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12º
ROUND
Texto de Sérgio
Roveri – sroveri@terra.com.br
Projeto contemplado pelo Edital ProAc
34/2015 de Apoio à Criação Literária – Texto de Dramaturgia no Estado de São
Paulo.
Três
atores (dois homens e uma mulher) encontram-se em volta de um ringue de boxe. O
ringue não precisa, necessariamente, ser demarcado por cordas. Seus limites
podem ser imaginários. Dentro do ringue, dois boxeadores profissionais disputam
uma luta cuja duração obedece rigorosamente o regulamento do esporte: 12 rounds
com duração de três minutos cada um, e um intervalo de um minuto entre eles. A
rigor, não há diálogos para os boxeadores, embora eles possam, de alguma
maneira, utilizar de palavras para exprimir o cansaço da luta. A duração das
cenas irá acompanhar o tempo dos rounds: 12 cenas de três minutos, com uma cena
de um minuto entre elas. O importante é que, em todos os momentos em que os
atores tenham fala, os boxeadores estejam lutando. Em relação aos atores, a
divisão de personagens se dará da seguinte forma:
ATOR 1: O LUTADOR (Emile Griffith)
ATOR 2: O OPONENTE (Kid Paret) E DEMAIS PERSONAGENS
MASCULINOS
ATRIZ: TODAS AS PERSONAGENS FEMININAS DA HISTÓRIA
PRIMEIRO ROUND – TRÊS MINUTOS
O Oponente encontra-se em coma, num leito de
hospital.
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
OPONENTE (Kid Paret)
Minhas mãos são maltratadas. Não pelas lutas. Também
por elas, mas não somente por elas. Minhas mãos são maltratadas pela cana. Pelo
corte da cana. Meu corpo também é maltratado, um pouco pelos golpes, muito mais
pelo sol. O sol das lavouras de cana, um sol que não existe em nenhum outro
lugar do mundo, só nas lavouras de cana. Eu tentei me proteger. Dos golpes. Dos
golpes dele e dos golpes do sol. Os dois me atingiram, os dois me atingiram
além da conta e hoje eu tenho o corpo judiado. Eu abandonei as lavouras de
cana... Mas ainda hoje eu acordo assustado... Não, ainda hoje, não. Eu não
acordo mais. Quando eu acordava, quando eu ainda era capaz de acordar, eu
acordava assustado com a lembrança do facão nas minhas mãos. Mesmo depois que
eu troquei o facão pelas luvas do boxe, eu continuei a acordar assustado.
Assustado e com as mãos maltratadas. Às vezes, eu imagino que... que o facão
nunca saiu realmente das minhas mãos. Ele foi escondido pelas luvas, disfarçado
debaixo delas, mas sempre pronto a ferir. Eu não falo inglês.
Já as mãos dele... as mãos dele são finas. Finas e macias.
Mãos de quem nunca cortou cana, mãos de quem nunca soube, nem pelos livros, o
que é o sol de um canavial e o que é um facão. As mãos dele são pequenas
também. A primeira vez que eu vi aquelas mãos, eu pensei: ele não sobreviveria
um dia em uma lavoura de cana. Como ele chegou até aqui com essas mãos, tão
pequenas e macias? Alguém me disse que antes ele trabalhava com moda feminina.
Com o quê? Com moda, chapéus, essas coisas de mulher. Se eu falasse inglês, eu
diria: ora, com’on. Mas eu não falo inglês. E este é um mundo de homens.
Às vezes eu ouço algumas coisas, algumas coisas que
eles falam ao lado da cama, algumas coisas que eles sussurram. Eu não entendo
por que eles sussurram se todos estes equipamentos estão aí para confirmar que
eu já não sou mais capaz de ouvir. Eles não precisariam sussurrar, então. Eles
poderiam gritar. Eles sussurram que eu estou aqui há oito dias, do mesmo jeito
e na mesma posição. Eles falam de um inchaço, de um inchaço gigante. Oito dias,
então. E eles sussurram que talvez eu não vá muito longe. Talvez eu chegue ao
nono dia, talvez eu morra no décimo dia. Eu sinto que será no décimo. Eu sinto
que irei morrer no décimo dia. Sem falar uma única palavra de inglês e sem ter
aberto um açougue em Miami. Meu sonho. Talvez eu ainda tenha tempo de aprender
ao menos uma palavra de inglês. Mas o açougue... o açougue never.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
Atriz sobe ao ringue e dubla uma canção de Barbra
Streisand. A canção é The Way We Were, tema do filme O Nosso Amor de Ontem, e
será dublada a partir de sua estrofe final. É uma dublagem tosca, que poderia
ser feita em uma boate de travestis. Em seu canto do ringue, o Lutador
acompanha, de maneira ligeiramente afetada, a performance da atriz. Ele fecha
os olhos e deixa-se conduzir pela música. Torna-se frágil e feminino.
GONGO
ATRIZ
Memories may be beautiful and yet
What's too painful to remember we simply choose to forget
So it's the laughter we will remember
Whenever we remember the way we were
What's too painful to remember we simply choose to forget
So it's the laughter we will remember
Whenever we remember the way we were
The way we were
SEGUNDO ROUND – TRÊS
MINUTOS
A música para de
maneira seca. Lutador abandona a postura fragilizada.
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
ATRIZ ASSUME A
PERSONAGEM DA MÃE DO LUTADOR.
Junioooor. Juniooor. Aqui
em cima. A mamãe. A mamãe aqui em cima. Um pouco mais em cima hoje. Mostra para
ele quem você é. Mostra para todos eles. Cale a boca deles. Junioooor.
