceiro, seguro-saúde e dinheiro para viajar. Hoje eu troquei tudo isso (ou me vi obrigado a trocar) por realização profissional e saúde mental. Tento acreditar que estou no lucro. Mas às vezes é tão difícil...

Mas vamos ao que interessa. Os guias de turismo devem afirmar o contrário, mas Alcântara me pareceu uma cidade-fantasma – e, por isso mesmo, absolutamente fascinante. No que seria seu centro histórico, ergue-se o esqueleto de uma catedral que foi destruída pelas chamas. Alguns moradores dizem que um raio caiu ali e queimou tudo. Outros preferem contar uma história ainda mais interessante: segundo eles, nas noites de vento e chuva, é possível ouvir ali o lamento das almas dos escravos martirizados nos pelourinhos. Tudo em Alcântara, com exceção de uma base militar utilizada para pesquisas espaciais, parece remeter ao passado. Como um certo prédio azul e branco, exibido com um orgulho funesto, onde os escravos recém-trazidos da África eram obrigados a ficar enquanto não surgisse algum comprador interessado em seus dentes brancos e canelas finas. Com paredes impressionantemente grossas e janelas que mais se assemelham a frestas, o prédio deveria funcionar, aos olhos dos escravos, como uma ante-sala do inferno que estava à espera de cada um deles.

Embora a paisagem de Alcântara, marcada por seu casario colonial e suas cores fortes, seja deslumbrante, o sol nos obrigou a procurar abrigo no Museu Histórico de Alcântara – e só aqui este meu diário de bordo realmente começa. O guia do museu, um senhor magro de mais de 70 anos, ligeiramente curvado, nos recebeu com uma simpatia e um conhecimento histórico impressionantes. Além de trazer na mente toda a origem da cidade, ele era capaz de revelar os detalhes mais saborosos de cada um dos objetos expostos no museu – e eles mostravam-se às centenas, grandiosos ou desprezíveis. No entanto, era visível que, a todo momento, ele estivesse em busca de uma brecha para nos ditar sua própria história. O que só foi possível já no fim da visita.

Contou-nos, então, que ele era filho de uma próspera família maranhense, senhores de terra e de escravos. Talvez, se a memória não me trai, com algumas gotas de nobreza correndo em seu sangue. Estudara fora, dominava vários idiomas e havia escolhido Alcântara para viver em função de sua paixão pela história e sua extrema dedicação ao museu. Era um lorde bem-vestido e esquecido em meio a tanto calor e tantas lembranças. Sua única filha havia se casado com um astronauta americano, que durante algum tempo trabalhara no Centro Espacial de Alcântara, um dos melhores locais para lançamento de foguetes em todo hemisfério sul do planeta. Depois de algum tempo, o casal se mudou para Cabo Canaveral, na Flórida, onde funciona o Centro Espacial Kennedy, base de lançamento da maioria das espaçonaves americanas. E era ali que os netos do nosso simpático guia haviam nascido. Na época de baixa-estação, quando o movimento de turistas caía um pouco, ele se permitia deixar o museu nas mãos de algum assistente para passar algumas semanas em companhia da filha e dos netos. Se eu exigisse um pouco mais da memória, talvez desenterrasse um ou outro detalhe, mas por ora acredito que o que temos aqui já é suficiente.

Saímos do museu encantados com a história de vida daquele velho guia. Ele parecia ser a mais improvável das criaturas a habitar aquele lugar. E então um morador local, que ganhava alguns trocados exibindo as atrações da cidade, seguramente atraído por aquela expressão de êxtase em nossas caras, nos interpelou: “E aí, vocês também caíram na história do velho?” Antes que pudéssemos pensar em responder qualquer coisa, ele continuou com o disparo: “Tudo isso que ele conta é mentira. Ele nunca saiu de Alcântara, é um sujeito pobre. Ele e seu irmão gêmeo sempre viveram aqui. Nenhum dos dois nunca se casou e nem teve filhos”. Começamos a andar em direção ao barco que nos conduziria de volta a São Luís com a sensação de que a melhor, a mais bonita a mais invejável e bem-acabada de todas as histórias que tínhamos ouvido durante aqueles dez dias de férias no Maranhão não se sustentava mais nas pernas. Impiedoso, o morador ainda nos revelou, sordidamente, o mais desnecessário dos itens. “E olha, se vocês querem saber, nem de mulher ele gosta, viu?”

Hoje, quando eu me lembro do simpático velhinho do museu, eu prefiro imaginá-lo em Cabo Canaveral, conversando em um inglês fluente com seus netinhos no colo. E contando-lhes, aos netinhos de olhos e ouvidos curiosos como foram os nossos naquela tarde, de que nobre linhagem eles descendiam. Se foi este o personagem que ele decidiu criar para si, se foi esta a história de vida na qual ele se fez confortável, não me sinto, em momento algum, autorizado a duvidar de cada um dos pequenos sonhos e ilusões que tornaram suportável a existência daquele homem. Eram todos relatos lindos, perfeitos e absolutamente verossímeis. Não havia nada que pudesse desmontar sua vida imaginária, nenhuma peça que não se encaixasse naquele maravilhoso quebra-cabeça que ele deve ter levado 70 anos para montar. A não ser, é claro, o morador de Alcântara, a nos esperar do lado de fora do museu para nos dizer que tínhamos sido espectadores de uma mentira descomunal.

Mas aí, meu caro e bronzeado morador de Alcântara, já era tarde demais. O castelinho de areia no qual aquele homem havia hospedado as nossas mentes não seria mais destruído por você, nem por sua verdade antipática e nem mesmo pelas águas revoltosas e as ondas assustadoras que separam São Luís de Alcântara. Naquele momento, a ilusão já se mostrara imperiosamente vitoriosa. E dane-se se ele nunca saiu de Alcântara, se nunca foi rico ou nobre e se nunca se deitou com mulher nesta vida: os netinhos que ele criou para si não encontrariam, neste ou em outro hemisfério, um avô mais amoroso e sedutor que ele.

segunda-feira, dezembro 01, 2008

Jura dizer a verdade, nada mais que a verdade?

Na semana passada assisti a um episódio inédito da série House. Fazia vários meses que eu não via o programa e confesso que não sei nem em que temporada estamos. Percebi que algum tempo havia transcorrido a partir de duas observações: há novos personagens na trama e o doutor House está, se é que isto é possível, ainda mais irônico e incorreto. Sei que todo charme de House se deve justamente a isto, a esta sua aparente falta de compaixão pela dor alheia, embora faça tudo que esteja ao seu alcance para salvar seus pacientes ou, no mínimo, garantir-lhes alguma dignidade perto do fim. Penso que o personagem circula numa fronteira muito perigosa entre a coragem e o escárnio, entre a autenticidade e o deboche. Ao ver o programa, na última quinta-feira, senti que o doutor House perdeu um pouco de sua própria noção do perigo e corre o risco de se tornar – e me perdoem os admiradores da série, entre os quais me incluo – uma caricatura de si mesmo.

Porém, o que mais me atraiu naquele episódio específico não foi a faceta nebulosa da personalidade do médico, e sim a trama secundária que conduziu todo o programa. House parece ter contratado um detetive particular que descobriu vários detalhes sigilosos da vida dos outros médicos do hospital – e, de posse destes dados, ele poderia fazer algum tipo de chantagem mas, em vez disso, optou por um caminho ainda mais cruel: obrigou cada um dos colegas a se confrontar com aquela parcela da verdade que permanecia oculta a todos. E é sobre isso que eu não paro de pensar, desde o fim do programa. House passou o episódio todo acendendo luzes sobre aposentos que seus amigos insistiam em conservar no escuro.

Eu sinto que, caso a gente se debruçasse sobre este tema, talvez conseguisse escrever páginas e páginas a respeito desta zona nebulosa delimitada pela verdade de um lado e a hipocrisia do outro, e na qual circulamos durante muito tempo em nossas vidas. Talvez o resultado de tanta escrita não tivesse valor algum e não interessasse a ninguém, nem a mim mesmo. E é bem possível que eu não tenha um repertório filosófico avantajado para dar conta deste dilema, por isso me limito, aqui, a reproduzir a pergunta que não sai da minha cabeça: até que ponto conseguimos realmente lidar com a verdade? Ou melhor: a partir de que dosagem a verdade se configura numa droga com potencial para destruir ou ao menos dar um novo contorno àquilo que chamamos de cotidiano? Até que ponto, ou por quanto tempo, preferimos continuar com os olhos e ouvidos fechados para algumas coisas que parecem gritar à nossa frente? E, por fim, numa hipotética batalha final entre a verdade e a ilusão, de qual lado da arquibancada nós iremos nos sentar? Sempre ouvi dizer que a verdade liberta. Acredito nisso, talvez liberte mesmo. Mas então, finalmente libertos e donos do nosso próprio destino, o que faremos das nossas vidas e de todo tempo que nos resta? Eu confesso: tenho muito medo desta resposta. Será que precisamos, realmente, abandonar aquela ilusão que nos cega mas, ao mesmo tempo, nos alimenta com a nossa felicidade possível?

Este é, ao menos hoje, o ser ou não ser da minha vida. Há outros melhores, mas no momento este é o que eu tenho.

sexta-feira, novembro 28, 2008

Dá-lhe, Estradinha!

Há algum tempo um jovem ator me procurou em busca de um texto inédito para que ele pudesse estrear na direção. Eu já o conhecia por intermédio de amigos, embora nunca o tivesse visto em cena – até hoje ainda não vi. Logo após nosso primeiro contato, feito por e-mail, ele foi chamado a trabalhar em uma novela da Globo em um papel que, se me recordo bem, cresceu à medida que a trama avançou, a ponto de ele passar a ser reconhecido em filas, cinemas, essas coisas todas. Achei que nossa provável parceria, depois da entrada da televisão na história, tinha morrido ainda no berço. Eu me enganara. Assim que a novela terminou, ele voltou a morar em São Paulo e me procurou na semana seguinte.

Ele estava interessado em um texto inédito meu, para três personagens. No nosso primeiro encontro, ao vivo, ele já surgiu com uma série de propostas de direção – a utilização de projeções, sons externos, imagens gravadas, toda uma parafernália que talvez aproximasse um pouco o teatro do cinema. Eu achei a proposta curiosa, mas não batemos o martelo neste primeiro encontro. Até porque havia um grupo do Rio de Janeiro interessado no mesmo texto. E eu disse que queria ouvir as duas propostas antes de me decidir.

Algum tempo depois, fizemos um segundo encontro. E foi quando ele me falou do Estradinha. Estradinha é um gato macho, que a mulher dele encontrou abandonado à beira de uma estrada ainda filhote (não fiz a pergunta óbvia por acreditar que foi em função do local do encontro que o bicho recebeu este nome). A mulher dele recolheu o gato, o trouxe para casa e, no dia seguinte, seguiram os três para o veterinário: o filhote, o ator e sua mulher. A idéia do casal era deixar o gato para adoção. Depois de examiná-lo, a veterinária informou que ele estava com a espinha quebrada – uma lesão irreversível, talvez provocada por um atropelamento na estrada. Estradinha não recuperaria o movimento das patinhas traseiras, não controlaria o fluxo das fezes e, o que é pior, só seria capaz de urinar se alguém pressionasse sua barriga. “Ninguém vai adotar um gato nestas condições”, disse a veterinária. “Ou vocês ficam com ele ou ele já é um filhote fadado ao sacrifício”.

