quarta-feira, outubro 27, 2010

Agulha

O Louco Amor de Yves Saint-Laurent, documentário sobre a vida e a carreira de um dos gênios da alta-costura francesa, em exibição na Mostra Internacional de Cinema, tem um título enigmático: depois de duas horas de exibição, saí sem entender o que havia de louco no relacionamento de 50 anos que o estilista manteve com o empresário e colecionador Pierre Bergé. Seria justamente a longevidade da relação? Nos dias que correm, loucura seria conviver com a mesma pessoa ao longo de meio século? Não me parece que este tenha sido o sentido do documentário, que só reforçou em mim uma antiga suspeita de que a convivência, ainda mais as duradouras, é um tipo de coquetel que exige uma dose de paciência e respeito muito maior do que de loucura. Ao menos por parte de um dos envolvidos.

Não por coincidência, o documentário abrange os 50 anos que Saint-Laurent viveu ao lado de Pierre Bergé – período em que ele se consolidou como um dos maiores estilistas do mundo e, ao lado do parceiro, também um dos maiores colecionadores de arte moderna do planeta. Após a morte de Saint-Laurent, Bergé decidiu se desfazer desta monumental coleção que incluía mais de 700 itens, entre quadros de Picasso, Mondrian e Matisse. Num concorrido leilão realizado pela Christie’s, no Petit Palais de Paris, as peças, juntas, movimentaram mais de 200 milhões de euros.

Mas tudo isso é estatística. O que me atraiu no documentário não foram as geniais criações de Saint-Laurent, muito menos a grandiosidade de seus quadros e esculturas – imagens que, tanto umas quanto outras, já estamos cansados de ver. Atraiu-me muito mais a disposição do diretor Pierre Thoretton em investigar a história de amor que, a exemplo da fama e da fortuna dos dois, também crescia de alguma forma – ou nem sempre. O emocionante depoimento de Bergé parecia demonstrar que ele não estava apenas interessado em passar adiante seus objetos de arte, mas também a história do seu relacionamento.

Sem que Saint-Laurent tivesse vivido para dar sua versão sobre a história, o que me sobrou foi a ideia, talvez errônea, mas sempre presente em minha cabeça, de que os relacionamentos quase nunca são feitos em porções igualitárias de amor e dedicação: me parece que sempre sobra para alguém a tarefa de carregar o piano. Me parece que alguém tem sempre de ceder, de ponderar, de ir embora já sabendo que vai voltar quando o outro chamar, de perdoar e, acima de tudo, de acreditar que mesmo quando o teto está desabando sobre o casal, tudo não passa de apenas mais uma crise. Claro que, partindo do pressuposto que um papel como este deva ser representado, é bom que seja em sistema de revezamento.

De tudo que foi dito e mostrado no documentário, uma frase persiste na minha cabeça. Ao se recordar dos anos em que Saint Laurent passou mergulhado no álcool e nas drogas, Bergé confessou que chegou a sair de casa. Ele se mudou para um hotel na mesma rua em que eles moravam. “Eu queria estar perto quando Saint-Laurent me chamasse de volta. Eu não conseguiria mesmo viver longe dele”.

É assim. Alguém vai e alguém chama de volta. E, quem foi, muitas vezes atende este pedido. Seriam dois lados da mesma moeda?

sexta-feira, outubro 15, 2010

Tateando

Noite dessas, zapeando pelos canais a cabo da televisão, coisa que raramente faço, parei para ver um documentário sobre uma cientista inglesa envolvida em trabalhos ambientais nas florestas da Indonésia. A insônia e a prostração realmente nos empurram para alguns programas que provavelmente evitaríamos em dias de juízo perfeito. Mas eu sempre tive interesse nestas pessoas que, sabe-se lá se por vocação, engajamento ou desilusão amorosa, abandonam a família, os amigos e o burburinho da civilização para se esconder em alguma floresta onde seus dias serão ocupados na observação de pássaros exóticos, grandes primatas e na ação perversa de caçadores. O objeto de estudos desta cientista, cujo nome não me recordo, eram os orangotangos.

O documentário exibiu uma foto da cientista de 30 anos atrás – quando ela chegou à floresta. Era uma morena bonita e de olhos claros, a quem não deveriam faltar pretendentes e uma vida social mais agitada em sua Londres natal. Mas ela preferiu passar a vida – ou os chamados melhores anos da vida – em meio a filhotes de orangotangos que estão aprendendo a subir em árvores. Já no fim do programa, ele encarou a câmera e disse. “Foi para isso que eu nasci, para estar aqui e cuidar destes animais”.

Ninguém precisa dizer muito mais do que isso para ganhar o meu respeito, a minha admiração e, confesso, a minha inveja. Sou realmente fascinado pelas pessoas que sabem por que motivo elas nasceram. Eu provavelmente já gastei mais da metade do meu tempo nesta vida e ainda continuo tateando – acho que sei tanto da vida quanto naquele momento em que o médico me ergueu, olhou para minha mãe e disse: é menino. Gosto realmente das pessoas que encaram um trabalho (ou alguma outra atividade parecida) como se fosse uma missão – e que procuram cumpri-la de uma maneira que parece não haver dúvidas de que se trata realmente daquilo ali e não outra coisa. Como eu poderia ter uma certeza assim tão grande na vida se eu sou daquele tipo de pessoa que, numa doçaria, depois de ter dado a primeira mordida num brigadeiro, se arrepende na mesma hora, achando que deveria ter pedido o quindim.

Creio que eu não sinta inveja da vida que aquela cientista leva na selva – eu acho que voltaria correndo para a cidade depois de dormir a primeira noite numa barraca . Mas o que me atraiu nela – e em outros casos semelhantes – é a convicção de estar fazendo algo no que realmente se acredita. A maioria de nós não poderia dizer a mesma frase sem correr o risco de esbarrar na hipocrisia. Faço uma série de coisas das quais gosto, sou levado a fazer outras tantas por necessidade de sobreviver, mas a coisa em si, a coisa suprema, sobre a qual eu poderia dizer que é nela que a minha existência se ampara, esta ainda, infelizmente, eu não encontrei.

Sinto quase o mesmo tipo de admiração por aquelas pessoas que passaram por uma experiência que mudou suas vidas – em épocas de mineiros soterrados e resgatados, dispenso as experiências traumáticas. Falo de coisas mais prosaicas, de gente que diz assim: puxa, a natação mudou minha vida, depois que comecei a nadar, sou outra pessoa. Ou sou outra pessoa por que parei de fumar, ou por que li determinado livro que abriu todas as portas da minha percepção, ou por que descobri Deus em determinada religião, ou por que eu fui tocado pelo bem...

Eu olho para mim e me vejo como uma pessoa que também faz várias e diferentes coisas, que também procura algum conforto nas artes, na convivência, na natureza e na realização profissional. Mas que guarda, para o bem ou para o mal, uma espécie de disco rígido no fundo da alma – que funciona direitinho mas é difícil de ser tocado – seja por uma poesia de Fernando Pessoa seja pelo prazer de ver um orangotango escalando sozinho a primeira árvore de sua vida.