Eu grito, sim. Se vocês
estão incomodados, que mudem de lugar. Tem uns lugares vazios ali embaixo. Eu
vou gritar. Eu vou gritar até o fim da luta, até ver meu filho sair carregado
nos braços do público. Como um rei. Vejam só o corpo dele. Desde quando um
homem comum tem um corpo daqueles? Ele é um rei. Ele é um Deus. Um Deus que vai
calar a boca de todo mundo. Junioooooor. Arrebenta com ele, Junioooor.
Arrebenta. Isso, desçam mesmo, vão embora mesmo. Meu Deus, como vocês são
gordos. Gordos e molengas. Não, Junior, não. Protege o rosto, meu bebê. Não,
Junior. Aiiiii.
É só por um tempo, meu
filho. Você já é grandinho e vai saber se cuidar. E você tem de ser forte para
dar o exemplo para os seus irmãos. Veja, veja aqui neste mapa. Onde é que nós estamos?
Você já é bem grandinho, deve saber onde nós estamos. Então aponta para a
mamãe. Isso, Junior, muito bem, meu amor. Nós estamos aqui. Você, a mamãe, os
seus irmãos, todo mundo que você conhece está aqui. E agora a mamãe vai mostrar
para onde ela está indo. A mamãe está indo para este outro pontinho aqui. Viu
como é pertinho? E esta parte azul é o mar. Mas é só um pouquinho de mar que
vai separar a gente. Coloca o seu dedinho aí. Está vendo? O mar que vai separar
a gente é menor que o seu dedinho. Quando você ficar com saudades da mamãe,
você se lembra disso: que a gente está longe só por um dedinho. E a mamãe vai
fazer a mesma coisa do lado de lá. Toda noite, quando eu me deitar, eu vou
olhar para o meu dedinho... ah, mas o meu dedinho é gordo, cabe muito mais mar
no meu dedinho... então eu vou colocar um pedacinho de unha no mapa e vou dizer
que você está longe de mim só um tiquinho de unha. Não vai ser mais fácil se a
gente pensar assim? E antes de o seu dedinho crescer, eu já vou estar de volta.
Eles vão cuidar bem de você, eles prometeram. Se eles não cuidarem, sabe o que
a mamãe vai fazer? A mamãe vai dar um pulão por cima deste pedacinho de mar
para vir te proteger. Então escreve. Vamos lá. H...A...I... Não, um T, isso é
não um T, Emile, isso é um... nem sei o que é isso. Faz um T. Isso, isso, meu
amor. E agora um I. Pronto. Haiti. É para lá que a mamãe está indo.
Desculpa, Junior, eu
pensei que fosse mais fácil voltar. Quando a gente olha de perto, o mar é bem
maior do que o nosso dedinho. Eles prometeram que iam cuidar bem de você. Só
por isso eu fui. Eles prometeram. Quem fez isso com você?
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
Em um canto do ringue,
lutador faz um delicado arranjo de flores para enfeitar um chapéu feminino. É
um trabalho caprichado, preciso, obra de um artesão. Depois de pronto, coloca o
chapéu na cabeça da mulher e faz os últimos acertos. Observa a mulher à
distância, veste as luvas de boxe e volta para o seu canto do ringue.
TERCEIRO ROUND – TRÊS
MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
LUTADOR
Nunca ninguém me
perguntou qual era o meu mês predileto. Deve ser o tipo de pergunta que não se
faz a alguém como eu. Ou é o tipo de pergunta que não se faz a alguém que faz o
que eu faço, ou que vive do que eu vivo. É provável que as pessoas esperem que
eu diga outras coisas. Se alguém, algum dia, tivesse me perguntado qual era meu
mês predileto, eu teria respondido abril. Talvez não seja o mês favorito de
ninguém. Desconfio que as pessoas diriam dezembro, setembro quem sabe.. Mas
dificilmente abril. Abril é quando eu volto a acreditar na possibilidade de um
sol, na possibilidade de uma luz. Abril é quando Nova York, a cidade em que eu
vivo agora, tenta se assemelhar à cidade em que eu nasci. Eu sei que é um plano
que já nasceu frustrado, pois há um mundo a separar a cidade onde eu vivo da
cidade em que eu nasci, um mundo de árvores e ondas, de areias e corpos, mas a
cada abril eu renovo as esperanças de que nunca mais haverá neve em minha vida.
Ainda que eu saiba que nada separe mais a cidade onde eu vivo agora da cidade
que eu nasci do que...do que eu. Ainda assim, abril sempre foi meu mês
favorito. Já não é mais.
Da porta do vestiário
até a balança eram nove passos. Eu sei por que já tinha contado outras vezes,
esta é uma das minhas manias. Embora eu saiba que todos os ringues do mundo têm
as mesmas medidas, ainda assim eu gosto de contar os passos de um canto a
outro. Eu acho que quem faz isso, no fundo, está atrás de algumas certezas.
Entre o sexto e o sétimo passo, eu ouvi a palavra. “Maricón”. Parei. Eu não
falo espanhol. Mas sei o significado de algumas poucas palavras, principalmente
daquelas que eu já ouvi mais de uma vez na vida. Olhei para o meu técnico e ele
fez um gesto curto e seco, algo que poderia ser entendido como: não dê bola
para isso. Dei mais dois passos, os dois passos que faltavam para que eu
finalmente assentasse os pés sobre a balança, quando eu voltei a ouvir a
palavra. “Maricón”. Se o ódio e a indignação pudessem ser medidos em gramas,
naquele momento eu estaria acima do peso. Então vieram as outras palavras: “Mañana voy a matar a usted y su marido”. Quantos quilos a balança marca? Quantas são as palavras que eu não
entendo? É o meu peso que esta balança aponta? É de mim que estas palavras falam?