Eles levaram Estradinha para casa e, segundo o ator, o casal não se lembra de ter tomado uma atitude que lhes trouxe tanta felicidade na vida. Estradinha pula e corre usando só as patinhas da frente e, se não fosse por um requebro engraçado, passaria por um gato normal. Três vezes por dia eles massageiam a barriga do gatinho para que ele consiga urinar. E, para usar as próprias palavras do ator, Estradinha só fica “constrangido” quando faz coco na frente de estranhos. A exemplo de todos os outros gatos do mundo, ele se apressa em esconder as fezes. E utiliza para isso o que estiver à mão: uma camiseta, uma folha de jornal, um tapete, um pano de prato. Eles compraram um banheirinho de areia para Estradinha, mas como ele defeca involuntariamente, nunca dá tempo de chegar lá.

Desde a noite em que foi encontrado na estrada, Estradinha nunca mais passou um dia sequer longe do casal. Eles só viajam para lugares em que o gato pode ser levado, pois a tal massagem na barriga tem de ser feita a intervalos regulares, ou o gatinho sentirá dores horríveis em sua bexiga cheia.

Talvez algumas pessoas achem isso um absurdo, é bem provável. Tanto carinho e tanto trabalho com um simples gato. Mas, quando o ator acabou de me contar esta história, assim do nada, eu lhe disse: o texto é seu, pode montar. Eu nem quis ouvir a proposta dos cariocas. Se alguém cuida tão bem assim de um gatinho paralítico, com certeza vai cuidar do meu texto com muito carinho também. Valeu, Estradinha!

domingo, novembro 23, 2008

Um brinde ao silêncio

Não me lembro de outra época recente, como esta, em que eu tenha ido tão pouco ao cinema. Pela primeira vez em muitos anos, a Mostra de Cinema começou e terminou sem que eu tivesse dado muita importância – vi apenas cinco filmes, dos quais somente um valeu o ingresso. Os outros quatro eu não recomendaria nem aos inimigos. Talvez algumas pessoas até acreditem que cinco filmes representem uma boa média, mas para quem estava acostumado a ver algo em torno de 30, este ano foi realmente atípico. Então, no feriado da quinta-feira, decido parar mais cedo com o trabalho e me permitir alguns sustos com o filme Estranhos, que vi em uma sala do Shopping Frei Caneca. O filme foi incensado por parte da crítica e destruído por outra – sinto que houve exagero dos dois lados. Me pareceu um filme eficiente naquilo que se pretende – manter a platéia em um surpreendente estado de tensão, à espera do próximo calafrio – e que desaba apenas no final. Mas não é sobre o filme que queria falar aqui, e sim sobre o comportamento do público.

Havia poucas pessoas na sala sete, no piso superior. Sentei-me na penúltima fila, à frente de dois rapazes com seus infalíveis saquinhos de pipoca. Quando as luzes já estavam se apagando, entraram mais quatro caras. Dois sentaram-se na última fileira, atrás da minha poltrona, e os outros dois na fileira da frente. Vamos aos fatos, então: os dois rapazes que já estavam no cinema quando eu cheguei, conversaram do início ao fim do filme, perdidos em diálogos irritantes como: “olha, ela esqueceu o celular na mesa”, “nossa, o cara está saindo com o carro”, “meu Deus, estão batendo na porta”, “ai, eu vou fechar os olhos, depois você me conta”. Com suas vozes de pardais com sinusite, eles narravam o filme como se narra um jogo de futebol. Os outros dois, que também ocuparam a última fileira, deixaram o celular ligado e faziam algo como apagar ou enviar mensagens de texto, enquanto conversavam alegremente também. Até que, por não entenderem direito o que estavam fazendo ali, tiveram a decência de ir embora. E, por fim, dos dois que se sentaram à minha frente, um saiu da sala quatro vezes – não sei se por medo, para fazer xixi ou dar alguns telefonemas. Só sei que, a cada vez que voltava, informava ao companheiro como andava a vida fora do cinema.

Repito que Estranhos não passa de um filme mediano, mas me pergunto se eu conseguiria ter me concentrado mais ainda que estivesse diante de um Hitchcock inédito. Acredito que não. Eu realmente tenho uma curiosidade em saber o que determinadas pessoas vão fazer no cinema, já que não conseguem manter o celular desligado ou a boca fechada. Não seria mais simples, ou barato, se elas ficassem em casa, ou num barzinho ou andassem sem compromisso pelos corredores do shopping? O cinema, para quem não está interessado em ver o filme, não funciona como um ambiente que teoricamente cerceia outros tipos de manifestações, como telefonar ou falar alto? Então, por que entrar? Será que eles entram como uma forma pueril de transgredir alguma convenção social? Algo do tipo: vou deixar minha marca onde minha marca não é solicitada. Ou: vou me apoderar deste espaço público como me apodero da minha sala de estar, vou estender o meu domínio para além da região onde meu domínio realmente se instala. Ou, o que é ainda pior: vou deixar claro que a educação e a civilidade faliram e que os incomodados encontrem uma nova forma de submissão às exigências da arte. Porque o cinema agora é nosso, nós, os que estamos aqui para provar que as invasões bárbaras já não são mais apenas um título de filme, e sim o produto que temos a oferecer a vocês.

Na noite seguinte, sexta-feira, eu estava muito a fim de voltar ao cinema para ver A Duquesa. Então me lembrei de tudo que poderia estar à minha espera na sala, de todas as pipocas, os celulares e as conversas estúpidas durante o filme. Decidi, então, cruzar a rua de casa, entrar na locadora e alugar O Poderoso Chefão. Fiquei na frente da televisão até duas da manhã, me deliciando mais uma vez com aquele talento que parecia nem caber numa tela pequena. O telefone não tocou, não saí várias vezes para fazer xixi e, em um canto do sofá, o Pirulito e a Ritinha, os gatos que moram aqui em casa, dormiam tranqüilamente sem fazer qualquer ruído. Tive vontade de abrir um champanhe e fazer um brinde ao maravilhoso silêncio que, infelizmente, temos de ficar em casa para desfrutar. Tempos chatos, estes.

sexta-feira, novembro 14, 2008

Oinc-oinc-oinc

Hoje de manhã, quando me dirigia para uma reunião no Teatro dos Satyros, parei em um congestionamento na Avenida Doutor Arnaldo. Não haveria nenhuma novidade nisso se na minha frente estivesse um carro qualquer. Mas não. O obstáculo à frente era um caminhão com carroceria de madeira onde se lia: veículo usado para transporte de animais. Pelas fendas da carroceria pude ver que o caminhão transportava talvez uns 30 leitõezinhos que, me desculpem a vulgaridade da comparação, pareciam viajar tão felizes quanto crianças indo de excursão para o Playcenter. Um dos leitõezinhos se divertia (será que podemos empregar este verbo no caso de filhotes de porcos?) jogando feno para fora do caminhão e espreitando com seu focinho rosado o mar de carros à sua volta.

Sabendo em que época do ano estamos, ninguém precisa ser muito esperto para adivinhar qual era o destino dos porquinhos. Acredito que, enquanto escrevo este post, toda aquela alegria já tenha sido esquartejada, carimbada e embalada para decorar a nossa ceia de Natal. Talvez este post seja a coisa mais hipócrita que já escrevi por aqui, mas não me lembro, nos últimos tempos, de ter ficado tão doído diante de uma visão como a dos porquinhos brincalhões. E a hipocrisia se revela no fato de eu saber que, quando chegar o Natal ou outra ocasião ainda mais próxima, eu cairei com um apetite ancestral sobre um pedaço de leitão à pururuca.

Mas ali, enquanto o trânsito não fluía e eu era obrigado a encarar aquele macabro tour suíno pela Doutor Arnaldo, fiquei pensando na questão cultural e nos hábitos alimentares que permitem a nós, humanos, abrir nossas casas e nossos corações para cães e gatos, enquanto abrimos, para os filhotes de outras espécies, nossas bocas e os fornos de nossas cozinhas. Naqueles minutos, que pareceram uma eternidade, pensei em me tornar vegetariano – e sei que agora o meu grau de hipocrisia está atingindo níveis alarmantes. Talvez se eu fosse vegetariano eu pudesse aplacar a minha culpa dizendo que aqueles porquinhos não seriam sacrificados em meu nome. Mas nem este álibi eu tenho.

Esta história, acredito eu, não tem final feliz para ninguém. Os porquinhos já repousam no freezer e eu vou continuar me perguntando até quando meu paladar será saciado com carne e sangue de filhotinhos a quem nunca chamaremos de totó e bichano. E a quem não daremos colo e nem um pedacinho de nossa cama.

Para que a hipocrisia agora escorra pela tela do computador: meu almoço, três horas após me despedir dos porquinhos, foi filé à parmegiana. É tanta contradição, mas tanta contradição, que nem sei por que estou escrevendo isso.

quinta-feira, novembro 13, 2008

Saudosa maloca

Eu sinto que esta crise econômica está subvertendo os tradicionais conceitos sobre ricos e pobres neste país. Só isso mesmo para explicar as correspondências estranhas que eu ando recebendo nas últimas semanas. A maioria delas diz respeito a lançamentos imobiliários de altíssimo padrão em bairros como Alto de Pinheiros, Vila Nova Conceição e Morumbi. Assim que o porteiro me entrega as cartinhas, eu já me pergunto onde raios eles conseguiram meu nome completo e endereço para tentar me vender apartamentos na faixa de um milhão de reais, no mínimo. Se eu estivesse vivendo uma fase mais desocupada, iria até tirar proveito deste boom imobiliário, porque algumas corretoras oferecem uma taça de prosecco para quem for visitar as obras. Pensei comigo: se eu visitar uns quatro lançamentos por dia, já volto para casa calibrado e feliz. Daí é só jantar e pegar no sono.

Mas nada se compara ao que me chegou ontem pelo correio: um canudo preto, de mais ou menos 60 centímetros de comprimento, como se embalasse um diploma gigante, em cuja superfície constava apenas isso: Poéme Cidade Jardim, em letras brancas bem bonitinhas. Abri. Dentro dele, um belíssimo anúncio feito em papel vegetal tentava me vender um apartamento nababesco neste exclusivo edifício Poéme Cidade Jardim. O anúncio era tão bonito que li até o final. Transcrevo aqui algumas informações na esperança de poder ajudar a corretora que tem me tratado tão bem: é apenas um apartamento por andar, com 410 metros quadrados, duas imensas varandas nas laterais do edifício e mais quatro varandas na fachada. Se existe alguma coisa na parte de trás eu não sei, porque o anúncio não mostra. São apenas oito unidades, anunciadas com o seguinte slogan que deve ter sido feito pelo Oswaldo Montenegro: “A inspiração é para poucos, porque poucos sabem apreciá-la. Aqui, apenas oito famílias terão o privilégio deste poema. Deixe uma nova métrica dar o ritmo dos seus dias, percorra os caminhos da inspiração. O mais belo poema já está pronto para se revelar a você. Basta descobri-lo”.

