quarta-feira, janeiro 28, 2009

Pelo direito de não gargalhar de tudo

Há algumas semanas pude assistir à montagem de um dos textos clássicos da dramaturgia americana do século 20. É um destes textos capazes de colocar o tempo no bolso: quanto mais os anos passam, mais parece que eles foram escritos ontem. E eis que não saí especialmente tocado pelo espetáculo por sentir que algo nele não se cumpriu: acredito, e isso é uma opinião pessoal que pode ser contestada por qualquer um, que havia no texto um certo tipo de dor, uma desesperança quase palpável que não chegou ao palco. Uma das atrizes em cena, profissional tarimbada e de reconhecido valor, construiu sua personagem com uma alegria histérica e um cinismo incômodo que eu nunca havia localizado no texto. Confesso que achei aquilo um pouco estranho e inoportuno – mas não critico as opções pessoais que cada ator faz no momento de levantar seus personagens. Até porque, pela reação de grande parte da platéia, percebia-se que a atriz não estava sozinha em sua escolha arriscada: como uma regente, ela parecia se deliciar com as gargalhadas que brotavam a cada um dos seus comandos.

No dia seguinte, uma diretora de teatro, também profissional de reconhecido valor, me ligou para perguntar o que eu havia achado do espetáculo. Disse a ela que no geral havia gostado, embora tivesse saído do teatro muito incomodado com a performance da atriz. Ela então me disse que havia gostado da peça exatamente pela performance da atriz, muito adequada aos nossos tempos. “A única maneira desta peça se tornar palatável ao público de hoje”, ela me confessou, “é extraindo toda a graça possível do texto. Ninguém agüenta mais sofrer numa poltrona de teatro. As pessoas querem rir e os atores que querem público devem saber disso”.

E então ontem fui assistir a um espetáculo este sim brilhante – Réquiem, do dramaturgo israelense Hanoch Levin, em cartaz no Centro Cultural São Paulo. Inspirado em três contos de Tchechov, Levin, até então inédito no Brasil, construiu uma dolorida parábola sobre a vida que se esvai sem que nos demos conta disto. Quando os personagens percebem que a morte (ou a vida?) acaba de roubar deles tudo que de mais importante eles tinham, parece ser tarde para qualquer tipo de reação – eles se conformam e seguem adiante sem o pouco que um dia possuíram. Poucas vezes eu chorei tanto diante de uma dor tão domada quanto aquela exibida pelos personagens da peça. Eu não acho que nada na vida seja obrigatório, mas se for possível abrir uma exceção aqui, eu diria que Réquiem é um espetáculo obrigatório.

Em uma das cenas mais pungentes do espetáculo, quando um querubim surge em cena para ler um cartão postal que um bebê de seis meses, morto por queimaduras, enviou à sua jovem mãe, as gargalhadas começaram a pipocar na fileira atrás da minha. “Como seu filho não sabia ler e nem escrever, e morreu antes de conhecer as palavras, eu vou traduzir para a senhora o que ele escreveu”, diz o querubim. Poucos corações de concreto não se partiriam diante de um enunciado deste tipo. E então o querubim transmite a mensagem de conforto infantil que o bebezinho morto enviou do céu, ou de algum lugar melhor que este, para sua inconsolável mãe que se mostrava incapaz de chorar. Eram duas ou três linhas escritas com navalha, de uma dor tão seca, tão avessa ao melodramático que por isso mesmo dilacerantes. E as pessoas, atrás de mim, rindo como se estivessem na gravação do Zorra Total ou do Pânico.

Tive vontade, ao sair do teatro, de ligar para a diretora e cumprimentá-la: você estava certa. Não é que as pessoas estejam saindo de casa dispostas a rir, é mais grave: elas saem de casa dispostas a encontrar a gargalhada onde ela positivamente não existe. Sei que este post está assumindo o tom de algo que eu mais abomino na vida: a cagação de regra. Que cada um ria e chore com aquilo que melhor lhe aprouver. Mas se alguém é capaz de gargalhar – estou ressaltando: o verbo é gargalhar - diante da imagem de uma mãe que viu seu bebê de seis meses morrer queimado, então eu já não sei mais para quem ou o quê devemos dedicar aquelas poucas lágrimas que não temos vergonha de exibir em público. Temo pelo futuro do teatro, sinceramente. Cresci ouvindo a ameaça de que a tevê e o cinema um dia o destruiriam. Acho que não: o grande inimigo do teatro são aqueles que, impiedosamente, saem de casa noite após noite para pisotear a máscara da tragédia.

terça-feira, janeiro 27, 2009

Velha roupa colorida

Estava almoçando sozinho e pensando na vida (acho que ainda sob influência do filme O Curioso Caso de Benjamin Button, que teima em ficar na minha cabeça ainda que eu não tenha saído tão apaixonado assim do cinema – ou será que saí?) quando entrou no restaurante um senhor de seguramente mais de 70 anos, trajando uma calça azul-marinho, paletó de linho, gravata colorida dobrada ao meio e com os cabelos longos e grisalhos presos à nuca por uma piranha marrom. Sorridente, permitiu que duas pessoas mais jovens passassem na sua frente na fila da salada. Olhei para ele e pensei: aí está alguém que não deve dar muita bola para a passagem do tempo. Ou, no mínimo, alguém que foge um pouco, ao menos no figurino, daquilo que se convencionou esperar de alguém com mais de 70 anos. Continuei e comer e a pensar.