E em que momento tudo isso se confunde? Olhei para o meu técnico novamente e
nenhuma reação em seu rosto. Hoje eu diria que ele estava mais estático que os
ponteiros à minha frente. Desci da balança sem outra intenção a não ser a de
dar os nove passos que me levariam para fora do vestiário. Desta vez, foi entre
o quarto e quinto passo. Ele afinou a voz e fez alguma coisa parecida com isso:
“Hummmm....” e colocou a mão na minha bunda. No meu ombro, a mão do técnico. Na
minha bunda, a dele. Por uma questão de hábito, obedeci a mão do técnico e saí
do vestiário. O que ele disse lá dentro? Esquece, ele só quis te provocar. O
que ele disse lá dentro? Ele disse... ele disse que amanhã, na luta...que
amanhã na luta ele vai matar você e o seu marido. Eu não entendo. Eu nem sequer
tenho um marido.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ ASSUME O PAPEL DA FALSA NAMORADA DE GRIFFITH
Eles me pediram para que eu fizesse algumas fotos com ele, algumas poses
no banco de um parque. Eu deveria apenas segurar as mãos dele, encostar minha
cabeça em seu ombro, olhar bem nos olhos dele e fingir algum sentimento. Eu
disse que não me sentia muito à vontade para fazer isso, mas que se fosse para
ajudar, eu aceitaria. Eu não gostei quando eles usaram a palavra fingir. Finja
que você sente alguma coisa por ele. Eu não preciso fingir, eu sempre gostei
muito dele, mas não sei se é exatamente isso que vocês querem. Eu sempre senti
que ele precisava de alguma coisa, embora eu não soubesse dizer o quê. Mas
sempre tive a certeza de que eu era incapaz de dar esta coisa a ele. Talvez por
isso ele passasse tanto tempo longe de mim. Talvez por isso ele me trocasse por
outras companhias que... Escutem: por que vocês querem tudo isso? Estas fotos
todas nos jornais. Porque, eles disseram, porque as pessoas precisam pensar que
tudo que andam dizendo a respeito dele é mentira. Porque as pessoas precisam
acreditar que ele é normal. Mas ele é normal. Nós sabemos, mas não para um
lutador de boxe.
(Flashes de máquina fotográfica)
GONGO
QUARTO ROUND – TRÊS
MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
OPONENTE AGORA NO PAPEL DE UM REPÓRTER
Pois foi exatamente da maneira que eu estou falando.
Foi logo depois da luta. Ele estava suado ainda, com aquele corpão todo
brilhando de suor, parecia um homem feito de prata, e com o mesmo calção que
usou para lutar. Ele só teve tempo de tirar as luvas, parecia que estava com
tanta pressa, com tanta vontade de fazer aquilo que estava fazendo ali, no
banco do vestiário, que se fosse possível fazer aquilo de luvas, ele teria
feito. Quando eu lembro, é difícil dizer em que momento ele exibiu mais garra e
mais talento: se no ringue ou se ali, no banco daquele vestiário gelado. Pois foi
assim. Se você não acredita, tudo bem, eu paro de contar. Não saiu nos jornais
porque os jornais não dão uma merda dessas. Mas tinha tanto repórter ali, encostado
naquelas paredes de azulejo, que se cada um de nós pudesse publicar o que viu
naqueles segundos, ah, eu penso que o mundo ia virar de cabeça para baixo. O cara
é o campeão mundial, acaba de deixar o outro no chinelo, é aplaudido, aplaudido
não, ovacionado, ovacionado por um estádio lotado, todas as tevês do mundo
mostrando como o cara é demolidor, e então ele sai do ringue, corre até o vestiário,
agarra o namorado, é namorado que fala?, fica assim, ó, boca com boca, com o
suor ainda escorrendo pelas costas, quando a gente entra e vê tudo. Não, não
tenho nenhuma ideia fixa com suor... é que aquilo me marcou bastante, o suor...
Você queria que a gente dissesse assim: hei,
campeão, você vai ficar muito tempo aí beijando seu namorado? A gente queria te
entrevistar sobre... sobre... sobre a luta, claro. Alguns jornalistas ficaram olhando
para o chão, outros para o teto e alguns poucos, eu entre eles, encarando a
cena. Parecia que aquilo não ia ter fim. Acho que se cada um ali tivesse
flagrado os próprios pais na cama não teria ficado tão sem ação. O cara tinha
acabado de ganhar um título. Aquele mesmo braço que o juiz tinha erguido cinco
minutos antes, agora estava ali, alisando a coxa do namorado. Depois chegaram
os técnicos, alguns amigos dele, que ainda conseguiram ver o finalzinho do...
do... como eu chamo aquilo, do romance? Um dos técnicos olhou para a gente e
disse: senhores, ele já vai atender vocês. É só o tempo de ele tomar banho. Mas
daí, cara, daí veio a melhor parte: ele parou com os beijos, ajeitou o calção,
se levantou, abriu aquele sorrisão branco e veio em nossa direção. Porque isso
eu tenho de admitir: o filhadaputa tem um sorriso de ganhar concurso. Olhou
para nós, como se não tivesse acontecido nada, e falou: senhores, estou à
disposição para as perguntas.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
Enquanto os boxeadores se recuperam, cada um de seu
lado do ringue, surge em off a voz de Frank Sinatra, cantando um de seus
maiores sucessos, Let me try again. A gravação, que limita-se a apenas um
minuto, vai privilegiar apenas os versos iniciais da canção:
I
know I said that I was leaving
But
I just couldn't say good-bye
It
was only self-deceiving
To
walk away from someone who
Means
everything in life to you
You
learn from every lonely day
I've
learned and I've come back to stay
Let
me try again
Let
me try again
Think
of all we had before
Let
me try once more
We
can have it all,
You
and I again
Just
forgive me,
Or
I'll die
Please
let me try again
GONGO
QUINTO ROUND – TRÊS
MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
LUTADOR
Que golpe deve ser usado para nocautear um fantasma?