Não é meigo? A única coisa que senti falta é que eles não oferecem prosecco para quem for visitar os apartamentos já prontos. Não entendo nada de mercado imobiliário, mas acredito que qualquer um que quiser comprar um apartamento deste vai morrer, no mínimo, com uns dois milhões de reais. E então eu pergunto de novo: quem foi que passou meu endereço para esses caras? Só pode ser trote. A maioria dos meus amigos também moram em edifícios que abrigam oito famílias, mas oito famílias por andar. E todas vivem se matando, o que não deixa de ser uma farra.

Mas pensei, pensei e decidi que não vou comprar um apartamento no Poème Cidade Jardim. Os corretores que me desculpem, mas a reunião de condomínio lá deve ser muito chata. Oito famílias é pouco demais para o pau quebrar. E em pouquíssimo tempo a gente já vai descobrir quem foi que andou espalhando pelo prédio que a mulher do 31 está saindo com o cara casado do 52.

segunda-feira, novembro 10, 2008

Entre a coroa e o buzão

Na semana passada eu entrevistei a atriz Isabel Teixeira para a matéria de estréia do espetáculo Rainhas, em cartaz no Sesc Paulista com ótima direção de Cibele Forjaz. Isabel, como Mary Stuart, a rainha católica da Escócia, divide o palco – ou talvez fosse melhor dizer a rinha – com Georgete Fadel, que dá vida a Elizabeth I, a rainha virgem e protestante que fez da sua Inglaterra a grande potência do século 16. Não se trata apenas do embate entre duas grandes monarcas separadas por ideologias políticas e crença religiosa. Acima de tudo, e para deleite do público momentaneamente convertido em súditos, o que está em questão é o duelo sem vencedora de duas estupendas atrizes, em uma encenação enérgica e visceral. Então hoje, segunda-feira, decido ligar para Isabel e cumprimentá-la pela sua performance magistral. “Por que você não me procurou no fim do espetáculo?”, ela me perguntou.

Respondi que depois de duas horas em cena, talvez elas não tivessem disposição para conversar com ninguém. Então ela me confessou que realmente sai acabada daquela arena e que precisa de muito tempo para conseguir relaxar. “Somente quando já estou voltando para casa, de ônibus, as coisas vão se assentando na minha cabeça”, ela acrescentou. E então eu pensei como o teatro é mesmo maravilhoso: depois de ser rainha por duas horas e disputar de maneira sangrenta a coroa da Inglaterra, França e Escócia, Mary Stuart volta para casa de ônibus. Em que outro lugar do mundo a monarquia é tão deliciosamente plebéia?

sexta-feira, novembro 07, 2008

Lágrimas com adoçante

Uma tarde desta semana eu fui sozinho tomar um café em uma padoca da Vila Madalena. Era uma dessas tardes em que a gente decide que não está com pressa e, por isso, não se irrita com a demora no atendimento. Duas mesas depois da minha estava sentado um cara barbudo, com camiseta de grupo de rock e sandálias de couro nos pés. Um tipo que lembrava muito o Marcelo Camelo, do Los Hermanos. A namorada dele chegou alguns minutos depois, já muito nervosa. Eu juro que não queria ouvir toda a briga que se seguiu, mas era impossível. Talvez a palavra correta, aqui, não seja briga, porque ele não abriu a boca um instante sequer. Tudo o que ouvi partiu dela – e eram queixas sobre abandono, a falta da presença dele em momentos importantes da vida dela e a injusta distribuição de tarefas entre o casal. Sobrou até para o telefone celular do rapaz que, segundo a garota, a esta altura já com lágrimas nos olhos, vivia desligado.

E então ela disse a frase mais triste que eu ouvi nos últimos tempos. E que foi esta:

“Eu sei que você não se interessa mais por mim. Mas pelo menos finja. Eu preciso tanto de você”.

Meu café chegou. E ele desceu raspando pela minha garganta fechada.

segunda-feira, novembro 03, 2008

Sonho de consumo

Juro que, quando eu crescer, eu gostaria de ser como a Luana Piovani, que migra dos tapas para os beijos em menos de uma semana. Antes que desapareçam os hematomas causados pela última relação, ela já refresca os lábios na saliva de um novo amor. Tudo tão simples, tudo tão moderno, tudo tão casual e fotogênico. Será que algum dia a gente aprende a ser assim? Será que, no fundo, algum dia a gente deseja ser assim? Eu desconfio que, ao menos para mim, nesta vida não dá mais tempo. Só me dá um pouco de pena da camareira dela, que não encontrará nenhum príncipe disposto a retirar a tipóia dos seus braços machucados. Mas na guerra é assim mesmo: uns sempre saem mais feridos do que os outros. E não há condecorações para todos os peitos. Que venha o próximo round.

sexta-feira, outubro 31, 2008

Aconteceu, virou manchete.

Há algumas semanas, trabalhando aqui em casa, vi na Internet que a cantora Ivete Sangalo estava grávida. Não sou particularmente fã da Ivete Sangalo, mas a notícia de sua gravidez me deixou feliz por algum motivo. Eu sempre soube que ela é uma das artistas mais bem pagas do País, que tem avião particular (parece que até mais do que um), que vende horrores e que recebe pequenas fortunas para cada show. A gravidez, na minha ingênua opinião, teria chegado para coroar esta carreira tão vitoriosa. Como ela já deve ter aparentemente tudo que o dinheiro pode comprar, tornar-se mãe parecia a maior das bênçãos. Dois ou três dias após o anúncio da gravidez, começaram a surgir, aqui e ali, fotos do pai da criança: garotão sarado, menino de praia, barriga tanquinho e todo aquele vigor que só mesmo a juventude é capaz de oferecer. Ela, rica, bonita e famosa; ele, até onde se soube, jovem e de uma família bacana. Um casalzinho meio de conto de fadas à espera do herdeiro que seria, na certa, a criança mais fotografada de 2009.

Mas tinha uma pedra no meio do caminho desta fábula. Algumas semanas após o anúncio da gravidez, a cantora perdeu o bebê num aborto espontâneo. Da mesma maneira que eu havia ficado feliz com a notícia da gravidez, me senti sinceramente chateado com o aborto. Eu sempre acreditei que este tipo de ocorrência, ainda que previsível numa gravidez, deve deixar a mulher triste, momentaneamente desesperançosa e com a sensação de ter sido roubada de alguma coisa que ela estava começando a possuir. Minha chateação, porém, durou pouco: nos dias seguintes Ivete Sangalo surgia na capa de todas as revistas semanais, que falavam do aborto como se falassem do lançamento do último CD da cantora.

Talvez eu seja um pouco moralista, quem sabe. Mas eu ainda creio que algumas coisas nesta vida deveriam ficar restritas ao âmbito pessoal. Um aborto, ao que me consta, é uma delas. A morte seria outra. Mas, atualmente, para um tipo de artista, parece não haver mais diferença alguma entre nascimento e morte, sucesso ou derrota, final feliz ou trágico – na vida deles, tudo se resume a mais uma possibilidade de notícia, a mais uma chance de ser capa de revista. Tenho a impressão que, de tão viciadas na mídia, algumas celebridades só acreditam nos acontecimentos de suas vidas a partir do filtro da banca de jornais: se não está na capa da revista, não aconteceu com elas. A delicadeza, a intimidade, a alegria partilhada a dois, a reflexão – tudo isso foi atropelado pelas rotativas.

Como se Ivete Sangalo precisasse de mais uma exposição, como se ela não pudesse, por uma semana em sua vida, se recolher e mandar que alguém avisasse à turba ensandecida de repórteres à sua porta que aquilo pelo que ela estava passando era um momento delicado na vida de uma mulher, que estávamos falando, afinal, de uma gravidez interrompida, algo que não deveria ser usado para vender revistas ou jornais. Que a cantora milionária queria e merecia um pouco de repouso, para seu corpo, sua mente e sua visibilidade.

Pelo visto, Ivete Sangalo não deve pensar assim. Por essas e outras é que a gente vai descobrindo, ao longo da vida, por que gosta mais de alguns artistas e menos de outros. E juro que não tem nada a ver com repertório. Normalmente, o buraco é bem mais embaixo.

quarta-feira, outubro 29, 2008

Um, dois, três, gravando

Na semana passada entrevistei o diretor José Celso Martinez Corrêa, às vésperas das comemorações dos 50 anos do seu Teatro Oficina. Em 20 anos de jornalismo, foi a primeira vez em que falei com o Zé Celso pessoalmente – havia conversado com ele uma vez ou outra por telefone, geralmente jogo rápido. Desta vez, não. Teríamos um encontro de pelo menos uma hora e meia, o que me deixou visivelmente assustado. Zé Celso não é daqueles entrevistados a quem você pode se mostrar desarmado – na verdade, talvez nenhum entrevistado o seja, mas é muito mais difícil esconder um eventual despreparo na frente de alguém que passou a vida toda decifrando as emoções nos olhos dos atores e da platéia. Assim, estudei durante dois dias para a entrevista e me sentei diante do Zé Celso com um estoque de pelo menos 40 questões.

Não foi diferente da primeira vez em que entrevistei Antunes Filho, há cerca de dois anos, para uma matéria especial de oito páginas da Revista Bravo! Passei alguns dias lendo tudo sobre Antunes, resgatando na memória trechos de suas peças, procurando na internet comentários sobre seus espetáculos que eu havia perdido, enfim, tentando me tornar um interlocutor à altura da inteligência e da agilidade verbal de Antunes. Fiz o mesmo na semana passada antes de falar com Zé Celso porque não é a todo instante que se tem a oportunidade de bater bola com alguém da importância destes dois diretores.

Nos dois casos, confesso agora – e que isso não sirva de lição para os jovens repórteres – eu devia ter me preparado muito mais por prazer do que por temor: Antunes e Zé Celso são, acima de tudo, generosos com aqueles que se mostram dispostos a ouvi-los. Sei, de amigos atores, que nem sempre é fácil trabalhar com eles, e às vezes eu não entendia, já que o convívio nem sempre era harmonioso, por que havia uma legião de atores ansiosos para ser aceitos nos quadros do Oficina e do CPT. Hoje eu arrisco uma resposta: há tantos atores interessados em trabalhar com o Antunes e o Zé Celso porque a inteligência é sedutora e cativante.