Acho que existe algo de irônico, ou cruel, a respeito da vida: é a crença de que seremos poupados daquilo que não desejamos para nós. Observamos aqueles que vieram antes, aqueles que caíram em algumas armadilhas à nossa frente, e temos quase a certeza de que conosco tudo será diferente – ainda que estejamos a trilhar o mesmo caminho das armadilhas, existe a fé no atalho que irá nos desviar para uma rota mais segura no último instante. E, de repente, no mais prosaico dos dias, nos assustamos com o barulho da nossa própria queda. Logo nós, que parecíamos tão cautelosos e previdentes. Que estávamos seguros da eficácia de um imaginário air-bag nos dado de presente pelo destino, que iria nos poupar das colisões mais doloridas. Que nada.

Então eu vejo que existe uma diferença muito grande entre fugir daquilo que não desejamos e caminhar na direção daquilo que sonhamos. Infelizmente, uma coisa parece não ser sinônimo da outra: evitar o indesejável não significa ir ao encontro da alegria. Me parece que entre as duas coisas existe um limbo gigantesco, dentro do qual passamos quase toda a vida a patinar, como se fôssemos personagens do seriado Lost sem a audiência do horário nobre e a esperança, ainda que remota, de redenção. Não há pessimismo nisso, ao contrário. Ter consciência das duas coisas – do indesejável e da alegria -, cada uma delas em uma das pontas do nosso caminho, ainda que estejamos perdidos no meio dele, é no mínimo sinal de que estamos vivos e atentos. Talvez não seja pouca coisa, não.

Ainda assim, é triste reconhecer que não somos tão especiais, ao menos aos olhos da vida, como acreditávamos ser em algum momento. Às vezes eu acho que eu daria um bom escritor de livros de baixo-ajuda, com esta minha tendência incurável de acreditar que eu não estou Ok e você não está Ok e que as dez pessoas que encontraremos no paraíso serão todos os chefes que odiamos ao longo da vida. E que, ao chegarmos lá, o primeiro deles irá nos abraçar e dizer: quem disse que terminou, tolinho?

Em todo caso, eu vou continuar fugindo daquilo que não quero para mim e, a cada vez que cair em uma armadilha, cairei esperneando e amaldiçoando cada instante da queda, por acreditar, antes de chegar ao fundo, que eu era diferente e especial, sim. Acho que este é o nosso único consolo – afinal, aceitar as regras do jogo nesta altura do campeonato me parece um pouco submisso.

Antes de sair do restaurante, olhei para o prato do senhor de trajes coloridos. Enquanto eu havia traçado dois pedaços de alcatra bem-passados, ele estava comendo sushi e salada de alface. Decidi uma coisa: já que sou muito covarde e convencional para imitá-lo no figurino, não seria má ideia imitá-lo no cardápio. Quem sabe eu também não passe dos 70 sem dar bola para o mundo?

quinta-feira, janeiro 22, 2009

Um brinde

Os ponteiros do relógio quebrado marcavam dez e vinte quando ele encheu duas taças de vinho tinto e se sentou para esperar por ela. Pelo vidro embaçado da janela, percebeu que naquela noite a torre da antena de televisão estava iluminada de verde. Até a noite anterior, ele não estava bem certo, a cor era azul. Ele notou que havia mais vinho na taça que devia ser a dela, e com um gole curto e sem cerimônia conseguiu equilibrar a quantidade da bebida nas duas taças. O toque dos seus lábios deixou embaçada a borda da taça que devia ser a dela, mas ele não notou. Os vidros de sua casa, todos eles, nunca foram muito limpos afinal. E foi com o olhar sem brilho na torre de antena da televisão, que voltara a ser azul - será que em algum momento tinha sido verde mesmo? - que ele esvaziou pacientemente sua taça e seus pensamentos.

Antes de pegar no sono, ainda olhou as horas no relógio quebrado pela última vez. Eram dez e vinte. Mas só ele sabia o quanto havia envelhecido.

Na manhã seguinte, ele jogou fora o vinho da taça que devia ser a dela. E tingiu o fundo da pia da cozinha de um vermelho claro e sem paixão.

quarta-feira, janeiro 21, 2009

Uma bem curtinha

Esta semana, assim do nada, uma amiga me disse uma frase de dolorida sabedoria. Aqui vai, na íntegra:

- Quando eu ligo a televisão e vejo as vinhetas do carnaval, as chamadas do Big Brother e os noticiários da São Paulo Fashion Week, me dá uma vontade de pegar no sono e acordar só no fim de março, quando tudo isso já acabou.