Se ele estiver longe, e é isso que a gente espera dos fantasmas, eu usaria o
jab. Sei que não é um golpe muito potente, mas ainda não inventaram nada melhor
para exaurir o adversário, para quebrar sua resistência. O problema é que existe
uma coisa muito irritante em relação aos fantasmas: eles são incansáveis. E
você nunca é capaz de prever em qual lado do ringue eles vão aparecer. Há um
tipo de fantasma, que na minha opinião é o pior tipo, que costuma aparecer
também fora dos ringues.
Se o fantasma estiver próximo, e infelizmente é o
que costuma ocorrer na maioria dos casos, ou se você quiser derrubar suas
defesas na hora, o jeito é recorrer a um direto, mas sem se esquecer, é claro, de
usar a mão na qual você tem mais força – a minha, por exemplo, é a direita. Se
o fantasma ainda não estiver dominado, é sempre possível empregar uma variedade
de golpes na tentativa de derrotá-lo: o cruzado, o gancho, o uppercut. Eu vou
contar um segredo: eu usei todos estes golpes, de todas as formas e em todas as
combinações possíveis, e nunca cheguei sequer perto de derrotar o fantasma que eu
fiz despertar na décima noite, na noite em que ele finalmente morreu. O quanto
de mim morreu junto, naquela noite ainda fria de abril, é uma conta que não fui
capaz de concluir.
Se ele queria tanto viver em Miami, comprar um
açougue por lá, por que diabos seu fantasma não sai das ruas de Nova York? Por
que tem de se esconder atrás de cada banca de jornal, atrás de cada tapume, de
cada carro estacionado? Por que tem de me assustar mesmo quando o sol corre
alto no céu? Porém, como é típico dos fantasmas, o dele também tem uma queda
por lugares sem luz: pelos cinemas, pelos teatros, por todos os quartos em que
eu tentei dormir desde aquela noite de abril. O fantasma dele também se sente
em casa nos vestiários, nos cantos de ringues, nas salas de musculação. É um
fantasma que, desconfio, ainda se preocupa em manter a forma. Mas em nenhum
desses lugares o fantasma dele encontrou melhor guarida do que nos espelhos, em
qualquer espelho. Enquanto eu faço a barba debaixo do chuveiro, o sangue que
escorre do meu rosto cortado desce pelo meu tronco e pernas e acumula-se em
pequenas poças ao redor dos meus pés. Esta é a minha derrota: nunca mais conseguir
encarar um espelho – e a gilete então tropeça cega pela minha face ensaboada
enquanto eu olho para a parede. Das paredes, eu desconfio, o fantasma dele não
gosta.
Eu fico muito grato, senhor Sinatra. Eu admiro muito
o senhor como cantor. Como cantor e amigo, mas eu já tenho empresário e
pretendo continuar com ele.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ ENCARA O PÚBLICO E FAZ UM DEPOIMENTO
Nos anos 60, era crime ser homossexual nos Estados
Unidos. As punições previstas para os homossexuais em território americano eram
tão severas quanto as empregadas na União Soviética, Cuba e Alemanha Oriental –
os maiores inimigos da América na época. A palavra “homossexual” não podia ser
publicada na imprensa. Por isso, quando queriam se referir a ele de maneira pejorativa,
os jornais costumavam dizer que havia algo de “diferente” naquele jovem campeão
que falava fino, que queria fazer chapéus e gostava de dançar em um tipo de bar
muito específico. O que os jornais gostariam de dizer, mas não podiam, era que
ele adorava frequentar bares e boates gays da região do Times Square, em Nova
York. Porém, estes lugares não podiam ser chamados abertamente assim. A saída
que eles encontraram foi promover shows de fachada – Barbra Streisand começou
sua carreira cantando em um desses bares. Ele a admirava muito e deixava isso
claro na potência dos seus aplausos. Mas ela não enxergava esta admiração, porque
não passava de uma garota judia e tímida que não tinha coragem de encarar a
plateia.
GONGO
SEXTO ROUND – TRÊS
MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
OPONENTE AGORA NO PAPEL DE MATTHEW, NAMORADO DE
GRIFFITH
Você vai querer que eu te chame de papai? Não ria. Estou
perguntando isso porque os meninos da minha idade, quando arrumam um namorado
mais velho, tipo assim, como você, eles começam a chamar o cara de papai, de
papi, de paizinho, uns nomes assim. Eu acho um horror, mas alguns caras gostam.
Então, se algum dia você quiser... O foda é que... é que... se eu chamar você
de papai, eu vou acabar me lembrando de algumas coisas que eu não quero
lembrar. Você nem é assim tão velho, na verdade, nem é quase velho. Está mais
para novo. Mas é que você é grande. Uma vez, eu vi num livro a figura de um
albatroz. Você conhece este pássaro? Ele é assim, muito largo. Da ponta de uma
asa até a ponta da outra, não sei, parece que cabe um mundo. Eu acho que você
tem ombros de albatroz. No fundo você é até novo. É que todo mundo trata você
como se você fosse um cara velho, por isso eu quis saber se você quer ser
chamado de papai. É que você é meio que chefe de todo mundo, não é?