Os dois diretores deixaram para trás, há muito tempo, a preocupação com as aparências e o politicamente correto – se é que algum dia a tiveram. Isso os torna ainda mais interessantes. Amparados na inteligência, em uma colossal cultura teatral e beneficiados pela idade, os dois hoje dizem e fazem o que querem. Seus métodos são distintos, mas cada um caminha com muita propriedade dentro de suas verdades e crenças e já não carregam mais aquela preocupação, que ainda nos afeta, de ser gentis para ser aceitos. Falar com os dois é sempre muito revigorante. E fica melhor, muito melhor, depois que a gente perde o medo. Eu recomendo!

quinta-feira, outubro 23, 2008

Nova mensagem

Marcelino Freire é um homem cheio de idéias. Sem elas, é claro, não seria o escritor que é. Mas o bacana no Marcelino é que ele não tem apenas ótimas idéias para seus contos irônicos e dilacerantes. Ele tem ótimas idéias para envolver seu grande número de amigos em projetos inovadores. Há dois ou três anos, ele me convidou para participar do livro de bolso Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. Só havia uma regra: podíamos escrever o que quiséssemos, desde que não ultrapassássemos cem toques - algo como uma linha e meia de texto. Foi uma experiência deliciosa.

No mês passado ele me procurou de novo. Desta vez com o convite para que eu participasse da coletânea Literatura por Celular. A idéia era que produzíssemos microcontos que seriam enviados como mensagens de celular para quem cadastrasse o número do telefone no Sesc, o patrocinador do evento. O Sesc tinha capacidade para enviar os contos para até 2 mil telefones inscritos - meta que foi alcançada facilmente. Para os amigos que não cadastraram seus números, ou não sabiam do projeto, deixo aqui minha historinha. Ela tinha de ter no máximo 125 toques, incluindo aí o título e o nome do autor. A minha ficou assim:

QUEDA LIVRE

Maria Alice esqueceu a janela aberta. E sua gatinha Wendy voou para a Terra do Nunca

terça-feira, outubro 21, 2008

Sobre bifes e telas

Quando eu trabalhava no Jornal da Tarde, havia duas perguntas típicas do mês de outubro: 1) quem vai entrevistar a mulher que congela comida por duas semanas para poder ficar o dia todo vendo os filmes da Mostra; 2) quem vai descobrir os personagens que tiram férias para se enfurnar sem dó nem piedade dentro dos cinemas? Eu mesmo já corri atrás desses personagens várias vezes. Nunca entendi direito por que devíamos publicar estas matérias todos os anos, já que os personagens diziam sempre a mesma coisa. No caso da mulher dos congelados, seria muito mais fácil para nós, repórteres, republicarmos os textos dos anos anteriores, com uma ou outra alteração no cardápio dos congelados – ela tinha uma preferência assumida por bifes de panela. Havia também um terceiro tipo de personagem, bem mais fácil de ser localizado: o primeiro da fila na primeira sessão da mostra. Todo ano era a mesma coisa – e talvez naquela época fosse um pouco divertido.

No sábado passado fui ver meu primeiro filme da mostra – uma produção argentina chamada El Bosque. Chatinho e maneirista até não poder mais. O diretor, um jovenzinho provavelmente recém-saído de algum curso de cinema, queria provar, a cada take, o quanto ele podia ser original: e dá-lhe tomada do pêndulo do relógio balançando pra lá e pra cá, dá-lhe tomada de buracos na parede... e silêncio, muito silêncio. Fui ver o filme com um amigo psicanalista (e aqui aproveito para dar um recado ao diretor Gabriel Villela: Gabriel, querido, estes amigos de quem eu falo aqui existem mesmo, viu. Inclusive deste amigo psicanalista você gosta muito!). Continuando: antes do início da sessão, o diretor foi convidado a dizer algumas palavras. Era praticamente um adolescente intimidado diante de uma sessão lotada. Falei para o amigo: ou estamos diante de um novo Orson Welles ou estamos perdidos. Não estávamos diante de um novo Orson Welles.

Pouco antes do filme, ao lado do bar, ouço uma voz do passado fazendo o seguinte comentário: “Ontem eu não consegui ver quase nada. Passei a tarde toda dando entrevistas”. Pensei comigo: não pode ser. Mas era. Virei para o lado e lá estava ela, a mulher dos congelados, orgulhosa com sua credencial no peito e todos os roteiros da semana debaixo do braço. Confesso que aquilo me deu uma preguiça imensa e uma pena de igual tamanho. Preguiça por ver que, tantos anos depois, ela ainda é uma das grandes atrações da mostra. E uma certa pena da família que, num sabadão à noite, devia estar em casa vendo A Favorita, enquanto os bifes de panela descongelavam no microondas.

terça-feira, outubro 14, 2008

Fábula moderna

Quando eu comecei a trabalhar no Jornal da Tarde, eu ainda morava em Jundiaí e vinha todos os dias para São Paulo de ônibus. Os ônibus azuis da Viação Cometa, que me deixavam, no começo da tarde, quase em frente ao Playcenter. Eu descia, atravessava a Ponte do Limão e andava uns 300 metros até chegar ao jornal, do outro lado da Marginal Tietê. Um dia, quando estava no meio do caminho, um mendigo, talvez um andarilho, me abordou.
- Jundiaí fica para aquele lado?, ele me perguntou, apontando com o dedo para a direção certa.
Achei muita coincidência ele querer saber o caminho da cidade de onde eu estava acabando de chegar.
- Fica daquele lado, sim - eu respondi. - Mas é muito longe para ir a pé.
Ele engrossou a voz e endireitou um pouco o corpo, como se tivesse ficado ofendido com o que eu acabara de dizer.
- Não tem importância se fica longe - ele respondeu. - Eu tenho duas pernas e só preciso saber se estou indo para o lado certo.
Disse isso, virou as costas e foi embora. Às vezes, quando eu também não tenho certeza da direção em que estou indo, eu me lembro dele. E também me lembro de que tenho duas pernas. O problema é que nem sempre a gente encontra alguém para confirmar o caminho.

domingo, outubro 12, 2008

Ainda bem que passa

Não entendo por que alguns dias insistem em ser tão estranhos. Dias em que, se houvesse um exame para detectar a nossa taxa de sensibilidade no sangue, como existem aqueles que denunciam a nossa sempre alterada taxa de colesterol, o resultado seria alarmante. São dias em que, ao menos aparentemente, tudo estava indo tão bem, e eis que surge uma nuvem para esconder o nosso sol. Olhamos para ela, a nuvem, até compreendemos um pouco de sua essência, mas não entendemos o que ela está fazendo ali, naquele momento, derramando tanta sombra onde, meia hora atrás, a nossa vida era quase uma caipirinha de maracujá na praia.

E tudo aquilo que era tão inofensivo, tão controlado, começa a doer. Uma canção ouvida por acaso numa rádio FM embaça o nosso olhar, um gesto de afago nos rasga feito um punhal, uma voz amiga arranha a nossa alma. Não é tristeza o que sentimos. E, o que parece ainda mais exótico, é que não é a tristeza o que nos faz tristes – é algum detalhe, alguma filigrana de um sentimento perdido, é a pequena falta de encaixe que não impede a engrenagem inteira de rolar, mas nós, só nós, sabemos que há alguma coisa raspando. É a dor indisfarçável de alguma coisa que está tentando se acomodar, talvez para não nos importunar mais no dia seguinte. Seria tão bom se fosse tristeza, mas não é.

Então é como se todo nosso corpo, de repente, se convertesse em um gigantesco rim, usando de toda sua habilidade para expelir uma pedrinha de nada, mas que deixa uma pegada de sangue em seu caminho. E, neste seu deslizar, a tal pedrinha vai removendo do lugar coisas e pessoas que levamos anos para acomodar. Neste seu deslizar, a pedra ressuscita os nossos mortos. E, disformes, eles nos dizem que não estavam assim tão em paz, que era engano nosso. Está tudo insepulto, está tudo clamando por alguma coisa que não sabemos exatamente o que é, está tudo tão revoltoso ainda. O problema, o nosso grande problema, nos damos conta então, é que não ouvimos antes.

Atravessamos o dia como um equilibrista que segura uma única lágrima no canto dos olhos – mas é a lágrima que aprisiona o dique inteiro. Se, por desleixo ou por cansaço, ela escorrer pelo nosso rosto, saberemos que todos os portões do nosso inferno estarão abertos. Prudentes, enfrentaremos este dia olhando meio assim de lado e lacraremos os nossos ouvidos com o fone do Ipod.

Um pouco mais tarde, quando a calma aparente voltar, ergueremos a cabeça e veremos que a nuvem está se afastando. É quase noite, mas não tão tarde a ponto de não sabermos mais em que lugar o nosso sol está se pondo. Aliviados, diremos que ainda não foi desta vez. Passou perto, mas não foi. A pergunta, no entanto, não vai sossegar enquanto não houver uma reposta convincente: se não era tristeza, e não era mesmo, o que foi isso então?

quinta-feira, outubro 02, 2008

Rindo pelo retrovisor - segundo ato

Fiquei feliz ao abrir o jornal hoje e ver que a Ilustrada dedicou uma página inteira à discussão sobre a dramaturgia brasileira e à produção dos autores nacionais contemporâneos. A matéria foi, de certa forma, uma resposta dos autores paulistas (ou em atividade em São Paulo) a diretores, produtores e encenadores cariocas que reclamaram, no mesmo jornal, na edição de terça feira, da ausência de novos e bons textos que pudessem ser levados aos palcos. É preciso deixar claro, antes de mais nada, que esta discussão não é geográfica. Não devemos cair naa velha armadilha de tentar colocar, mais uma vez, cariocas contra paulistas em qualquer assunto que seja, muito menos nas questões culturais, que necessitam de união e não de rachas.

O que me incomodou muito, na matéria de terça-feira, e me levou a escrever o post logo abaixo, foi a falta de cerimônia de artistas que, baseados no Rio, aceitaram falar em um grande jornal sobre assuntos que eles definitivamente não dominam. Defasados e aparentemente desinformados sobre a atividade teatral paulistana, os entrevistados prenderam-se a uma série de chavões e lugares-comuns que estão longe de fazer justiça ao teatro que se faz hoje na cidade. Se alguém pedisse a minha opinião sobre a cena teatral carioca, eu responderia que não sei quase nada sobre o assunto, o que chega a estar bem próximo da verdade.

Os comentários que ouço sobre a produção e a atividade teatral do Rio não são nada animadores. Mas vejam bem: eu digo que ouço comentários deste tipo, mas não posso dar meu aval a eles de forma irresponsável. Trabalhei uma semana no Rio há pouco tempo – tentei ir ao teatro mas não havia praticamente nada em cartaz de segunda a quinta, a não ser algumas comedinhas cujo centro do humor situava-se entre o umbigo e o joelho dos atores, algo em que cada vez tenho achado menos graça. De sexta a domingo, confesso, a situação não era assim tão melhor. Pode ter sido uma semana atípica, posso ter dado azar, de repente belos espetáculos não estavam no roteiro dos jornais naqueles dias e eu perdi trabalhos interessantíssimos, não sei. Uma pessoa que tivesse tido apenas aquela amostragem, talvez se sentisse no direito de dizer que no Rio não há nenhum sopro teatral. Mas é preciso muito cuidado com o que se diz num jornal. Num botequim a língua pode ser mais rápida que o cérebro, e na maioria das vezes o é, mas num jornal a massa cinzenta não pode jamais ser afetada pela maresia.