Concordo com ela integralmente. Mas acho março ainda um pouco cedo. Se a gente acordar em março, ainda vai estar passando Caminho das Índias, a novela nova da Glória Perez, e vamos correr o risco de ver o Toni Ramos dançando de túnica e o Osmar Prado perguntando sobre a linhagem familiar do Márcio Garcia. Vou combinar com minha amiga de a gente dormir e acordar só em novembro. Acho mais prudente e saudável: a gente acorda e já começa a falar mal do Natal que se aproxima. Graças a Deus que o fígado se regenera, né?

segunda-feira, janeiro 19, 2009

Cada um tem a estrela que merece

Na semana passada, pensei em escrever alguma coisa sobre a aterradora entrevista da atriz Suzana Vieira, publicada nas páginas amarelas da revista Veja. Mas como vi que o Alberto Guzik já havia escrito no blog dele sobre o mesmo assunto, e com uma linha de raciocínio muito semelhante àquela que eu pretendia utilizar, resolvi deixar quieto. Mais elegante que eu, o Guzik decidiu apenas comentar o teor monstruoso da entrevista, optando por deixar de fora algumas declarações deprimentes da atriz, como estas poucas a seguir (afinal, resolvi ser menos elegante que o Guzik)

1) “Só soube agora que pessoas com deformidade da mente, como ele, transam muito bem”;

2) “Precisei de quatro sessões de psicanálise para me recuperar das revelações que a namorada do Marcelo me fez ao telefone’ (Aqui, ponto para Suzana Vieira ou para a maravilhosa psicanalista que ela resolveu procurar, pois com quatro sessões a gente cura, no máximo, um torcicolo ou uma unha encravada. Eu faço terapia há seis anos e sinto que grande parte dos meus problemas não foi sequer mencionada ainda);

3) “Eu, que sempre gostei de sexo, amor e carinho...se ele me completava neste departamento, não precisava falar de museu”. (Acredito que nem de museu e nem de outra coisa qualquer. Provavelmente, porque ele não devia possuir conhecimento algum sobre qualquer museu do mundo. E, caso tivesse, garanto que não encontraria na atriz uma boa interlocutora)

4) “Envelhecer deve ser horrível, mas, como não envelheço, estou ótima” (com esta resposta, a atriz deixa claro que deixou de pertencer à raça humana e deve ter se transformado em tartaruga sem que o público tenha percebido)

Escrevi no blog do Guzik que o que mais me revoltava nesta história toda não era o corolário de absurdos proferido pela atriz, mas a certeza de que, na edição desta semana da Revista Veja, haveria uma série de cartas de leitores apoiando o pensamento vivo de Suzana Vieira. Não deu outra. Da Bahia à Irlanda, de Santa Catarina ao Paraná, choveram cartas de leitores dispostos a ressaltar o caráter inabalável da atriz, sua força, sua inteligência, sua lucidez, sua personalidade e até a “grandiosidade de sua alma”. Um dos leitores termina a carta assim: Parabéns, grande Mulher!

Desde pequeno a gente é ensinado a respeitar a opinião dos outros. Então, respeito a opinião de todos aqueles que escreveram para comparar Suzana Vieira a uma grande pensadora, a uma grande atriz e até mesmo a uma grande mulher. Da mesma maneira que eu acho que Suzana Vieira e o finado Marcelo Silva foram feitos um para o outro, agora acho que Suzana Vieira e os missivistas da revista Veja também foram feitos um para o outro. Que sejam felizes. E que possam se reunir, um dia, em um almoço de confraternização comandado pela Ana Maria Braga na casa dos Big Brother, com narração do Pedro Bial. Neste dia, a tragédia estará completa. E sinto dizer que não estamos longe disto.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

Pedalando, pedalando...

Acidentes de trânsito, mesmo os que produzem vítimas fatais, é aquele tipo de ocorrência que, de tão banalizada, já não nos choca mais. Se o assunto é acidente de trânsito, todos nós, famosos ou anônimos, estamos fadados a nos transformar em cifras. Prestamos um pouco de atenção neles somente após algum feriado prolongado, quando os jornais noticiam o número de mortos nas estradas do país – algo de causar inveja à truculência do exército israelense sobre a população de Gaza. Não temos mais nomes, não temos mais rostos, e toda nossa vida e nossa história passam a caber numa notinha de rodapé de algum jornal qualquer.

Esta semana, no entanto, a tragédia mostrou que consegue se aprimorar. A ciclista Márcia Regina de Andrade Prado, de 40 anos, foi atropelada e morta por um ônibus na Avenida Paulista. Chocante? Sim. E muito, ainda mais quando nos lembramos de que ela era uma ativista pelos direitos dos ciclistas. Porém, tão ou mais chocante que sua própria morte foi o descaso da Secretaria de Segurança, que levou quatro horas para recolher seu corpo, que permaneceu coberto por um plástico preto, a despertar a atenção e curiosidade de pedestres e motoristas. Não sei se por ironia ou um cuidado detalhado na qualidade de suas informações, os jornais informaram que o corpo da ciclista, exposto na avenida, provocou um congestionamento de quase dois quilômetros. “Morreu na contramão atrapalhando o trânsito”, já disse Chico Buarque há mais de 30 anos. Poucas vezes um detalhe me pareceu tão cruel no noticiário.