A outra coisa dos meus amigos é que eles... bom,
quando eu contei pra eles que a gente estava junto, é oóóóbvio que eles não
acreditaram. Eu já sabia que eles não iam botar fé, mas você acha que eu não iria
contar? Você vive aparecendo na televisão, nos jornais... O último cara com
quem eu fiquei fazia uns bicos de limpar neve, cara. Daí aparece você e... como
eu iria ficar quieto? Só que eu falei pra eles ficarem de boca fechada, mas
você sabe como elas são, né? Elas, as bichinhas. Elas queriam te conhecer, só
que eu não sou louco de fazer isso. Eu sei como elas são... elas apunhalam
pelas costas. Era só eu levantar pra ir no banheiro que, quando eu voltasse, uma
delas já tinha pulado no seu colo. Uma, não, várias. Essas bichinhas falam que
você é homem demais para um cara só, ainda mais um carinha assim como eu, quase
raquítico...
O que eu queria falar deles, na verdade é... bom, na
verdade não é bem deles que eu queria falar, era mais da gente mesmo. Assim, um
pouco deles e um pouco da gente. É que eu não contei pra eles que a gente ainda
não...Na cabeça deles, eu sou o gayzinho mais bem comido de Nova York, eles nem
sacam que... a gente tá mais pra irmão. Eu sei que eles não têm nada a ver com
isso, eles não precisam saber de porra nenhuma da gente. Mas é que eu penso:
caralho, isso aqui é os anos 60, todo mundo come todo mundo... Até na rua. Eu
sei, eu sei... Você já me explicou. É foda, mas eu respeito.
Viu... hei, olha pra mim. Em dezembro, quando eu
fizer 18 anos, à meia-noite e um do meu aniversário de 18 anos, você promete
que finalmente a gente vai... Mas à meia-noite e um, promete? Daí eu te chamo
de papai... Em dezembro... Papai Noel. Cara... eu só vou esperar porque eu te
amo.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ NO PAPEL DE UMA TELESPECTADORA NA NOITE DA
LUTA ENTRE GRIFFITH E PARET
Mas isso é filme ou é de verdade? Eu fiz uma
pergunta. É filme ou é de verdade? Deixa esta cerveja e me fala. Isso é
verdade? O cara está... o que é isso? O cara está... ai... o cara está matando
o outro e você deixa o menino assistir. Depois ele não dorme de noite. Eu tô
achando que é de verdade. Alô, alô, Corina, você está com a tevê ligada? Então
vai lá na sala e olha. Tira esta cerveja do braço do sofá, não está vendo que
tá manchando tudo? Oi, Corina, é o que eu acabei de falar aqui em casa... é de
verdade, sim. Ao vivo! A tevê agora mostra um... um assassinato, como é que
você chama isso? Esporte é que não é. É ao vivo, Corina, você tá louca? É ao
vivo. Ele...ele...meu Deus, ele matou o outro? Não é filme, Corina, não seja
burra. Ele matou o outro? Já pra cama, moleque. E você, você desliga esta
merda.
SÉTIMO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
OPONENTE AGORA NO PAPEL DE KID PARET
Não importava se eu ganhava ou perdia: a minha
cabeça sempre me matou. O médico uma vez me falou que, se não era das pancadas,
devia ser de todo aquele sol na época do canavial. Faz quase dez anos que eu
parei de cortar cana. Por que foi doer só agora? Então deve ser das pancadas.
Dói mais depois das lutas, quando eu tomo banho e volto para casa. Esta é a
hora que dói mais, quando eu me deito. Daí explode de dor. Parece que eu ainda
estou lutando. Parece que eu ainda estou apanhando. E mesmo quando eu bato, sinto
a dor de quem apanha. A minha mulher diz que eu preciso ver isso. Que, se for o
caso, é melhor eu parar com as lutas. Ela tem medo que eu morra e deixe ela com
um filho pronto e um outro vindo na barriga. Eu nunca ouvi falar de ninguém que
morreu de dor de cabeça. Só de dor de cabeça. E, se no outro dia já melhora, é
porque não deve ser muito grave. A diferença entre as outras dores de cabeça e
esta de agora, é que agora eu ouço vozes. Tirando a voz da minha mulher, as
outras eu não conheço. Pode bater, maricón. Pode bater à vontade, que amanhã eu
já vou estar bom. Amanhã eu vou estar nos trinques, e você vai continuar sendo
um maricón, porque isso aí não tem cura.
Que porra é essa de inchaço que eles continuam
falando? Uma vez, no canavial, eu não sei por que eu não paro de pensar neste
canavial, aquilo já ficou para trás, porra. Uma vez no canavial uma cascavel
picou a minha perna. Se estas vozes estivessem comigo lá, naquela hora, elas
iam saber o que é inchaço. Aquilo sim era inchaço... Porque qualquer criança,
qualquer criança mesmo que seja burra, sabe que inchaço a gente enxerga. Eu não
tinha nem 14 anos, mas aquela cobra me ensinou o que era nocaute. Traição.
Golpe baixo. Eu aprendi tudo com a cascavel. Depois eu só fui aprimorando,
porque a luta é igualzinha uma cascavel: se você sai vivo, você sai mais forte.
Mas hoje esta dor está foda. O pior é que eu estou com uma impressão, não posso
perguntar isso para ninguém, mas eu estou com uma impressão que nunca amanhece
aqui. Parece que faz um tempão que eu deitei e nunca amanhece.
Eu preciso falar uma coisa para a minha mulher. Eu
sei que ela não vai gostar, mas eu preciso falar. Vem cá, presta atenção no que
eu vou dizer: se acontecer alguma coisa comigo, alguma coisa, não interessa o
quê, pode ser qualquer coisa, mas se acontecer, eu não quero voltar para lá,
você tá entendendo? Para aquele canavial eu não volto, nem morto. Está me
ouvindo bem? Nem morto.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ RETOMA O PAPEL DA FALSA NAMORADA DE GRIFFITH
Eu fiquei surpresa quando vi. Vocês não me disseram
que iam usar a palavra noiva. E agora os jornais dizem que nessas fotos ele aparece
acompanhado da noiva. As fotos estão ótimas, não é disso que estou reclamando.