O importante, por fim, é que o jornal levantou uma discussão muito oportuna que talvez não se encerre na matéria de hoje. E este episódio me fez recordar de uma lição que aprendi ainda menino, lá em Jundiaí: a de que o trabalho é sempre a melhor resposta para as críticas. E tenho certeza de que nós, aqui de São Paulo, vamos continuar, diariamente e por muito tempo ainda, respondendo com trabalho às críticas dos que dizem que nada de novo se tem feito no teatro. Um dia, talvez, eles prestem atenção. Para o bem deles, não do nosso. Porque com a gente tá tudo certo.

terça-feira, setembro 30, 2008

Rindo pelo retrovisor

Quem acompanha este blog sabe que raramente eu escrevo sobre teatro. Sempre me senti mais confortável para falar a respeito de outras coisas, para falar daquela fração da vida que se dá longe dos palcos. Eu mesmo não saberia explicar os motivos de o teatro ser um assunto tão escasso por aqui, já que praticamente não existe um único dia em que eu não esteja escrevendo sobre teatro, para teatro ou mesmo vendo teatro. Talvez, e me dou conta disso somente agora, este blog exista justamente para que eu possa desviar meus olhos para outras paisagens menos sagradas que o tablado, mas nem por isso menos interessantes. Se eu me dedicasse a escrever com alguma regularidade sobre teatro, fatalmente me veria tentado a fazer críticas – e neste terreno a internet já está muitíssimo bem servida com as observações sempre precisas que o mestre Alberto Guzik faz em seu próprio espaço. Sobre projetos também não gosto de falar: nesta vida a gente dá tantos chutes na trave que eu aprendi ser muito mais prudente comemorar o gol já feito.

Mas hoje me vi obrigado a abrir uma raivosa exceção. E o que me leva a escrever sobre teatro é a mais que oportuna matéria do eficiente repórter Lucas Neves, publicada na Folha de S. Paulo, sobre esta onda nostálgica que ressuscitou três espetáculos de sucesso dos anos 80 e os colocou em cartaz na mesma época em São Paulo: O Mistério de Irma Vap, Doce Deleite e Brincando em Cima Daquilo. Podia haver algo de saudável neste revisionismo, mas parece que não há. E quem faz questão de propagar que não existe nada de saudável neste triplo regresso são justamente produtores, autores e diretores envolvidos nos espetáculos: eles alegam que as três comédias voltaram à cena porque nos últimos anos a dramaturgia brasileira não produziu textos capazes de arrancar o mais pálido sorriso da platéia.

Eu acredito que a dramaturgia brasileira produziu, sim, muitos bons textos nos últimos anos. Diria mais: poucas vezes, como agora, assistiu-se a uma efervescência tão grande na área de produção, divulgação, debates e leituras de novos textos teatrais. Infelizmente, esta efervescência não encontra eco na coragem de grande parte dos produtores, diretores e atores renomados. Contrariando o preceito mais fundamental do mundo das artes, aquele que diariamente injeta risco e ousadia no cotidiano do artista, estamos vivendo uma época em que produtores e uma certa categoria de atores resolveram eliminar da atividade teatral a incerteza, a novidade e o improvável. Diante da dúvida, diante do impasse, diante do desafio do novo, eles, amedrontados, correm em busca da proteção segura do riso empoeirado dos anos 80. Se deu certo lá atrás, pode dar certo de novo – ainda que o país seja outro, que os hábitos sejam outros, que a realidade seja outra e que o próprio humor seja outro. Nada disso tem importância diante de uma bilheteria que parece reluzir ao final de cada sessão. Temerosos em dizer que numa época de incertezas econômicas, em que alguém vai dormir milionário e acorda miserável, é mais conveniente investir no conhecido, eles alegam que a culpa é do novo. Ou pior: que a culpa é da inexistência do novo.

O novo existe, sim, e em quantidade avassaladora. Que nem sempre o novo é bom, concordo totalmente. Mas nem sempre o velho é bom também – e, dos três espetáculos acima citados, um dá prova disso de quinta a domingo para quem estiver interessado em conferir. Talvez eu não esteja sendo ético, elegante e respeitador com os colegas neste comentário, mas acredito que, como eu, todos os autores brasileiros sentiram-se agredidos ao ler a reportagem de hoje. Que queiram remontar sucessos de trinta anos atrás, não vejo problema algum nisso. São Paulo é a cidade brasileira com o maior número de salas de espetáculos do país – e, com um pouco de paciência e diplomacia, é possível acomodar a todos. E existe, como foi dito na matéria, uma geração mais jovem curiosa para saber do que os seus pais tanto riam nos anos 80. O problema é dizer que se recorre ao passado porque o presente não tem qualidade. O problema do presente – sim, meus amigos, há um problema no presente – é que o presente não oferece segurança, o presente nos acena com o risco, o presente nos acena com o novo. O presente, meus caros, dá medo. E eu sempre achei que tudo isso, o medo, o desafio, o risco e a insegurança formassem o cardápio da refeição diária do artista. Mas percebo agora que a comida congelada parece ser mais atraente.

Aos entrevistados da matéria de hoje, faço aqui um convite público: visitem o Espaço dos Parlapatões, passeiem pelas Satyrianas, assistam às leituras do ciclo Letras em Cena do Masp, às leituras do Banco do Brasil, da Caixa Econômica, compareçam ao Festival do Grotesco que o Next vai realizar neste mês de outubro, vejam as dezenas de festivais de cenas curtas e cômicas que pipocam pela cidade. Se, depois de tudo isso, vocês continuarem achando que nada foi feito de bom nos últimos 20 anos, eu prometo apagar este post e morder minha língua no meio da Praça Roosevelt. Por que na Praça Roosevelt? Simples: porque ali a gente perdeu o medo da novidade e decidiu que botar a culpa na ditadura ficou uma coisinha tão sem graça, tão anos oitenta....

segunda-feira, setembro 29, 2008

Sem velinhas

Setembro está chegando ao fim. É o mês do meu aniversário e, pela primeira vez em muitos anos, decidi não comemorar. Motivos para celebração até que não faltavam: a vida profissional anda bem, alguns projetos bacanas devem mesmo sair do papel, os amigos estão sempre por perto e meu último check-up mostrou que, até prova em contrário, a saúde continua jogando a meu favor. Isso tudo justificaria várias taças de prosecco, eu acredito. Mas resolvi ficar em silêncio desta vez: alguns amigos ligaram, vários outros enviaram mensagens por e-mail e orkut e, no dia mesmo do aniversário, vi poucas pessoas. Decidi que era só mais um dia – e então o percorri com a maior naturalidade possível.

Tenho a impressão de que este aniversário silencioso foi o prenúncio de tantos outros iguais que virão. Não estou atravessando nenhuma crise particular de idade – até porque estou me esforçando para não sofrer mais com as crises inevitáveis, e a da idade é a mais poderosa delas. Ainda que eu me tranque num abrigo e passe os dias chorando, o tempo vai continuar a correr lá fora e o máximo que conseguirei, com isso, é chegar no ano que vem com mais rugas e os olhos inchados. Se o tempo começou a nos boicotar no instante exato em que levamos aquele tapinha na bunda para o nosso choro primordial, o primeiro dos milhares que teríamos de enfrentar vida afora, o melhor a fazer é tentar um acordo com ele. Ou, ao menos, tentar não levar tão a sério as armadilhas que ele nos arma. Ao ignorar o meu aniversário, talvez eu tenha feito isso: fingi que não ouvi a batida anual que ele dá em minha porta. Caso eu me arrependa, tudo bem. Sempre haverá chance de uma reconciliação: no ano que vem, na mesma data, ele certamente baterá em minha porta de novo.

No fundo, eu acho que este ano decidi jogar o meu aniversário no mesmo baú em que já havia jogado o natal e o reveillon. Percebo que quanto menos importância eu dou para estes dias, mas fácil é atravessá-los e chegar ileso do lado de lá. Há algum tempo, Danuza Leão escreveu que achava os natais tristes porque muitas pessoas importantes para ela já haviam morrido. Eu sempre achei os natais um pouco tristes, pelos que morreram e principalmente pelos que continuam vivos. Por nós, que nos obrigamos a extrair alguma alegria que ninguém sabe de onde. Os mortos já estão livres disso.

Não é em vão que todas estas coisas estão passando pela minha cabeça. Ontem, descendo a rua Augusta em direção ao centro, vi uma loja decorada com uns 50 bonecos de papai Noel que pendiam do teto. Levei um susto. E hoje, ao entrar numa papelaria, notei com pesar que na vitrine só havia agendas de 2009. Não entendo por que as pessoas decretam o fim do ano com tanta antecedência – temos ainda três longos – e espero, produtivos – meses pela frente e todo mundo se une para nos dizer que 2008 já terminou. Prometo ignorar todos os papais noéis que vão cruzar meu caminho até o natal e asseguro que só comprarei a agenda de 2009 na primeira semana de janeiro. Até lá, eu prefiro acreditar que continuo em 2008 e que este ano ainda tem fôlego para oferecer uma porção de coisas boas para mim e para todo mundo. Por mais que as vitrines digam o contrário.

quarta-feira, setembro 24, 2008

Da boca para dentro

Foi há mais ou menos uns 15 dias. Um sábado frio e chuvoso. Eu e o amigo Gustavo Fioratti, repórter da Revista da Folha, estávamos na estação Sumaré do metrô, esperando um amigo para o almoço. Este amigo, percebi logo, é daquelas pessoas que dizem que já estão indo, quando na verdade nem saíram da cama ainda. Ele atrasou uma hora e dez minutos. Eu e o Gustavo ficamos muito irritados, é claro. Mas a espera não foi nada em vão. Quando estávamos ali, vendo os trens indo e vindo enquanto a garoa batia nas amplas paredes de vidro da estação, fizemos o que as pessoas têm cada vez menos tempo de fazer: conversar sem pressa alguma, sem a pretensão de chegar a qualquer conclusão, sem o compromisso de ser sério ou definitivo. Chovia, fazia frio e o amigo não chegava: conversemos, pois.

O que revestiu aquela conversa de importância, a ponto de eu sentir vontade de falar nela aqui, foi o seu tema. Falamos, durante muito tempo, sobre a ineficácia das palavras. Pode parecer incongruente, mas foi isso mesmo: falamos sobre como o silêncio é capaz de dizer mais que cem frases bem encadeadas, falamos como os gestos podem ser mais precisos que os discursos, e falamos, principalmente, sobre tudo aquilo que não precisa de palavras para se tornar palpável: o amor, o afeto, o carinho. E concordamos os dois, sem grandes discussões, que quase tudo nesta vida já está dito: ouve quem quer, compreende quem quer e vê quem quer.