Não sei para onde são encaminhados os corpos das vítimas de acidentes de trânsito. Talvez para o Instituto Médico Legal, a algumas quadras da esquina em que a ciclista foi atropelada. Ainda que o resgate tivesse vindo a pé, não teria levado mais de meia hora para chegar, recolher o corpo e aplacar um pouco a dor e a indignação da família e dos amigos de Márcia. Há um ou dois anos, não me recordo, o corpo de um homem morto por traficantes e atirado ao mar, veio dar em uma praia do Rio de Janeiro. Para azar do coitado, era domingo, dia de sol e praia cheia – e ninguém, ainda mais um morto, tinha o direito de atrapalhar a rodada de caipirinhas e de futebol de areia. Solícitos, os cariocas encobriram o corpo do homem com um plástico também preto e voltaram para sua sessão de bronzeamento dominical. O corpo foi recolhido sete horas depois. No caso de Márcia, os paulistas mostraram que não é lenda: nosso serviço público é mesmo mais eficiente. Afinal, levamos “só” quatro horas para fazer o que os cariocas fizeram em sete ou oito.

Hoje à tarde, 24 horas após o acidente, a família de Márcia Regina mostrou que a dignidade é ainda muito mais poderosa que o descaso: eles resolveram doar o corpo da ciclista para uma faculdade de Medicina. Márcia, que passou os últimos anos de sua vida lutando pelo meio ambiente e pela proteção dos animais, vai continuar servindo à sociedade mesmo depois de morta. Ainda que esta sociedade não tenha feito jus à tanta elegância e comprometimento que ela demonstrou em vida. Eu não a conhecia, mas desejo, do fundo do coração e sem medo de ser piegas, que ela esteja agora pedalando entre as nuvens e rindo da nossa boçalidade.

terça-feira, janeiro 13, 2009

O melô da formiguinha

Quando eu estava no quarto ano primário, meus pais me compraram um livro grosso, de capa azul, chamado Admissão. Hoje eu acredito que o título não devia ser apenas este, mas isso não importa muito. Era o maior livro que eu já havia ganho – a exemplo das apostilas do cursinho, que eu viria a conhecer muito mais tarde, aquele livro trazia uma série de exercícios preparatórios para o ingresso no curso ginasial. Naquela época, o nível de ensino das escolas públicas era imbatível e, na cidade de Jundiaí onde eu vivia, havia dois colégios especialmente concorridos: o Instituto de Educação e o Geva, que se não me engano era a abreviatura de Ginásio Estadual de Vila Arens, bairro vizinho ao meu. Então, naquele ano, eu tinha as aulas regulares do primário, durante as manhãs, e as aulas do famoso curso de admissão, no período da tarde. Eu achava que estudava muito, mas quando vejo as crianças de hoje, espremidas entre a escola, a esgrima, a natação, o balé, o inglês e a computação, eu volto a me sentir um Macunaíma. No final do ano, quando eu já devia ter feito todos os exercícios do livro, o governo mudou o sistema de ensino, acabou com o exame de admissão e nos obrigou a estudar nas escolas do bairro em que vivíamos. Meu sonho de ir para o exclusivo Instituto de Educação, e poder usar aqueles guarda-pós brancos até a altura do joelho, morreu na véspera.

Mas algo sobrevive em mim desde aquele período, por mais prosaico que possa parecer. É um conto que integrava o capítulo de língua portuguesa no livro de admissão. O conto falava de um homem extremamente solitário que, ao se levantar às três horas de uma manhã qualquer para tomar água, viu uma formiga atravessando rapidamente a mesa de fórmica da sua cozinha. Insone e melancólico, ele passou a enfeitar a vida daquela formiguinha com uma série de detalhes absolutamente humanos: imaginou o lugar em que ela vivia, as funções que era orientada a cumprir ao longo do dia, os filhinhos a alimentar e uma rotina estafante que a obrigava a estar no batente às três da madrugada. Na noite seguinte, ele se levanta no mesmo horário e vai até a cozinha para ver se sua visitante estava por perto. E lá estava ela, cruzando a mesa na mesma direção, sem se importar com a presença ameaçadora dele no cenário.

E a mesma história se repetiu durante várias madrugadas. O homem, com o cotovelo apoiado sobre a mesa, de olhar fixo no trajeto da formiga que já havia se tornado parte de sua vida. Até que um dia ela não apareceu mais, nem no dia seguinte e nem nunca mais. O homem então, mais insone e melancólico do que nunca, passou a acreditar em uma morte digna para aquela formiga que havia levado uma vida tão honrada. E que tinha sido, por algumas noites, a ocupação de sua existência vazia.

Hoje eu penso no livro e em seu conselho pedagógico. Será que quem decidiu pela inclusão daquele conto numa publicação destinada a crianças de dez anos imaginou que já estava na hora de elas tomarem contato com a solidão e o abandono? Será que aquele editor visionário acreditou que as crianças, dali a poucos anos, teriam de se haver muito mais com a melancolia do que com as equações de primeiro grau e os tipos de solo da África setentrional? Será que o livro, muito além de permitir o nosso ingresso no ginásio, era o primeiro passaporte para a nossa vida adulta?

Hoje eu deixei, por descuido, um pedacinho de maçã em cima da pia da cozinha e, quando voltei, encontrei ali ao menos umas trezentas formigas, ouriçadas com o calor e a refeição frugal. Pensei naquele homem do conto e em quantas histórias ele teria de criar para deixar cada uma daquelas formiguinhas felizes diante de sua nova identidade. Porém, como a vida corre e, entre todas as lições que aprendemos estão a higiene e a crueldade, expulsei-as todas com uma enxurrada produzida por um copo americano com água até as bordas. E elas escorreram pelo ralinho da pia, felizes e pagãs, rumo ao esgoto lá embaixo, onde cada uma poderá criar sua própria história.