Eu não me lembro de ter ficado tão bela, talvez bela seja um exagero, mas eu
não me lembro de ter saído tão bem em uma foto, eu logo vi que o rapaz que
vocês contrataram era profissional. O jeito dele de me dizer como eu deveria
olhar, como eu deveria me sentar, o que eu deveria fazer com os braços. Eu
passei a desconfiar que as estrelas de cinema talvez nem sejam tão bonitas,
elas só precisam ser bem conduzidas nas fotos. O problema é que vocês não me
disseram que iriam usar a palavra noiva. Eu o quero muito bem, mas isso está
longe de ser amor. Eu me vejo mais como uma garota disposta a fazer qualquer
coisa para ajudar um amigo em apuros. Eu sempre quis que ele fosse mais que um
amigo, mas, vocês sabem, ele nunca permitiu. Ele até se esforçou, mas no fundo
nunca gostou desta ideia.
OITAVO ROUND – TRÊS
MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
LUTADOR
O que foi que eu fiz?
O que foi que eu acabei de fazer?
Hei, garoto, olha pra mim. Sai das cordas, garoto.
Por que este silêncio? Agora há pouco era um grito
só, o ginásio inteiro era um grito. Por que isso agora? Essas caras.
Garoto, olha para mim. É só mais uma luta.
O que foi que eu fiz?
Quanto tempo durou isso? Na minha cabeça foi só um
flash...
Esperem um pouco, ele é um campeão também. Ele vai
reagir.
O que foi que eu fiz?
Para onde vocês vão levar ele? É melhor eu ir junto,
no caso de alguém perguntar.
Por que ninguém me impediu? Este gongo que toca
tanto. Não tocou desta vez?
É só uma pergunta: o que foi que eu fiz?
Juiz, o senhor pode me dizer o que foi que eu fiz?
Eu só parei de ir ao hospital porque, nos primeiros
dias, não me deixavam nem chegar perto do quarto; depois, me impediram até de
cruzar a recepção. Eu teria ido todos os dias, se me deixassem. Teria ido todos
os dez dias que ele ficou lá, teria ficado ao lado da cama dele todos os dez
dias. Até na mão dele eu ia segurar se fosse preciso. Mas não deixaram. Na
cabeça deles, eu precisava de uma punição. Todos sabiam que era só uma luta e
que às vezes as lutas não acabam bem. Mas, naqueles dias, pensar assim não
parecia a coisa certa. Ele é um homem jovem, que tem um filho pequeno e uma
mulher grávida. Quando se olha por este lado, ninguém consegue dizer que é só
uma luta. Eu mesmo me esforço, mas na maioria das vezes não consigo. A única
coisa que eles conseguem dizer é que eu matei o cara. E a pior parte desta
história é que eu estou começando a acreditar nisso. E ainda há as cartas, as
dezenas de cartas que me acusam de assassino e matador sem coração.
Enquanto ele está sendo velado, eu leio as cartas.
Enquanto ele está sendo enterrado, eu leio as cartas. A mãe dele veio de Cuba
para o enterro e eu gostaria de perguntar para ela como é lá, como é a terra
dela, como é o lugar onde ele nasceu. Porque eu acho que deve lembrar o lugar
em que eu nasci. E porque eu acho que nos dois, eu e ele, no fundo não passamos
de dois garotos que se afastaram demais do sol. Eu gostaria de perguntar para
ela se ele sabia ir sozinho até os canaviais ou se ela tinha de ir com ele,
pelo menos no começo, pelo menos até ele aprender o caminho. Eu gostaria de
perguntar para ela se ela acredita que, lá onde ele se encontra agora, ele
seria capaz de me perdoar. Eu gostaria de perguntar para ela se ele seria, lá
onde ele se encontra agora, pelo menos capaz de compreender que foi só uma luta
e que às vezes as lutas não acabam bem.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ VOLTA A ASSUMIR O PAPEL DE MÃE DE GRIFFITH
Ah, Junior, eu não sei responder isso. Quem tem de
saber isso é você, mas se você não sabe, como é que eu vou saber? Eu penso que
as coisas iam ser mais fáceis se você fosse igual os seus irmãos, mas eu sou
antiga para essas coisas, eu posso estar falando um monte de besteira. Quando
eu olho para você e depois olho para os seus irmãos, eu concordo com você: a
vida deles é mais fácil que a sua. Mas eu acho que é porque você sustenta eles,
e não porque você é assim... diferente, de um outro jeito. A vida ia ser dura
para eles também se eles tivessem de trabalhar. Eu ainda acho que você não
encontrou a mulher certa, este é o problema. Agora mesmo: uma dançarina de
cabaré. Que homem vai ser feliz do lado de uma dançarina de cabaré? Acho
difícil. Mas é o que eu estou dizendo: eu sou antiga. Vai ver que é uma coisa
de Deus: se você ainda não encontrou a mulher certa, é porque a mulher certa
para você sou eu.