O bom do silêncio é isso: muitas vezes ele não demanda uma resposta. O bom de um gesto é isso também: ele pode ser preciso e ainda assim o outro tem a liberdade, sem nenhum constrangimento, de fingir que não é com ele. Já as palavras, estas ecoam. Como numa partida de tênis, as palavras esperam que alguém as rebata, parece que elas nunca estão completas até o momento em que retornam a nós, reinterpretadas pela boca e pela mente do outro. O silêncio pode apenas ir, pode apenas partir de nós e já terá cumprido sua missão. O gesto também. De alguma forma, ele é quase auto-suficiente: faz, sozinho, o que dezenas de palavras tropeçariam para tentar fazer.

Quando a gente diz, com palavras, que ama alguém é porque já disse a mesma coisa tantas vezes antes, de tantas formas mais delicadamente precisas. Penso se cabe a nós alguma culpa por não termos sido ouvidos. E se cabe a nós, mais do que tudo, alguma culpa por não termos prestado atenção quando o outro nos disse, também sem palavras, que não era bem assim. Talvez andemos todos nós, ao menos um pouquinho, surdos para o silêncio.

Antes que o nosso amigo chegasse, o Gustavo fechou brilhantemente a nossa discussão. “Eu não acredito em conversas sobre crises conjugais”, disse-me ele. “O máximo que eu posso falar numa discussão sobre relacionamento é o seguinte: viu, hoje o seu macarrão não está tão bom quanto o da semana passada. O resto já está tudo dito”.

sexta-feira, setembro 19, 2008

O nosso amor de ontem

Ela sabia que ia passar. Não porque os amigos, como forma de consolá-la, dissessem que era só uma questão de tempo. Ela sabia que ia passar, acima de tudo, pela sua prática no assunto. Já havia passado outras vezes, e agora não deveria ser diferente. No fundo, era muito igual até. Tão igual que ela se perguntava por que tinha de passar por isso de novo, se tudo se resumia a mais uma história em que o final já fora escrito antes que ela provasse das delícias do primeiro capítulo. E ela sabia, principalmente, que as tais delícias do primeiro capítulo não se estenderiam pelos seguintes – tudo seria tão delicadamente retirado dela, as páginas iriam se embranquecer de maneira tão sutil, a história iria morrer tão lentamente diante dos seus olhos que, quando o fim realmente chegasse, talvez a dor já tivesse se consumido nas notas de rodapé em que seu amor se perdera.

Não era exatamente medo o que ela sentia. O frio das tardes a assustava um pouco, isso é verdade. E ela sabia que precisava trocar uma das lâmpadas da sala. Se o ambiente estivesse um pouco mais claro, ela pensava, talvez a noite levasse mais tempo para se infiltrar pela janela. Ela não estava bem certa disso, mas desconfiava que o telefone andava tocando menos. Ela não gostava de tirar o fone do gancho para ver se o aparelho estava funcionando e decidiu parar de fazer isso depois da terceira vez em quinze minutos. Então ela se deitava um pouco, para descansar das tarefas ainda não feitas, mas que a deixavam previamente irritada. E nestas horas ela imaginava coisas.

Imaginava que não devia ter saído tanto, que não devia ter tão facilmente revelado lugares que ela levou anos para descobrir sozinha. Tudo que ela havia compartilhado agora se transformava em fatias doloridas de memória, espalhadas aqui e ali, na mesa de canto daquele bistrô ao qual ela não voltaria tão cedo, no bar barulhento e de chão pegajoso, naquela rua estreita em que sempre era possível estacionar. Nada era um grande tesouro afinal, mas foi o que ela lhe ensinara de forma tão inocente e que por isso devia ter algum valor. Ela também havia aprendido algumas coisas com ele, claro que havia. Mas quando tudo passasse, isso também iria embora. E ela ficaria vazia novamente, mas de um vazio diferente daquele em que ele a encontrara. E então ela perdia as horas de sono pensando sobre quantas maneiras uma pessoa pode se esvaziar de forma que o vazio de hoje seja um pouco mais sábio do que o vazio de ontem.

Ela sabia que não seria traída pelos seus olhos, e nem pelas lembranças. Seria pelo cheiro que um dia ele voltaria à sua vida – no mais ingênuo dos dias, na mais insignificante das horas, ela voltaria a sentir aquele cheiro que parecia ser só dele, embora seu perfume abarrotasse as prateleiras de qualquer farmácia barata. O cheiro vindo de um outro homem, talvez. Ou nem tanto. Vindo, por certo, de algum canto do seu cérebro que, sem nada mais importante a fazer, resolveu, à revelia, brincar de abrir baús proibidos. E então ela teria de parar, olhar para todos os lados e depois seguir adiante com a certeza de que não, não era ele. Era só ela de novo.

E um dia o cheiro iria embora, alguém iria lavar o chão do boteco, o bistrô fecharia por falta de clientes e algumas placas nos postes mostrariam que agora é proibido estacionar naquela rua estreita. Ela não se lembraria mais dele. E essa dor, a dor que se esquece, se revelaria a maior dor do mundo. Mas então ela já estaria vazia. Porque, nesta vida, tudo passa.

quinta-feira, setembro 18, 2008

Só as claques são felizes

Esta semana eu assisti, pela primeira vez, ao humorístico Toma Lá Dá Cá, apresentado pela Globo nas noites de terça-feira. Alguns amigos já tinham me alertado de que era pura bagaceira. O Dirceu Alves e a Mônica Santos, repórteres da Vejinha, chegaram a me telefonar, várias vezes, para que eu ligasse a televisão e visse a Norma Bengell, a grande musa do cinema nacional, fazendo, em participação especial, uma lésbica assanhadinha. Eles garantiram que era imperdível – em todos os sentidos que esta palavra pode assumir. Mas, infelizmente, eu nunca estava em casa. Até que nesta última terça finalmente fui apresentado à série. É uma experiência que não recomendo a ninguém.

Juro que não estava prevenido. Não sou desses que torcem o nariz para novelas ou para a programação da tevê aberta. Quando estou em casa, tento ver de tudo. Das entrevistas da Oprah à ranhetice do doutor House, da guerra pelo poder e sexo dos Tudors ao bate-papo gastronômico do Ronnie Von, do programa Conta Corrente aos diálogos de catequese dos Mutantes. Sempre acho que a gente tem alguma coisa a aprender – ainda que seja aprender a evitar algumas dessas coisas no futuro. Mas o Toma Lá Dá Cá é um nada, um entra-e-sai de atores que não têm o que dizer e que encontram na claque a única resposta para suas piadas sem graça. Talvez um único episódio não seja suficiente para julgar uma série, mas não tenho a mínima vontade de rever o programa. Do começo ao fim, não consegui esboçar um único movimento facial – era como se eu tivesse saído de uma aplicação generalizada de botox. Estava tudo congelado: o riso, o ânimo, a curiosidade. Para ser sincero, a única coisa que realmente falou mais alto foi o constrangimento de ver alguns atores tão bem desperdiçados.

Quando acabou o programa, pensei: bom, pode ser um tipo de humor que não me agrada. Vai ver que isso é engraçado pra caramba e eu não estava no espírito. Na quarta de manhã, enquanto comprava laranja na primeira banca de frutas da feira da Rua Luminárias, na Vila Madalena, ouço a feirante da barraca ao lado, uma mulher que tem uma banquinha só com manjericão e outros temperos, dizer exatamente isso para uma freguesa: “Tô com o maior medo da próxima novela das seis, que é do Falabella. Viu que porcaria que é aquele programa que ele fez ontem à noite?” Voltei para casa feliz: o problema, aparentemente, não era eu. Toma Lá Dá Cá é ruinzinho mesmo...

Engraçado. Comecei este post achando que ia falar de como é fácil se disfarçar nas novelas. Cláudia Raia, com aquele tamanhão todo, bota uma peruca loira e o elenco inteiro de A Favorita acredita que ela é outra pessoa. Em Beleza Pura, que terminou semana passada, a atriz Mônica Martelli, aquela que diz que os Homens são de Marte, grudava um cavanhaque grotesco no queixo, engrossava um pouco a voz e, pimba, virava homem de uma hora para outra. Com Rodrigo Veronese, seu marido na trama, era a mesma coisa: um par de seios e uma peruca medonha faziam dele uma mulher que não enganaria nem os personagens de Ensaio Sobre a Cegueira. Não há uma composição mais delicada, uma preocupação com o gestual, uma entonação vocal que seja. Basta uma peruca para que todo mundo nas novelas mude de sexo e recomece a vida como outra pessoa. A gente, em casa, fica se sentindo um bobo. Acho que alguns atores precisam aprender um pouco com os travestis: esses sim dão um duro na vida para enganar os outros e nem sempre conseguem. Aliás, conseguem sim: de tão mal-treinados, os atores são os únicos que saem com travesti e depois dizem que não tinham percebido. Ver muita novela faz mal. Fazer novelas, no entanto, deve ser ainda pior.

quinta-feira, setembro 11, 2008

Uma velha foto na caixa de camisa

Sei que a escritora americana Susan Sontag escreveu um ensaio sobre fotografia que, a julgar pelo que dizem, é um trabalho de mestre. Eu não o li. Tenho medo de me deixar influenciar pelo que ela escreveu e, a partir daí, passar a ver as fotografias com um olhar mais intelectualizado e menos espontâneo do que este que tenho hoje. Nem sei se isso é realmente um risco, mas acho melhor evitá-lo.

Reservei parte do último domingo para jogar fora papéis velhos. Sou daquelas pessoas que guardam o recibo do condomínio por dez anos – pode ser prudente, mas deixa a casa com jeito de museu. Comecei a faxina por uma caixa de camisa onde eu guardava documentos do carro – seguros, IPVAs, notificação de multas, tudo razoavelmente separado ano a ano. E, no meio de tantas guias, encontro uma foto esquecida, tirada no fim dos anos 80, em meu primeiro emprego como jornalista.

Apareço extremamente magro, barba comprida e uma bolsa de couro pendendo do ombro esquerdo. Bolsa de couro combinava com a época e talvez com a profissão. Eu estava cobrindo um evento qualquer, que devia ser festivo, pois há uma bandinha com alguns músicos ao fundo. Já se vão quase vinte anos daquela foto e eu não me reconheço mais naquele rapaz quase torto de tão magro.

Este é o mistério das fotos: você não sabe mais o que foi feito dos vivos. Quando olhamos uma foto de alguém que já morreu, está tudo certo. A história teve um fim e a página foi finalmente virada, ainda que com dor. Mas quando vemos uma foto antiga de alguém que ainda vive, e quando este alguém é você mesmo, a pergunta sobre o que aconteceu com aquela pessoa, o que aconteceu com aquela pessoa que é você, é inevitável. Fiquei com os olhos vidrados naquela imagem e me perguntando quantos dos sonhos que aquele rapaz tinha naquele dia foram realizados? Do que ele precisou abrir mão, ou o que ele precisou agarrar, para se transformar naquilo que eu sou hoje? Em quantos outros pedaços de papel fotográfico ele esqueceu um pouco mais da sua história? Em quantas imagens borradas a vida foi sendo irrecuperavelmente gasta?