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Felicidade? Não tem ninguém em casa.

Esta semana, durante um almoço, conversei com um amigo muito querido sobre um tema curioso: o boicote à felicidade. Experiente profissional da psicanálise, ele disse acreditar, por experiência de consultório, que da mesma maneira que existem pessoas hábeis em se afastar da dor, há aquelas que fazem de tudo para não permitir a chegada da felicidade. Por uma incapacidade de admitir um final feliz em suas histórias, elas colocam em prática algum mecanismo de defesa capaz de pôr tudo a perder: escolhem conscientemente as palavras mais ásperas, as atitudes mais grosseiras, o caminho mais tortuoso e a expressão mais hostil até que, a felicidade que chegava de mansinho na vida delas, se assuste e fuja na mesma hora. E se a felicidade insistir e não fugir delas, tudo bem também: elas saberão como fugir da felicidade. A conversa com o amigo termina por aqui. O que vêm a seguir são minhas divagações – e é bem provável que o amigo, se algum dia passar por aqui, nem concorde com elas.

O que eu sinto é que todo mundo já se encontrou, ao menos uma vez na vida (e seria ótimo se tivesse sido uma vez só) nesta situação: fugir com medo da alegria que um emprego novo, um amor, uma viagem ou uma aventura pudesse nos trazer. Colocamos nossos planos no papel e vemos que aquilo tem tudo para dar certo... a menos que nós não deixemos. E então nós não deixamos. Por comodismo, por medo ou, o que é um milhão de vezes pior, por não nos sentirmos merecedores ou dignos de um presente que a vida está prestes a nos dar. Como os presentes da vida não costumam ser gratuitos, talvez os rejeitemos por saber, de antemão, que em algum momento chegará a fatura.

O que me causa espanto, neste terreno, é constatar a nossa capacidade de reação diante da dor, da morte, do inevitável. Encontramos forças para reagir àquilo que nos faz mal e nos mostramos impressionantemente fracos e covardes quando somos obrigados a encarar a felicidade. Logo ela, que é tão mais frágil que o seu algoz. Às vezes, talvez como qualquer pessoa, eu me vejo tomando algumas atitudes que naquele momento não me farão feliz de modo algum. Mas eu levo a idéia adiante com a desculpa de que se trata de um mal necessário. Digo para mim mesmo: isso que estou fazendo agora está me deixando muito triste e contrariado, mas é algo que precisa ser feito, porque lá na frente eu vou me orgulhar desta minha força. É como os nossos pais, que depois de nos aplicar uma severa punição na infância, nos diziam que lá na frente nós iríamos agradecê-los por tantos tabefes e privações...

A gente cresce, se afasta dos pais mas continua a se tratar do mesmo modo: esbofeteamos a nossa alegria e o nosso desejo com a desculpa de que amanhã encontraremos uma explicação e uma recompensa para tanto desfalque. A cada dia eu tenho mais medo de que este amanhã nunca chegue. E mais medo ainda de que, caso este amanhã efetivamente chegar, ele não saiba mais identificar o que de nobre existe por debaixo de tantos hematomas que nós mesmos nos causamos.

quinta-feira, janeiro 08, 2009

Mais um pouquinho de Cuba








A cidade de Havana é uma Marilyn Monroe aos 80 anos. Você olha para ela e diz: “Uau, como deve ter sido estonteante”. Mas o tempo, o descaso com o patrimônio histórico e a comovente falta de recursos para obras de conservação não destruíram a beleza da cidade; ao contrário, converteram-na em melancolia. O que não deixa de ser, de certo modo, uma manifestação de beleza também, mais contemplativa e calada do que esfuziante. Em algum momento da primeira metade do século 20, vivendo sob algum regime ditatorial de direita, Havana deve ter sido uma Madri à beira-mar, com suas construções imponentes, suas avenidas largas e suas praças bem desenhadas que hoje cheiram a esgoto – assim como quase todas as suas vielas centrais. Como as autoridades locais afirmam que não há assaltos na cidade, já que o porte de armas, ainda que brancas, é exemplarmente proibido, deixar-se perder pelas ruas do centro velho é um convite irrecusável.

Tudo tem gosto de passado em Havana, mas de um passado imperativo, que de alguma forma não permitiu a chegada do presente. A Europa deve estar cheia de cidadezinhas antigas, mas sempre haverá uma lan-house, uma loja da Armani e um McDonald’s a nos lembrar que estamos confortavelmente instalados no século 21. Em Havana, não. O passado nos envolve de tal maneira que avistar alguém falando ao celular, cena raríssima, já provoca quase que um susto. E no meio desta arquitetura esfolada, cujos prédios alquebrados expõem seus fios elétricos e encanamentos como se fossem vísceras, os cubanos cantam, dançam, jogam beisebol em cada terreno baldio ou sentam-se na calçada à espera de alguma coisa que provavelmente não chegará tão cedo.