GONGO
NONO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
OPONENTE, AGORA NO PAPEL DE UM NARRADOR
As coisas nunca mais foram as mesmas depois daquela
noite. O boxe nunca mais foi o mesmo. E ele, acima de tudo ele, nunca mais foi
o mesmo depois daquela noite. Pelos 15 anos seguintes, até guardar
definitivamente as luvas, ele vestiu o robe de boxeador outras 80 vezes, mas só
conseguiu 12 nocautes. Das últimas 23 lutas da carreira, ganhou apenas nove. Ele
se tornou – como é possível dizer isso no mundo do esporte, não, no mundo do
esporte, não, no mundo do boxe– ele se tornou um cavalheiro, um homem dócil e
gentil que parecia muito mais preocupado em preservar a integridade física dos
seus oponentes do que a obrigá-los a pedir água. Eu tenho medo, ele passou a
dizer. Ele tinha 24 anos, era o campeão mundial dos pesos-pesados e estava com
medo. Eu fico apavorado com a ideia de voltar a machucar alguém, apavorado com
a ideia de novamente matar um homem. Se para isso eu preciso deixar de ser o
lutador que eu sempre fui, eu deixarei de ser. Não era à toa que ele andava
apavorado: as pessoas cuspiam nele quando ele saía às ruas.
As coisas nunca mais foram as mesmas depois daquela
noite. A rede de televisão ABC, que transmitiu a luta ao vivo, na semana
seguinte baniu o boxe da programação. Outras emissoras espalhadas pelo país
fizeram o mesmo. Você ouviu isso, Corina? Vão parar de passar aquela porcaria
na televisão. Bem feito. Corina...o que que os nossos maridos vão fazer agora,
nas noites de sábado?
As coisas nunca mais foram as mesmas depois daquela
noite. O juiz que atuou na disputa nunca mais apitou coisa alguma. “Hei, você
não é aquele juiz? Cara, por que você não parou aquela carnificina?” Eu tentei,
mas você assistiu à luta até o fim? Ele golpeou o outro 17 vezes em cinco
segundos. Aquilo não era um braço humano, aquilo era um pistão”.
As coisas nunca mais foram as mesmas depois daquela
noite. E ele? Ele tentou parar, ele até pensou em desistir, mas ele já não
sabia mais fazer outra coisa na vida. A época de enfeitar chapéus de mulher
havia ficado para trás”.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ E OPONENTE SE REVEZAM NO PAPEL DE APRESENTADORES
DE UM TELEJORNAL
ATRIZ
O boxeador aposentado Emile Griffith, de 54 anos,
foi violentamente espancado na tarde de ontem por cinco adolescentes armados
com tacos de beisebol.
OPONENTE
A agressão ao boxeador ocorreu em frente a um bar
chamado Hombre, conhecido reduto homossexual na região da Times Square.
ATRIZ
Os golpes acertaram principalmente a cabeça e as
costas do boxeador. O hospital informou que seu estado é considerado muito grave.
OPONENTE
Griffith tornou-se famoso ao disputar o título
mundial de 1962 contra o boxeador cubano Kit Paret.
ATRIZ
No 12º round daquela luta, Griffith desferiu uma
série de golpes no cubano, que deixou o ringue em estado de coma e morreu no
hospital dez dias depois.
OPONENTE
A polícia de Nova York informou que ainda não está
claro se a agressão de ontem foi motivada por homofobia
GONGO
DÉCIMO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
LUTADOR
De uns tempos para cá, as pessoas andam um pouco
mais generosas comigo. Elas perdoam alguns lapsos de memória, alguns brancos,
algumas confusões que eu faço, uns nomes que eu troco ou apago. Elas perdoam
meu olhar que se fixa em um ponto do quarto onde não há nada para ver, e parecem
perdoar as lágrimas que escapam diante deste vazio. Elas compreendem que por 17
anos eu levei muitas pancadas na cabeça e isso deve ter tirado algum parafuso
do lugar, talvez tenha desarrumado toda a caixa de ferramentas. Algumas pessoas
querem me levar para passear, e eu raramente vou, outras querem me visitar em
casa e não escondem o quanto ficam desapontadas ao descobrir que eu vivo num
apartamento de quarto e sala e que preciso de um cuidador 24 horas por dia,
porque as coisas caem das minhas mãos, as coisas caem da minha boca e quase
todo dia eu caio de mim mesmo. Depois elas novamente voltam a demonstrar
ternura quando ficam sabendo que o cuidador é meu namorado e, ao mesmo tempo,
meu filho – um garoto que, depois que deixei os ringues, eu adotei em um centro
para menores infratores que hoje se transformou num homem grande e gordo, mas
que continua a me olhar como se eu ainda fosse campeão de alguma coisa.
O que vocês gostariam que eu tivesse feito além de
me esconder? Eram os anos 60, era o boxe, e era eu, um garoto negro. E,
naqueles dias, não levava muito tempo para um garoto negro, um garoto negro e
gay, descobrir que as maiores batalhas da sua vida teriam de ser travadas longe
dos ringues. Eu tinha dois amigos, tão negros e tão gays como eu, e quando nós chegávamos
nas boates, os porteiros diziam: chegaram Os Três Mosqueteiros. Um dia, um
deles me disse que a gente deveria sentir orgulho, porque naqueles anos ser gay
era motivo de cadeia, e a gente sempre conseguiu passar longe do xadrez.
Eu sempre gostei de homens e mulheres, mas não
gostava das palavras homossexual, viado e bicha. Eu não tenho certeza do que eu
sou, porque eu amei homens e mulheres do mesmo jeito e não queria ser lembrado
só por isso. E nem por ter batido num homem até que ele morresse.
Se eu pudesse escolher, eu gostaria de ser lembrado
como um cara que foi cinco vezes campeão do mundo. Eu acho que está na hora do
meu remédio.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
OPONENTE ASSUME O PAPEL DE UM FANTASMA
O meu fantasma é teimoso, ele quer assombrar você
até o último dos seus dias, até que seu braço finalmente caia sem vida ao lado
desta cama que me parece tão pequena para o seu tamanho. Eu sei que é cruel
continuar desafiando um homem tão debilitado, tão envelhecido, tão distante de
qualquer glória. Eu vou confessar uma coisa, mesmo sabendo que daqui a cinco
minutos você não vai se lembrar mais dela: eu me sinto muito mais cansado do
que você. Eu gostaria de ter parado há muito mais tempo, nem na época do
canavial o cansaço foi tão gigante. Eu não quero que a eternidade seja isso. Eu
já passei tempo demais aqui. Mas enquanto você não jogar a toalha, eu não vou compreender
que a nossa luta terminou.