Não sei se Susan Sontag escreveu sobre isso em seu ensaio, ou se ela encontrou resposta para algumas destas questões. Ou se ela teria sido capaz de desvendar para onde vamos todos nós, ao mesmo tempo vivos, ao mesmo tempo apagados, ao mesmo tempo congelados em uma imagem que os anos, por um processo inexplicável, transformaram em uma outra pessoa. De quem somos quase íntimos, e de quem sentimos quase nenhuma saudade.

domingo, setembro 07, 2008

Laurie Anderson

Uma amiga me liga no fim de semana em busca de companhia para ver o show da Laurie Anderson sábado à noite no Sesc Pinheiros. Confesso que achei o convite muito estranho. Devo ter passado os últimos 15 anos sem ouvir falar na Laurie Anderson – para mim, ela continuava refém daquela época em que a gente freqüentava o Aeroanta, via shows no vão livre do Masp nas tardes de sexta-feira e achava performance a coisa mais moderna do mundo. Tudo isso, me parece, não sobreviveu à virada dos anos oitenta. E, em alguns casos, ainda bem. Perguntei à minha amiga se ela não preferia trocar a Laurie Anderson por um cineminha – e ela recusou. E ainda me garantiu que os shows que a cantora performática (ai, que nostalgia!) havia feito em Porto Alegre e Santiago do Chile tinham sido ovacionados. Bom, como ninguém precisa ser um diplomata para me tirar de casa num sábado à noite, resolvi ir.

Surpresa: o imenso auditório do Sesc Pinheiros estava lotado. Enquanto o show não começava, eu ficava olhando para aquelas pessoas e tentava localizar ali algum hippie ressuscitado, algum eleitor do PT, algum macrobiótico, algum adepto do hare krishna, alguém que acreditasse na cura pelos cristais, alguém com camiseta tingida e saia colorida até o calcanhar, alguém com colares de semente, enfim, alguém que, como a Laurie Anderson, estivesse decidido a mostrar que a década de oitenta, afinal, não havia sido assim tão perdida como insistem em rotular. Mas, ainda bem, era só um show e não uma convenção de sobreviventes de alguma coisa. Embora todas aquelas velas acesas no palco me lembrassem uma festinha de aniversário em uma escola de ioga. Sem falar que, depois do incêndio no Cultura Artística, abarrotar um palco com velas me parece um pouco temerário.

Laurie Anderson e sua banda de três músicos tão introspectivos como ela entraram com apenas dez minutos de atraso. A cantora continua um prodígio de tecnologia: toca um violino que traz preso ao pescoço, comanda teclados e uma mesa de som dos quais extrai inúmeros efeitos, entre eles um que distorce sua voz, e ainda usa uma espécie de óculos com algum tipo de amplificador que emite sons graves quando ela bate na própria cabeça ou morde os dentes. Sobre o palco, um telão com legendas, em alguns casos indispensáveis, para que sua poesia intimista ou seus ataques à política externa dos Estados Unidos chegassem ao público com intimidade.

A poesia de Laurie Anderson é quase um mantra – ele repete à exaustão alguns versos simples, como “me encontre na beira do lago”, de uma canção provavelmente feita para homenagear seu pai, que tinha “olhos de diamantes”. Infelizmente, seu lirismo não vai muito além de uma interminável canção de ninar, que cumpriu bem seu objetivo em várias pessoas que estavam ao meu lado. A Laurie Anderson que realmente vale a pena é a poeta que sabe fazer uma crítica irônica e impiedosa às figuras de Bush e McCain. Somente um artista maduro consegue levar um discurso estritamente político para o universo do show biz sem se tornar apocalíptico ou simplesmente um chato.

O próprio Bono Vox escorregou nesta travessia. Laurie Anderson faz isso com certa desenvoltura, mas... e nestes casos sempre tem um mais, no meio do show ela perde a medida e bate de frente com a nossa indiferença diante de assuntos como aquecimento global, guerras, desrespeito aos direitos humanos e desigualdade social. A culpa é nossa (ou minha), e não dela. Laurie Anderson parece, mais do que nunca, uma voz imprescindível nesta época de celebridades rasas e idiotizadas. O problema de Laurie Anderson é que ela ficou presa à uma época em que a gente ainda acreditava em alguma coisa. Sua música nos bate na cara, mas a gente vira o rosto para olhar a vitrine do lado. Suas críticas são mais que oportunas, mas rimos delas como se estivéssemos na platéia do Terça Insana. Estamos vivendo no grande baile da Ilha Fiscal deste planeta, mas enquanto houver música tocando, cervejas geladas e salgadinhos sobre a mesa, a festa deve continuar. E Laurie Anderson é aquela pessoa que chega e pede para que abaixem o som para que possamos ouvir o bombardeio na rua de trás. Mas nós só queremos dançar. Tirem esta chata daí, gritamos.

Então, fica combinado assim: o teatro estava lotado, mas eu tinha a impressão de que Laurie Anderson pregava no deserto. Todo este post é tão pessoal e diz respeito a mim e ao que eu me tornei de maneira tão particular que, confesso aqui, saí na metade do show. Minha admiração aos que ficaram até o fim e suportaram de verdade o que ela estava tentando nos dizer. Eu devo estar um pouco cansado.

quinta-feira, setembro 04, 2008

Madonna ou panelas?

Há algumas semanas, as estações do metrô estavam abarrotadas de cartazes que alertavam os homens sobre os sintomas da queda de testosterona no organismo. Segundo os avisos, os homens em tais condições apresentariam ondas de calor, irritabilidade, desânimo, sono em horários impróprios e um aumento na barriguinha. Como toda pessoa, eu também tenho o impulso de me encaixar em qualquer quadro clínico num primeiro momento. Da imensa lista descrita acima, a única coisa que eu não apresentava era o aumento da barriguinha – graças à academia, acredito eu. O resto eu tinha tudo.

Depois, a gente pensa um pouco e vê que os tais sintomas não têm a ver com os baixos níveis de testosterona, eles têm a ver com a vida. Vamos a eles: quem não sente ondas de calor quando os termômetros marcam 31 graus no inverno? Irritabilidade é o primeiro efeito colateral de quem mora em São Paulo. Desânimo é o primeiro efeito colateral de quem está vivo e sentir sono em horários impróprios...bom, qualquer pessoa, como eu, que não consegue dormir antes das duas da manhã, corre o risco de implorar por um travesseiro ao longo do dia seguinte.

Concluí, para o meu deleite e sem qualquer exame, que minhas taxas de testosterona deviam estar normais, mas não recomendo esta auto-avaliação a ninguém. Até porque, ando apresentando um sintoma muito mais preocupante que ondas de calor: nas últimas semanas, não há nada que me deixe mais feliz do que entrar numa loja de utilidades domésticas ou de cama, mesa e banho. Enquanto meus amigos, pelo menos aqueles que ainda não baixam tudo pela Internet, continuam a freqüentar livrarias e lojas de disco, principalmente as seções de música eletrônica, eu paro o que estiver fazendo para correr até uma loja de produtos de cozinha. Fico hipnotizado diante de um baldinho de gelo todo trabalhado, das panelas em duas cores, das xícaras que trazem a palavra café escrita em vários idiomas, dos escorredores de macarrão com trava para que a tampa não caia, do design das coqueteleiras... Fico torcendo para que esfrie bastante e assim eu possa ter um motivo para entrar numa loja de edredons e me acabar no meio de tantas estampas novas... Eles estão com um preço tão em conta, que merda este calor...

Eu, que nunca fumei, até os cinzeiros tenho achado bonitos. Fico pensando: como alguém pode perder um dia inteiro na fila dos ingressos para ver a Madonna se há um universo de lençóis, toalhas e enfeitinhos de banheiro para ser explorado? Como alguém pode pagar R$ 720 para ver o show da cantora se, com esta grana, a gente pode comprar umas cinco panelas imensas, dessas em que nada gruda? Eu sei que no meu armário de cozinha nem há lugar para cinco panelas, mas as paixões são assim mesmo: elas não se explicam e, quando surgem em nossas vidas, a gente também não sabe onde guardá-las. Por isso eu estou nesta fase das panelas em que nada gruda. Das paixões a gente não pode dizer o mesmo.

Tenho medo de que este meu encanto pelo reino doméstico ainda me leve a comprar um berço em dez prestações no cartão de crédito. Se isso ocorrer, juro que faço o exame para ver se ainda existe alguma testosterona em meu corpo. Mas, enquanto o bercinho não vem, passo as tardes olhando para o meu novo baldinho de gelo. Este eu já comprei!

quarta-feira, setembro 03, 2008

Palavras ao vento

Há tempos que as entrevistas coletivas se transformaram em uma das atividades mais chatas e maçantes do exercício do jornalismo. Qualquer repórter, com um mínimo de experiência, consegue extrair informações muito mais relevantes em uma conversa de dez minutos a sós com um entrevistado do que numa coletiva de duas horas. Não sei como são as coletivas nas áreas de economia e política, mas quando o assunto é teatro, posso garantir aqui que elas são chatérrimas.

Embora eu não goste das coletivas e não tenha medo de afirmar isso aqui, pois sei que muitos dos meus colegas também as evitam, esta semana participei de uma. E, ao menos desta vez, saí de lá com uma frase antológica.

Ao ser perguntado por uma repórter se a preparação para o espetáculo que ele está estreando aqui na cidade havia sido intensa, um ator carioca foi de uma sinceridade comovente: “Nossa, foi muito difícil. Deixei de ir à praia para decorar o texto”.

Doeu de ouvir. Mas foi mais interessante do que quase todo o resto da entrevista.

sexta-feira, agosto 29, 2008

Vidinha de uma nota só

Os amigos podem discordar de mim, e talvez até com certa razão, mas depois de toda esta enxurrada de notícias sobre João Gilberto, Roberto Carlos, Caetano Veloso, a estréia do filme Os Desafinados (que eu não vi e não gostei), depois de toda as manifestações de amor e ódio que estes artistas, sozinhos ou em parceira, provocaram no último mês, eu, de bom grado, digo aqui que passaria os próximos cinqüenta anos sem ouvir falar em bossa nova. O que era um movimento musical, e dos bons, cansou mais do que qualquer dança da boquinha da garrafa. A cada vez que abro os jornais e leio, de novo, uma linha que seja sobre Caetano, Roberto ou João Gilberto, juro que tenho vontade de colocar um CD do Guns, do Metallica ou do ACDC para tocar bem alto aqui em casa e desejar, do fundo do coração, que o banquinho quebre, que o violão desafine, que um arrastão leve até a calcinha da garota de Ipanema e que a tardinha vire uma tempestade de verão dessas de parar a cidade.