Entre tantos Chevrolet dos anos 50, de cores que já não existem mais no mercado, circulam alguns Renault, BMW e Peugeout novinhos. Pergunto aos guias de quem são. “Dos funcionários do governo”, eles me respondem, de forma a reforçar a idéia inicial de que no socialismo todos são iguais, embora uns sejam mais iguais que os outros. Há um passeio memorável em Havana, que se torna obrigatório se feito ao fim da tarde – é caminhar por um trecho dos 11 quilômetros do Malecon, aquela calçada murada que protege a cidade das ondas do Atlântico. Talvez se dê ali o por-do-sol mais belo da ilha, mas o espetáculo não é da natureza, e sim das centenas de jovens que sentam-se naquele arremedo de muralha com os olhos perdidos no horizonte. A 140 quilômetros dali está Miami – mas não acredito, sinceramente, que seja esta a paisagem que os olhos deles não alcançam. Penso que eles olham, e talvez sonhem, com alguma coisa que se esconde do lado de lá do mar – na geografia é Miami, mas no coração poderia ser simplesmente o futuro.
Durante os nove dias em que passei na ilha, li com um interesse desmedido o romance Na Praia, do escritor inglês Ian McEwan, a alquimia mais perfeita entre amor e tristeza a que tive acesso nos últimos tempos. O livro, absolutamente essencial, deve ter tido um sabor muito diferente para mim, pois trata-se de narrar uma história que poderia ter sido e não foi. Assim como Cuba, que também poderia ter sido e não foi. O livro certo no lugar certo. Uma tristeza grande, assumo. Mas uma esperança ainda maior.

terça-feira, janeiro 06, 2009

Meu mundo caiu

O caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo trouxe, no último domingo, uma entrevista muito interessante com o diretor Jayme Monjardin, a propósito do lançamento da minissérie Maysa, inspirada na genial cantora de voz grave e dolorida que, por sinal, foi também sua mãe. Para se dedicar à carreira, ou talvez pela compreensível dificuldade em educar uma criança, Maysa concordou que o filho, ainda garoto, fosse enviado a um colégio interno na Espanha, onde ele passou anos de uma solidão impressionante. Este foi apenas um dos episódios de sua infância sobre o qual Monjardin resolveu falar. E arrematou a entrevista dizendo que não se sentia vítima de nada, que entendia as atitudes que a mãe tomou ao longo da vida e que aceitava o fato de que pagara o preço por ser filho de uma grande artista. Ponto para ele.

Até que ontem a Rede Globo exibiu o primeiro capítulo da minissérie, que parece ter alcançado índices históricos no ibope, algo em torno de 30 pontos. Fiquei em casa para assistir e, confesso aqui, não acreditei no que vi. Dos diálogos às falhas na escalação do elenco, da reconstituição de época à apresentação dos personagens, era tudo tão precário e melodramático que fica difícil acreditar que não tenha havido, por parte do diretor, uma impossibilidade de se haver com a mãe após tantos episódios de abandono e indiferença. Maysa, que fez gravações históricas e definitivas de clássicos como Chão de Estrelas e Ne me Quitte Pas, merecia um pouquinho mais de carinho.

segunda-feira, janeiro 05, 2009

...Mas com um corpinho de vinte!

Eu nunca gostei muito de ler matérias que nos dão orientações sobre como viver mais e melhor. Invariavelmente, elas vêm acompanhadas de alguns testes muito cruéis. Parei de fazer estes testes quando descobri que, segundo eles, eu devo levar uma vida sedentária, me alimento mal, sou sexualmente frustrado, estou longe da realização profissional e caminho para uma velhice solitária. Mas não estou sozinho neste calvário. Até hoje não encontrei ninguém que satisfizesse a todas às exigências propostas por este tipo de teste. Ou, se tal pessoa existe, ela só conseguiu ser aprovada porque se afastou do convívio social – já que todos os hábitos são condenados nestas matérias, como o fumo, a bebida, as poucas horas de sono, a vida nas grandes cidades, a solidão. Em resumo: nós. Concluí que para ir bem nos testes é preciso, acima de tudo, ser uma pessoa muita chata – e por isso prefiro ficar entre a maioria de reprovados.

Mas confesso que esta semana li com interesse ímpar uma matéria especial da revista Veja sobre o processo de envelhecimento do corpo humano. Assumo que não compreendo algumas estatísticas apresentadas pela matéria. Por exemplo: a reportagem diz que se a gente tomar duas taças de vinho todos os dias pode ganhar mais três anos de vida. Então eu pergunto: três anos a partir de que data? Fico imaginando a cena. Daqui a muito tempo (se Deus quiser) um amigo meu ligará para um outro perguntando assim:

- Nossa, você viu quem morreu?
- Não. Quem?
- O Roveri.
- Jura?
- Juro, morreu hoje.
- Coitado. Quantos anos ele tinha?
- Oitenta.
- Ah, até que viveu bem. Ele devia ter morrido aos 77, mas como passou a tomar duas taças de vinho por dia, ganhou três anos a mais.
- Puxa, que notícia boa. Isso merece um brinde.
- Mas com vinho, né?
- Tim-Tim
- Ao Roveri, que descanse em paz...