GONGO
DÉCIMO PRIMEIRO ROUND – TRÊS MINUTOS
GONGO (os boxeadores, no centro do ringue, começam a
disputa)
LUTADOR
Eu matei um homem e não fui preso. Eu estava com
muita raiva dele, sim, muita raiva, porque ele tinha me tratado como lixo, me
humilhado de um jeito terrível. Ele me chamou de bicha na frente de todo mundo.
E não foi só por ter me chamado de bicha, o que já não era pouco naqueles dias,
mas a maneira como ele me ridicularizou, como me fez de idiota, como ele me sacaneou
em uma sala cheia de gente que me respeitava. Mas apesar de eu estar puto com
ele, extremamente puto, eu nunca quis matá-lo. Este pensamento nunca chegou a
passar pela minha cabeça, mas infelizmente aconteceu. Nós fazemos parte de um
negócio cruel. Ainda hoje, confesso, eu me sentiria ofendido se alguém me
chamasse de bicha daquela maneira tão ofensiva, ninguém precisa ser tratado
assim. Mas talvez hoje eu não perdesse mais a cabeça por causa disso, pelo
menos não da maneira que eu perdi lá atrás.
Depois de tantos anos, eu vejo como as coisas continuam
estranhas. Eu mato um homem e a maioria das pessoas, de certa forma, compreende
isso e até me perdoa. E, então, eu amo um homem e para a maioria das pessoas
isso é um pecado mortal. Amar um homem faz de mim um cara do mal, um demônio.
Eu nunca fui preso por isso também, por amar um homem, mas o fato de nunca ter
podido amar um homem livremente fez da minha vida numa prisão perpétua.
Um dia eu vi um cartaz com a minha foto e uma
legenda, em letras maiores do que a própria foto, que dizia que eu era o
campeão mundial gay de boxe. Depois, um pouco abaixo, umas letras menores falavam
o seguinte: ele disputou mais campeonatos mundiais do que qualquer outro
boxeador na história”. Ok, está tudo certo. Mas por que eles precisam fazer
tanto estardalhaço com este lance de ser gay? Por que eles têm de anunciar isso
em letras grandes a toda hora? Não podia ser tudo mais simples? Eu não quero me
sentir uma aberração. Eu sei que as coisas são assim, mas eu queria que elas
fossem mais simples.
GONGO
INTERVALO DE UM MINUTO
ATRIZ ASSUME O PAPEL DE UMA COMPRADORA DE CHAPÉU
Eu ouvi dizer que nunca houve um lutador como ele,
um homem tão fino e educado tanto dentro quanto fora do ringue. Me falaram que
ele se importa com os adversários, que pergunta se eles estão bem, se querem
continuar a luta ou se é melhor parar por ali mesmo, antes que alguém saia
machucado da história. Nada disso me
interessa, porque eu odeio boxe, nunca vi nenhuma luta e pretendo morrer sem
ver. O que eu sei é que nunca houve alguém que fizesse chapéus tão bonitos.
Quando eu vi um deles numa vitrine, eu perguntei para a vendedora quem tinha
feito aquela pequena joia. A vendedora mandou chamar e ele veio, lá do fundo da
loja, ajeitando um arranjo de flores. Achei que era alguma piada. Rapaz, eu
disse, não sei se você vai continuar neste negócio, mas você tem mãos de fada.
Qualquer coisa que você fizer com as mãos, vai ser bem feito. Sem falar que ele
era o negro mais lindo que eu já tinha visto na vida.
GONGO
DÉCIMO SEGUNDO ROUND
Os lutadores tiram as luvas e sentam-se cada um em
um canto do ringue. Atriz e oponente caminham em direção ao centro do ringue.
Imagens de Emile Griffith, em diversas fases de sua carreira, são projetadas em
um telão sobre o palco. Cenas da sua vida pessoal, dos treinos, dos prêmios e
do fatídico combate que ele travou contra o cubano Benny Kid Paret. As imagens
finais mostram a luta realizada em abril de 1962, que provocou a morte do
cubano. A imagem congela.
LUTADOR
Ontem eu tive a melhor experiência da minha vida. Eu
não subi num ringue, não lutei e nem ganhei nenhum título. Mas ontem eu conquistei
a minha maior vitória. Eu desfilei na Parada do Orgulho Gay de Nova York, eu e
meu namorado. E foi a melhor experiência que eu já tive porque, pela primeira
vez na minha vida, eu me vi cercado de pessoas iguais a mim. Eu não estava mais
sozinho. Tudo aquilo que eu fui obrigado a esconder, ou que me obrigaram a
esconder, os meus fantasmas, a minha alma amedrontada, os meus porões, a tudo
isso eu finalmente pude apresentar o sol das ruas de Nova York. Eu encontrei um
amigo que eu não via há tanto tempo e perguntei para ele que horas eram. Ele me
respondeu que eram três da tarde. Então eu o beijei, eu o beijei e disse: nós
podemos nos beijar na rua às três da tarde e pelo menos hoje, pelo menos aqui,
ninguém vai nos bater por isso. No meio daquela multidão, eu me perguntei se as
coisas teriam sido diferentes se eu tivesse assumido há 50 anos. Eu não sei. As
coisas são assim. Elas são como são e nada mais tinha importância. Porque eu
não estava mais sozinho.
FIM DA LUTA