Há algumas semanas eu falei aqui sobre a atual falta de bom senso da imprensa, sobre a inacreditável ausência de sensibilidade dos editores e repórteres para perceber que determinado assunto cansou, sobre a mente provinciana e colonizada daqueles que ainda não perceberam (bateu saudade de Cazuza) que o tempo não pára e que o show de anteontem nada mais é do que o show de anteontem. A vida passa, a fila anda e, três semanas depois da apresentação de João Gilberto, não é mais relevante saber se sua chegada ao Ibirapuera com quase duas horas de atraso se deu porque ele estava jantando um bifinho ou uma saladinha, se ele comeu devagarzinho ou se engoliu rapidinho, se resolveu escovar o dentinho antes de sair do hotelzinho agora decrépito ou se pegou um transitinho no caminho, se estava bravinho ou de bom humorzinho.... Caralho, até quando?

Sabe o que parece, de verdade? Que somos um bando de alienados e desocupados que vivem numa corte de um país periférico, onde a nossa única diversão é passar o ano inteiro à espera de algum detalhe da vida de algum rei, seja ele da bossa nova, do pop ou do futebol. Ó, o rei está chegando! Caiamos todos de joelho, então. Ó, o rei não gosta de barulho! Interrompamos nossa respiração, então. Ó, o rei não gostou de ler que seu show foi criticado por dois jornalistas traidores do movimento de adoração incondicional à pessoa real! Ó, enviemos os dois jornalistas à guilhotina, então. O rei, afinal, tem de se sentir feliz ao ler os jornais matutinos, ainda que os mesmos jornais espalhem merda e tristeza sobre o resto da corte. Mas o rei, ao contrário de nós, o rei tem o rei na barriga e só consegue se alimentar de elogios. Conta outra.

Talvez eu esteja parecendo irritado aqui, mas juro que não é só aparência, não. Desta vez é irritação em estado bruto mesmo. Outro exemplo? Madonna! A diva do pop vai se apresentar em São Paulo no dia 18 de dezembro, ou seja daqui a três meses. Pergunto: quem aqui ainda agüenta ouvir falar neste show de Madonna? E tem mais: a sandice ainda nem começou. Vocês vão ver o noticiário sobre a venda dos ingressos, que começa semana que vem. Daqui até dezembro os cadernos culturais não terão outro assunto, querem apostar? Já sabemos tudo que ela vai cantar, todos os seus movimentos foram cientificamente cronometrados, sabemos a ordem das canções, em que momento ela vai trocar de roupa, sabemos quem são os músicos que a acompanham, sabemos quanto custa o ingresso em cada parada de sua turnê mundial e iremos ser informados, até o dia do show, provavelmente sobre a grife da calcinha que ela vai usar. Nada mais de surpresa, nada mais de novidade, nada mais de excitação, nada mais de descoberta, nada mais de sair de casa sem saber o que nos aguarda. O mundo decretou a morte do imprevisto e do sobressalto. Já sabemos, em agosto, o que iremos ganhar de natal, quanto custou, onde foi comprado, em quantas vezes nosso presente foi parcelado e até a cor do papel em que ele virá embalado. Então eu pergunto de novo: que graça tem ganhar presente assim tão mastigado?

Para finalizar: alguém precisa dar um toque para o Caetano Veloso que um artista que chegou aonde ele chegou, que canta como ele canta e que, acima de tudo, que compõe tantas obras primas em escala quase industrial, não precisa, mesmo, perder suas preciosas horas de sono para responder críticas de jornalistas. Até artista em início de carreira já aprendeu a evitar estas armadilhas. E, ainda que as queira responder, o que não deixa de ser um direito seu, chamar jornalistas de bocó, burro, bobo e feio, realmente não condiz com a elegância de sua obra. Tão genial... e tão tolinho! Chega a dar pena. Perguntem se Roberto Carlos deu bola para o que escreveram do show. Este rei, ao menos, sabe que a indiferença é a suprema prova da realeza.

quarta-feira, agosto 27, 2008

Com 200 pilas na bolso, mas entubado

O telefone toca por volta das quatro da tarde. Dou uma olhadinha naquele aparelhinho milagroso chamado ‘detecta” e não reconheço o número. Aquela série de “zeros” no final indicava que não era nenhum amigo ligando: devia ser do banco, da seguradora, algo do tipo. Atendi. Era um rapaz chamado James, que me chamou pelo nome completo. Pensei: roubada na certa.
Ele era da administradora do meu cartão de crédito e, logo após se apresentar, disse que estava ligando, em primeiro lugar, para me cumprimentar “pelo histórico de ótimo relacionamento que eu mantinha com a administradora do cartão”.

Eu disse que possuía aquele cartão há menos de dois meses, período em que paguei uma única fatura. Assim, minha ótima relação com o cartão de crédito estava ainda na fase do aperto de mão. Mas ele não se abalou. Como nenhum desses atendentes se abalam: você pode dizer que seu prédio está desabando, que você está com uma arma apontada para a cabeça ou que você nem é a pessoa que eles estão procurando pois nada disso faz diferença mesmo. A partir do momento em que eles ouvem “alô”, eles não conseguem parar até terminar tudo o que têm a dizer.

Pois bem, o James ligou para me oferecer uma espécie de seguro-saúde. Digo “uma espécie de” porque não era um seguro-saúde convencional, ele me explicou. Vou tentar reproduzir o diálogo.

- Senhor, o nosso cartão se associou a um grande banco nacional e agora está oferecendo ao senhor uma espécie de seguro-saúde que entra em vigor a partir da meia-noite de hoje...
- James, eu tento dizer, muito obrigado, mas eu já possuo seguro-saúde.
- Mas este é diferente, senhor – ele me explica. – Este começa a vigorar a partir da meia-noite de hoje. Se o senhor for internado, a cada dia no hospital o senhor irá receber cem reais, depositados em sua conta.
- Olha, James, não estou mesmo interessado.
James, é claro, não olha e nem ouve.
- No entanto, senhor, esta quantia de cem reais diários pode dobrar, isso mesmo, pode chegar a duzentos reais se a internação for na UTI.
- James, eu digo agora mais impaciente, é que eu não vejo o que fazer com duzentos reais por dia se eu estiver internado numa UTI. Acho que uma UTI é o último lugar em que eu vou poder gastar seus duzentos reais.
- O senhor costuma viajar para o Exterior?, ele me perguntou.
- Muito menos do que eu gostaria, eu disse.
- Porque este convênio também cobre viagens ao Exterior. Se o senhor precisar de internação lá fora, até o limite de....
Tentei, mais uma vez, argumentar que eu não queria mesmo dispor daquele serviço...
- Mas o senhor está recusando mesmo antes de saber o quanto custa, ele falou. Custa apenas 26 reais por mês e a partir da meia-noite de hoje, se o senhor for internado, vai receber cem reais por dia de internação, até o limite de....
- James, muito obrigado e tenha uma boa tarde.
- Duzentos reais em caso de UTI, senhor, a partir da meia-noite...
Desliguei o telefone e tudo me leva a crer que James demorou um tempão para perceber isso também.

terça-feira, agosto 26, 2008

Todos os santos do seu Armando

Seu Armando usava sempre camisa xadrez de mangas compridas, calça de tergal, óculos de armação marrom e sandálias de couro com meias pretas. Era um figurino que o deixava eternamente velho, a ponto de eu acreditar que seu Armando talvez já tivesse nascido velho. Uma idéia parecida com aquela que fazemos dos nossos pais quando somos crianças: eles também sempre foram velhos. Eu via seu Armando nas manhãs de domingo, nas aulas de catecismo. Talvez eu o visse outras vezes também, já que ele morava a duas quadras da igreja e era provável que circulasse muito pelo bairro. Mas, na minha memória, seu Armando aparece apenas ao pé do altar, rodeado de imagens de santos e de velas acesas.

Seu Armando representava para aquele bando de garotos conduzidos à força aos mistérios da religião o que talvez os computadores e os games representam para a garotada de hoje: ele era o nosso portal para um mundo antigo, habitado por santos crucificados de cabeça para baixo, por mulheres queimadas, por mártires conduzidos à eternidade nas pontas das lanças ou em tonéis de óleo fervente. Por fiéis que foram mutilados, decapitados, cegados e apartados de sua família só porque defendiam aquela mesma fé à qual estávamos sendo apresentados naquelas manhãs de domingo. Passávamos duas horas extasiados diante de seu Armando, o nosso cicerone por aquela Viagem ao Centro da Terra dos Católicos.

Ninguém sabia descrever os milagres dos santos com tanta devoção quanto seu Armando. Como ele já parecia mesmo muito velho, talvez eu acreditasse que ele tivesse sido testemunha ocular daqueles dias em que leprosos levantavam de suas tumbas, em que peixes punham a cabeça para fora dos lagos para ouvir as pregações, dias em que a água virava vinho e os pães se multiplicavam. Nada nos impressionava mais do que saber que todos aqueles santos, cujos corpos haviam sofrido as maiores barbáries em vida, se mostravam impressionantemente intactos quando desenterrados. Este era, aliás, o maior gozo de seu Armando: ver em nossos rostos de moleques a certeza de que a carne sobreviveria ao tempo. Ao menos no caso dos santos – nós, pecadores em potencial, aguardaríamos a eternidade espremidos e misturados em um ossário qualquer.

À medida que se aproximava o dia de nossa primeira comunhão, seu Armando ia também, aos poucos, nos conduzindo às trevas do pecado. Não havia mais lugar para episódios bíblicos e nem para santos aventureiros. Todos nós éramos convidados a pensar no que havíamos feito de errado em nossa até então curta passagem sobre a Terra. O momento da nossa confissão se aproximava e tínhamos cada vez menos dias para nos arrepender. Quando, enfim, chegamos a um consenso sobre o que era o pecado, nossa missão era descobrir de que maneira ele se imiscuía em nossa vida diária.

Faltando dois dias para a confissão, eu andava desesperado. Não conseguia pensar em algo absolutamente abjeto para dizer ao padre quando a cortininha do confessionário se abrisse. Diante de todos aqueles sanguinários que seu Armando havia nos apresentado, gente que mandava matar legiões de crianças e crucificar os eleitos, nada do que fazíamos parecia ser suficientemente hediondo. Cansado de procurar por grandes maldades em mim, perguntei a minha mãe o que eu devia confessar no dia seguinte. Ela pensou um bocado e, talvez para se livrar de mim naquela hora, mandou eu dizer ao padre que eu deixava restos de comida no prato, jogava café com leite na pia quando não queria mais e deixava a tevê muito tempo ligada, mesmo quando não tinha ninguém na sala.

Achei a lista muito oportuna e foi o que eu disse ao padre em minha primeira confissão. Ele ouviu atentamente, pediu para que eu nunca mais fizesse aquilo e que rezasse três pai-nosso e três ave Maria que Deus me perdoaria. Descobri, depois, que todos os alunos do catecismo tinham recebido a mesmíssima penitência. E fiquei feliz ao sentir que todos nós éramos pecadores do mesmo nível.

Hoje eu perdôo o seu Armando por ter colocado em tantas cabecinhas aquela baboseira toda a respeito do pecado. No fundo, como disse o profeta que ele adorou fervorosamente pela vida inteira, ele também não sabia o que estava fazendo.