Outra parte do estudo revela que se a gente não levar a vida a ferro e fogo, ganha um ano e meio a mais. Deus do céu, agora tem até data quebrada. Como a pesquisa chegou a esta conclusão? Como a ciência pode nos dizer com precisão com que data morreríamos se fôssemos um bando de workaholic sem lazer algum e quando iríamos para a cova se tivéssemos nos filiado à trupe dos bon vivant? Quem não fuma, segundo a revista, pode esperar viver cinco anos a mais. Eu nunca botei um cigarro na boca, de verdade. Então vocês terão de me agüentar, no mínimo, até 2014 – porque eu clamo por estes meus cinco anos extras a partir de hoje.

Mas uma coisa me deixou realmente muito triste na reportagem. Foi saber que, por dia, de 50 a 70 bilhões de células do nosso corpo se suicidam. Isso mesmo, elas se matam deliberadamente. Isso dá uma média de 2,5 bilhões de células se matando por hora. Como eu levo em média meia hora para escrever um post, terei 1,25 bilhão de células a menos quando puser o ponto final aqui. Eu acho que é por isso que, às vezes, a gente sente uma tristeza profunda sem causa definida: é muita célula se matando ao mesmo tempo sem que a gente possa ajudar a salvar as coitadinhas. Em algum lugar isso tem de estourar, não é possível que esta matança coletiva passasse em branco. Imagino outra cena. Uma célula chega para a outra e diz:

- Você não sabe quem acabou de se matar?
- Me conta, me conta...
- Aquelas 576 mil células do intestino reto. Estão dizendo lá embaixo que foi uma ação coordenada. Elas se abraçaram, prenderam a respiração e deram juntas um último punzinho. Não deu tempo de ninguém fazer nada...
- Ah, caguei pra elas. Eram umas cu doce. Não olhavam na cara de ninguém. Parecia que elas tinham o rei na barriga. Já vão tarde aquelas fedidas...
- É, pensando bem, você está certa. Mas...
- Mas o quê? Lá vem você com seu pessimismo de novo.
- É muita célula se matando junta. Já pensou se a moda pega?
- Sai pra lá, eu, hein... Quero morrer de velha.
- Eu também. Vamos fazer um brinde à nossa longevidade, então?
- Um brinde? Mas a cena de cima já terminou com um brinde. Não é falta de imaginação terminar esta assim também?
- Claro que não. A matéria falou em duas taças de vinho por dia. Na cena de cima eles tomaram uma, agora a gente toma a outra.
- Por isso que eu gosto de você, sempre tão inteligente e bonita...
- É o silicone, querida...é tudo silicone.
- Tim-tim

domingo, janeiro 04, 2009

La isla bonita

Até bem pouco tempo atrás, havia um título que crescia feito praga nos cadernos de turismo dos principais jornais brasileiros. Um repórter era enviado para passar uma semana em algum país mais ou menos exótico, não entendia direito o que via por lá e, na volta, quando terminava de escrever a matéria, empregava o seguinte título: Angola, um país de contrastes. Ou Honduras, um país de contrastes. Ou ainda Nova Zelândia, um país de contrastes. Até que algum editor mais exigente, cansado de saber que este título poderia ser usado para descrever qualquer lugar que se visitasse, resolveu bani-lo para sempre das redações. Aposto que há pelo menos uns dez anos ninguém vê um título como este, ao menos na grande imprensa. Escrevo isso para informar que acabo de voltar de uma viagem de dez dias a Cuba – estive lá na semana em que a revolução de Fidel Castro completou 50 anos sem festas, pois a ordem no país era economizar cada centavo de peso para tentar recuperar uma economia devastada por três furacões que atingiram o país no início do segundo semestre de 2008. E, como até agora eu ainda não entendi direito tudo o que vi por lá, se fosse convidado a escrever uma matéria sobre a ilha, adoraria que o título fosse Cuba, um país de contrates. Ainda que todos os meus amigos jornalistas rissem da minha cara por semanas a fio.

Um post deve ser pouco para dar conta da quantidade e da disparidade de sentimentos e impressões que a ilha ainda nos proporciona. Embora eu não pretenda transformar estes dias dez em um diário de viagem, talvez fosse interessante, ao longo da semana, voltar ao assunto. Não faço aqui uma promessa, só uma sugestão. Veremos.

Eu nunca estive em países notoriamente caros para o turista, como o Japão, a Suécia ou a Rússia. Mas no quesito hemorragia na carteira, tenho certeza de que Cuba não faria feito diante deles. O país funciona com duas moedas: o peso cubano, dinheiro dos locais, e os temíveis CUCs (cubanos convertidos), que circula no bolso dos turistas. Por alguma magia do governo, um CUC equivale a um euro ou a oitenta centavos de dólares. Ou, para desespero dos brasileiros, a pouco mais de três reais. Além do sorriso constante e da simpatia dos cubanos, nada mais é de graça no país.

Um folheto com informações turísticas básicas, destes disponíveis aos montes nas rodoviárias, estações de trem, aeroportos e lobbys de hotel de qualquer lugar do mundo, em Cuba custa 10 reais. Sim, dez reais por um pedacinho de papel dobrado em quatro que mostra, por exemplo, um mapa de Havana com as indicações dos principais pontos a ser visitados. Uma hora de internet sai por 33 reais – e, como eles não têm banda larga, você responde quatro e-mails e percebe que seu tempo acabou. Por uma ligação de menos de dois minutos para o Brasil, em que só temos tempo de desejar um apressado feliz ano novo para a primeira pessoa da família a atender o telefone, ainda que não seja a mais íntima, temos de pagar em torno de 23 reais, enquanto que um passeio de três horas de barco pelas inacreditáveis praias da ilha, com direito apenas a água, não sai por menos de 120 reais.

Perguntei a um guia se ele não achava estas quantias uma afronta ao turismo e ele me respondeu que sim, que achava sim. “Ainda mais quando eu penso que o meu salário mínimo é de 60 reais por mês”, ele me respondeu. Argumentei, depois de ter lido esta informação em vários sites de viagem, que Cuba estava perdendo turistas para a Costa Rica, a República Dominicana e dezenas de ilhas no Caribe, onde se gastava bem menos para se extasiar da mesma forma diante de um mar azul-turquesa. “Mas a Fidel não interessam os turistas”, ele respondeu. “Fidel diz que ninguém é obrigado a vir aqui. Se não quiserem vir, que não venham”. E o senhor concorda com isso, eu perguntei. “Pelo amor de Deus, o turismo é a única forma de termos comida até o fim do mês. Sem o turismo, jamais teríamos como ganhar um dinheiro extra para alimentar nossas famílias”. Este guia, que abordava os turistas na rua com a discrição de um espião, já que não era ligado às agências oficiais do turismo e, portanto, proibido de exercer tal atividade, tinha como ocupação oficial o comando da cozinha de um dos maiores hotéis de Havana, onde trabalhava em turnos de 24 horas por 48 de descanso. “Com o que eu ganho lá, e por mais que economize, eu só tenho condições de sustentar minha casa e meus dois filhos por 14 dias. Os outros 16 eu completo com o que faturo nesta caça aos turistas”.

Este guia foi apenas a primeira das dezenas de pessoas que encontrei ocupando postos de trabalho diferentes daqueles para os quais haviam se preparado. Uma outra guia de viagem, que passava os dias tentando vender excursões de barco, era engenheira química formada na antiga Alemanha Oriental num curso superior de seis anos de duração. O rapaz que recolhia os guarda-sóis e as cadeiras de praia no fim do dia era graduado em história da arte e engenharia mecânica. O mestre de cerimônia dos shows divertidos e precários mostrados em um hotel na beira da praia havia se formado em medicina veterinária há dez anos. Todos optaram por trabalhar ao lado dos turistas porque dali vinha o imprescindível reforço do seu orçamento. Sempre que eu conversava com eles, saía com a impressão de que alguns conceitos talvez excessivamente burgueses como a realização profissional, os anseios, as aspirações sociais e o desejo humano por excelência, o da liberdade, não faziam muito parte da realidade de cada um. “Eu acho que as pessoas são felizes”, me disse o moço das cadeiras de praia. “Nós temos tudo, uma casa, serviço médico e podemos estudar. Só não temos dinheiro”.

Hoje, ao revirar rapidamente os jornais acumulados na porta de casa ao longo destes dez dias, vejo uma matéria sobre um escritor e um fotógrafo que foram a Cuba para reproduzir os passos de Che Guevara durante a revolução. No final, eles se confessaram atordoados com a melancolia e a falta de perspectiva e liberdade dos cubanos. Eu, que nunca fui muito competente em ciência política, não paro de me perguntar em qual momento a revolução falhou. Pois falhou, sim. O ser humano não nasceu apenas para ter uma casa e direito à assistência médica e formação escolar. Eu acredito que o ser humano precisa de algo muito mais valioso, algo que não encontrou espaço na revolução: o sonho. Precisa acreditar, ainda que em vão, que o dia de amanhã pode ser diferente do dia de hoje. E poder lutar por isso. Sem isso, não vivemos. E que me perdoem os esquerdistas convictos que com certeza dirão que em Cuba não há crianças pedindo esmolas na rua, como aqui no Brasil. Dou razão a eles: realmente não vi crianças pedindo esmolas nas ruas. Vi seus pais fazendo isso.

Eu já falei aqui sobre meus dois gatinhos, o Pirulito e a Ritinha. Pois bem, eles têm casa, comida e assistência médica. Como ficam de olhos atentos no monitor do meu computador quando estou trabalhando, eu ousaria dizer que eles contam com formação escolar também. Mas todo fim de tarde, sem exceção, os dois vão para a janela e ficam observando o mundo lá fora, através das redinhas de proteção que revestem todo o apartamento. Nestas horas, se eu pudesse entrar na cabecinha deles, eu sei que veria um mundo em que os dois se imaginariam livres para caçar pardais, revirar uma lata de lixo e se entregar à uma ruidosa noite de amor no telhado de alguma casa. Eu tenho certeza de que, por um único dia na vida, eles trocariam a casa, a comida e o veterinário grátis pelo prazer de experimentar a liberdade do lado de lá das redinhas – ainda que isso lhe custasse alguns arranhões e mordidas de outros gatos igualmente livres. Na próxima tarde, quando Pirulito e Ritinha subirem de novo ao parapeito da janela para ver o mundo lá fora, eu ficarei triste por eles, como já fico, e por todos os cubanos sorridentes e amáveis que conheci na viagem.

Se ninguém reclamar, eu falo mais um pouquinho de Cuba no próximo post!